sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

CANTO XXVI


PARAÍSO


Canto XXVI


            Dante não está podendo enxergar por ter olhado fixamente para a chama em que se apresenta S. João Evangelista. Dessa chama sai uma voz que o tranquiliza um pouco ao afirmar que enquanto não recupera a visão, ele deve dizer —“para onde tende/ a alma tua” ( /.../ e dì ove s’appunta/ l’anima tua /.../- v. 7-8). S. João começa agora a examiná-lo quanto à caridade (ou amor) assim como S.Pedro o examinara quanto à fé e S.Tiago, sobre a esperança.


Amos Nattini



             A voz afirma que “tua vista está confusa mas não morta” (la vista in te smarrita e non defunta- v. 9), pois a dama que o conduz (Beatriz) naquela região “tem no olhar/ a virtude que teve a mão de Ananias” ( /.../ ha ne lo sguardo/ la virtù ch’ebbe la man d’Anania”- v. 11-12), o personagem bíblico que curou a cegueira de S. Paulo após o episódio extraordinário ocorrido em seu caminho para Damasco, conforme  Atos dos Apóstolos IX, 17  (1)

            Dante quer que tal remédio a seus olhos venha quando aprouver a ela, Beatriz. Os olhos dele são comparados a “portas” (porte- v. 14) de seu coração, “quando ela entrou com o fogo em que eu sempre ardo” (quand’ ella entrò col foco ond’ io sempr’ ardo- v.15), vale dizer, o fogo do amor (2). Afirma que o bem  (v. 16), ou seja Deus, é o alfa e ômega de tudo o que o amor, nas escrituras, lhe ensina. É o destino de todo o seu amor.

S.João Evangelista

        Aquela mesma voz volta a se manifestar. Dante deve tornar mais claro seu pensamento, torná-lo mais preciso. Em seguida, pergunta “o que levou teu arco a mirar tal alvo” (chi drizzò l’ arco tuo a tal berzaglio-  v. 24), i.e. o que fez com que seu amor se dirigisse para Deus. Dante lhe responde:

/.../ Per filosofici argomenti
e per autorità che quinci scende
cotale amor convien che in me si’ mprenti  (v.25-27)

/.../ Por argumentos filosóficos/ e pela autoridade que desce daqui/ tal amor imprimiu-se em mim”.  

            Assim, sua convicção baseia-se tanto na razão quanto na revelação, expressa nas Escrituras Sagradas (3).

            Como acentua um comentarista (4), os próximos tercetos contêm um caráter silogístico. O bem “acende amor” (accende amore- v.29), tanto maior este quanto maior é aquele. Deus é a “Essência” (l’essenza- v.31) da bondade, superior a qualquer bem que se encontra fora dela (que “não é mais do que um brilho de seus raios”: altro non è ch’ un lume di suo raggio- v. 33). Logo, a mente, amando, deve mover-se para Deus. À Essência “/.../ convém que se mova/ a mente, amando, de cada um que divise/ a verdade /.../” (/.../ convien che si mova/ la mente, amando, di ciascun che cerne/ il vero /.../- v. 34-36).

            Tal verdade, diz o poeta, lhe foi evidenciada por “aquele que me demonstrou o primeiro amor/ de todas as substâncias eternas” (colui che mi dimostra il primo amore/ di tutte le sustanze sempiterne- v.38-39), uma referência provável a Aristóteles e à sua concepção do “primeiro motor” (Deus) que move todas as coisas. Assim, é por amor a Ele que as esferas celestes giram (5).

            Também lhe foi apontada pela voz de Deus (o “Autor veraz”: verace autore- v. 40) quando disse a Moisés –“Eu te mostrarei todo o bem(“Io te farò vedere ogne valore”- v.42) (Êxodus, 33-18:23), e por ele mesmo, S. João, quando trata de Deus em seu Evangelho, ao iniciar “o alto anúncio que apregoa  o arcano” (l’alto preconio che grida l’ arcano- v. 44).  

            Em seguida, o Santo reconhece que o amor soberano de Dante -- baseado na razão e na revelação, ou, como diz, no “intelecto humano (intelletto umano-v.46) e na “autoridade com ele concorde” (autoritadi a lui concorde- v. 47) (as Escrituras) -- volta-se para Deus.  Depois, formula a Dante outra questão:

Ma dì ancor se tu senti altre corde
tirarti verso lui, sì che tu suone
com quanti denti questo amor ti morde.    (v.49-51)

Mas diz-me ainda se sentes outras cordas/ puxarem-te para Ele, de modo que tu exprimas/ com quantos dentes este amor te morde. 

            Dante diz que entende a intenção da “águia de Cristo” (l’aguglia di Cristo- v.53), que seria explicitar mais o papel do amor em conduzi-lo à compreensão do que importa (6). A propósito dessa expressão, os comentaristas assinalam que em Apocalipse, 4:6-7 quatro animais são mencionados como símbolos dos evangelistas: o leão (S. Marcos), o touro (S. Lucas), um animal com rosto humano (S. Mateus) e a águia (S. João). A imagem quanto a este último santo se justifica porque demonstrou ter “uma visão aguçada do mistério celeste” (7).

            Dante então enumera os fatores (as “mordidas”: Tutti quei morsi - v. 55) que o fizeram voltar-se para Deus, ou seja, que “me tiraram do mar do amor distorcido/ e me puseram na praia do amor certo” (tratto m’hanno del mar de l’amor torto,/ e del diritto m’han posto a la riva- v.62-3): a existência do mundo e dele próprio (a criação), o sacrifício de Cristo “para que eu viva” (/.../ perch’io viva- v. 59) (a redenção da humanidade), a esperança dada aos “que têm fé como eu” ( /.../ ogne fedel com’io- v.60) (a salvação prometida), além do “conhecimento vivo” ( /.../ conoscenza viva- v. 61) já mencionado (o de que Deus é o supremo bem e deve ser amado sobre todas as coisas) (8).

            Após Dante concluir sua fala, o céu mostra sua aprovação e júbilo ao que disse, pois ressoou ali “um dulcíssimo canto” (v.67)  ( /.../ un  dolcissimo canto-  v.67), iniciado por “Santo, santo, santo” (v.69),  do qual participaram Beatriz e todos os bem-aventurados.  
           
            Em seguida, Dante afirma que recuperou sua visão, passando a ver “melhor do que antes” (onde mei che dinanzi vidi poi- v. 78), pois “dos olhos meus toda impureza/ tirou Beatriz com os raios dos seus” ( /.../ de li occhi miei ogne quisquilia/ fugò Beatrice col raggio d’i suoi- v. 76-7). O poeta se compara aqui a alguém que é despertado por uma luz intensa, e de início nada distingue, “até que a reflexão o ajude” (fin che la stimativa non socorre- v.75).

            Percebe então um “quarto lume” (v.81) entre eles. Ao ser indagada sobre esse fato, Beatriz lhe responde tratar-se da “primeira alma/ que o Primeiro Poder havia criado” (/.../ l’anima prima/ che la prima virtù creasse mai- v. 83-4), ou seja, a alma de Adão.  Os outros três lumes correspondem naturalmente aos três apóstolos, que representam as três virtudes teologais—fé, esperança e caridade (amor), graças concedidas à humanidade por Deus, através de Cristo.  Esse é o caminho para a salvação, fechado para os homens após a expulsão de Adão do Paraíso (9).  
             
            Novamente, segue-se uma comparação. “Como a árvore que inclina sua copa/ à passagem do vento, e depois a ergue” (Come la fronda che flette la cima/ nel transito del vento, /.../- v. 85-86), assim é ele, retraído quando Beatriz fala, recobrando depois “a confiança/ por um ardente desejo de falar” (/.../ e poi mi rifece sicuro/ um disio di parlare ond’ ïo ardeva- v. 90-1).



Peter Paul Rubens- Paraíso Terrestre com a Queda de Adão e Eva, 1615

            E Dante fala. Pede que Adão -- chamado de “pai antigo” (padre antico- v.92) e “único fruto a surgir já maduro” ( /.../ pomo che maturo/solo prodotto fosti /.../- v. 91-2), “de quem qualquer esposa é filha e nora” (a cui ciascuna sposa è figlia e nuro- v. 93) -- sacie sua curiosidade. E para que não demore, não vai nem formular as suas perguntas, pois ele já sabe a que se referem (pois os bem-aventurados podem ler o pensamento de Dante refletido na mente de Deus, o “Veraz Espelho” mencionado abaixo). 

            Antes de falar, a “alma primeira/ revelava pela tremulação de seu manto luminoso/ quanto vinha alegre a comprazer-me” (/.../ l’anima primaia/ mi facea trasparer per la coverta/ quant’ella a compiacermi venìa gaia- v. 100-102). O poeta compara essa tremulação ao de um pano, que também revela os sentimentos do animal quando este se agita debaixo dele.

            Adão então diz que sabe o que ele quer, pois vê o seu desejo no “Veraz Espelho” (verace speglio- v. 106), Deus, “que reflete tudo o mais/ enquanto nenhum pode refleti-lo” (che fa di sé pareglio a l’altre cose,/ e nulla face lui di sé pareglio-  v.107-108).   

            Dirigindo-se a si mesmo, Adão formula as perguntas que Dante lhe faria: 1) “quanto tempo faz que Deus me pôs/ no excelso jardim” ( /.../ quant’ è che Dio mi puose/ ne l’eccelso giardino- v. 109-110), i.e, quando ele foi criado e posto no jardim do Éden;  2) “quanto tempo deleitaram-se os meus olhos” ( e quanto fu diletto a li occhi miei- v. 112), ou quanto tempo ele permaneceu lá;   3) “qual foi a verdadeira causa da grande ira” (e la propria cagion del gran disdegno- v. 113), ou da ira divina, que motivou sua expulsão do Paraíso  Terrestre e 4) “qual o idioma que usei e criei”, ou seja, com que linguagem se comunicou inicialmente. 



Masaccio- Expulsão de Adão e Eva

            Nosso “pai antigo” começa a  responder  pela  terceira   questão. Afirma que a causa não foi provar o fruto da árvore “mas somente a transgressão de um limite” (ma solamente il trapassar del segno- v.117), i.e, o pecado da desobediência e também do orgulho, pois ele quis ser semelhante a Deus, conhecendo o bem e o mal (10). Responde em seguida à primeira questão: permaneceu no Limbo (“De onde tua dama fez sair Virgílio”: Quindi onde mosse tua donna Virgilio- v.118) 4.302 anos (4.302 “retornos do sol”: volumi/ di sol- v.119-120). Antes disso, viveu na terra 930 anos, pois viu “o sol voltar a todos os lumes/ de sua estrada /.../” ( e vidi lui tornare a tutt’ i lumi/ de la sua strada /.../- v.121-122) (o Zodíaco) tal número de vezes. Assim, considerando-se que a ação do poema transcorre em 1.300 d.C., e que Cristo após sua morte desceu aos Infernos em 34 d.C. e retirou do Limbo, dentre outros, Adão, este foi criado há 6.498 anos em relação ao ano em que se passa o poema, ou em 5.198 a. C. Relativamente à segunda questão, foi dito que Adão viveu 930 anos (cf. a Bíblia, Gen. V,5), mas não se menciona aqui o tempo que passou no jardim do Éden, de onde foi expulso (isso será respondido apenas nos últimos versos deste Canto).  A última questão trata da língua que Adão então falou. Ele diz que ela já era morta antes que “a gente de Nemrod” (la gente di Nembròt- v.126), rei dos babilônios, se dedicasse “à obra inacabável” (a l’ovra inconsummabile-  v. 125), vale dizer, à Torre de Babel. Ele acha natural que se altere o modo de falar ao longo do tempo, “pois nenhum produto da razão” ( ché nullo effetto mai razïonabile- v. 127) “/.../ dura para sempre” (/.../ sempre fu durabile- v. 129). Dá como exemplo a alteração do nome do “Sumo Bem” (sommo bene- v. 134) (Deus), que se chamava “I” quando ele vivia na terra e depois passou a se chamar “El” (o “I” é a letra romana que designa a unidade; o “El” é um dos nomes de Deus em hebraico) (11). Essas alterações da linguagem, ou “os usos dos mortais são como folhas/ no ramo, uma vai e outra vem” (ché l’uso d’i mortali è come fronda/ in ramo che sem va e altra vene-  v. 137-8). Essa é a última comparação feita no Canto, que termina com Adão completando sua resposta à segunda questão. Ele afirma que “No monte que mais se ergue do mar” (Nel monte che si leva più da l’onda- v.139), no monte do Purgatório, esteve no Paraíso Terrestre (situado em seu topo) “da primeira hora até aquela que segue/ a sexta, quando o sol muda de quadrante” (de la prim’ ora a quella che seconda,/ come ‘l sol muta quadra, l’ ora sesta- v.141-142), ou seja, permaneceu no Jardim do Éden desde as 6h até 1h da tarde, após o Sol já ter passado do primeiro quadrante, concluído ao meio-dia, correspondente a um quarto da sua jornada diária.     


NOTAS


(1) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.  Penguin Books, 1971, p. 287. 

(2) Id. ib, p. 403. 

(3) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p.312.

(4) MERLO, Luis Martínez de— “Dante Aligghieri- Divina comedia”. Traducción y notas de Luis Martínez de Merlo. 14a. ed. Madrid: Ediciones Cátedra, 2012, p. 690.   

(5) Id. ib, p. 691. Cf também HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p. 640-1.

(6) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.626. 

(7) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.404.  

(8) Id. ib, p. 405.

(9) Id. ib, p. 406. 

(10) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p 316. Cf  também
SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”, op cit, p. 289.   
 
 (11) MOURA, Vasco Graça—“Dante Alighieri- A Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. S.Paulo: Landmark, 2005- p. 827. Cf também MERLO, Luis Martínez de— “Dante Aligghieri- Divina comedia”, op cit, p 695.
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-Para ouvir o Canto XXVI:

https://www.youtube.com/watch?v=R7FrXJCxWd8&t=23s

(acessado em 9.10.20)





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