sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

CANTO XXV



PARAÍSO


Canto XXV


            O Canto XXV começa com uma referência ao próprio poema que Dante está compondo. Ele espera que tal “poema sacro” (poema sacro- v. 1) vença a crueldade dos florentinos que o desterraram. Seus inimigos são comparados a “lobos” (lupi- v.6) enquanto ele é um “cordeiro” (agnello- v. 5) e Florença é um “belo aprisco” (bello ovile- v. 5).  Ele tem esperança assim de um dia voltar para  sua cidade natal e ser festejado por ela na igreja onde foi batizado (/.../ e na fonte/ do meu batismo receberei a coroa de louros” (/.../ e in sul fonte/ del mio battesmo prenderò ‘l cappello- v. 8-9). Essa foi, pelo batismo, a sua entrada na fé católica. E S. Pedro, reconhecendo que ele a tem, o homenageia, girando sua luz, à guisa de coroa, em torno de sua fronte (v.12).


Amos Nattini
             Então, uma outra luz se aproxima de Dante e Beatriz. Trata-se do apóstolo, S.Tiago, que sai da mesma esfera de onde saíra “o primeiro/ dos vigários que Cristo tinha deixado na terra” (/.../ la primizia/ che lasciò Cristo d’i vicari suoi- v. 14-15), i.e., S.Pedro.  Essa esfera de luz não é o Céu das Estrelas Fixas, o oitavo céu, onde o poeta e sua dama estão (1). S. Tiago é identificado pelas palavras de Beatriz, quando afirma que ele é o “barão” (barone – v. 17, termo aqui usado como sinônimo de senhor feudal, já empregado no Canto XXIV em relação a S.Pedro) “por quem, lá embaixo, se visita a Galícia” (per cui là giù si vicita Galizia- v. 18). Esta é uma região da Espanha onde está situado o santuário de Santiago de Compostela e onde, acreditava-se,  fora sepultado o santo. Era o segundo local de peregrinação mais importante (depois de Roma) na Idade Média (2).

S.Tiago por Peter Paul Rubens
             O poeta, na sequência, compara o encontro entre Pedro e Tiago ao de pombos. Enquanto um destes pousa perto do outro, demonstrando afeição, também aqueles santos se acolhem assim, reciprocamente, “louvando o alimento que lá em cima os nutre” (laudando il cibo che là sù li prande- v. 24), ou seja, a alegria da contemplação de Deus (3).  Depois, eles param diante de Dante (“coram me” = diante de mim- v. 26) (4), “tão fulgurantes” (ignito sì- v. 27) que o ofuscam. Então, Beatriz pede a Tiago fazer “ressoar a esperança nestas alturas/ tu que tantas vezes a figuras / quantas Jesus aos três (apóstolos) mostrou mais benevolência” (fa rissonar la spene in questa altezza:/ tu sai, che tante fiate la figuri,/ quante Iesù ai tre fé più carezza-  v.31-33). S. Tiago está associado à esperança, enquanto S. Pedro, como se viu, à . Mais adiante, os versos indicarão que a caridade (ou o amor) vincula-se a S.João. Os três apóstolos assim representam as três virtudes teologais. A maior benevolência de Cristo por eles se revela no fato de que foram os únicos discípulos que testemunharam certos eventos importantes como a ressureição da filha de Jairo (Luc. 8: 40-56), a transfiguração (Mat.17:1-8) e a oração no horto de Getsêmani, ou das Oliveiras (Mat. 26: 36-46) (5). Quanto ao ofuscamento, Tiago tranquiliza Dante, dizendo que quem vem do “mortal mundo” (mortal mondo- v. 35) “deve em nossos raios amadurecer (sua vista)” (convien che’ai nostri raggi si maturi- v. 36), ou seja, se familiarizar com os raios de luz emanados pelos bem-aventurados. E isso de fato ocorre.

            Uma vez que a Dante, diz S.Tiago, foi concedida, pelo “nosso Imperador” (lo nostro Imperadore- v. 41) (cf a terminologia feudal, também na sequência), a graça dele “antes da morte” (anzi la morte- v.41) se encontrar “com seus condes na sala mais reservada” (ne l’aula più secreta co’ suoi conti- v. 42) – ou seja, encontrar-se com os santos no Empíreo (6) – a fim de que sua esperança, e a de outros (os que ouvirão/ lerão seu poema), seja reforçada, ele deve agora responder às três questões seguintes sobre a esperança que S. Tiago lhe formula: “diz o que ela é, como floresce/ na mente tua, e de onde ela vem para ti” (dì quel ch’ell’ è, dì come se n’nfiora/ la mente tua, e dì onde a te venne - v. 46-47).  

            É Beatriz então, em vez de Dante, quem fala. Ela se antecipa a ele, respondendo à segunda questão. Diz que está escrito no Sol (ou seja, na mente de Deus) que “Nenhum filho da Igreja Militante/ tem mais esperança /.../” (La Chiesa militante alcun figliuolo/ non há con più speranza / ../.- v. 52-53) do que Dante, e que por isso lhe foi concedido “vir do Egito/ a Jerusalém (/.../ che d’Egitto/ vegna in Ierusalemme- v.55-56), “antes que termine seu período de militância” (anzi che ‘l militar li sia prescritto- v. 57), i.e. enquanto está vivo ainda.  Egito -- que é a terra do exílio e cativeiro dos hebreus, conforme a Bíblia --simboliza a vida terrena enquanto Jerusalém, a vida no Céu (7).        

            As outras duas questões Beatriz deixa para Dante responder. A segunda ela respondeu para que ele não elogie a si mesmo, não seja causa de “jactância” (iattanza- v. 62).

            Como discípulo ansioso para mostrar seu conhecimento ao mestre, Dante responde a primeira questão. Ele diz que a esperança “é a expectativa certa/ da glória futura” (è uno attender certo/ de la gloria futura /.../- v. 67-68), ou da “futura beatitude” (8), que resulta da “graça divina e do mérito adquirido” (grazia divina e precedente merto- v. 69).

            Quanto à terceira questão, de onde veio a esperança de Dante, ele afirma:  

Da molte stelle mi vien questa luce;
ma quei la distillò nel mio cor pria
che fu sommo cantor del sommo duce.   (v. 70-72)

Essa luz veio a mim de muitas estrelas;/ mas quem primeiro a instilou em meu coração/ foi o supremo cantor do Supremo Senhor.

            Assim, a esperança lhe veio de “muitas estrelas” (os autores de textos sacros), mas o primeiro a influenciá-lo foi o cantor dos Salmos, o rei Davi (9).  Os versos 73-74 transcrevem inclusive uma passagem deles relativa à esperança (10). Dante diz que está pleno de esperança (que ele replica em outras almas), instilada pela sua “epístola” (pistola- v. 77), a qual, por sua vez, é instilada pelo canto do salmista. Conforme os comentaristas, Dante não distingue S.Tiago Maior (o apóstolo venerado em Santiago de Compostela, irmão de S. João Evangelista) de S.Tiago Menor (irmão de Jesus), que se acredita ser o autor da Epístola bíblica (11).  

            A satisfação de S.Tiago, decorrente da resposta dada por Dante, é revelada, nos vv. 80-82, pelos clarões repentinos, como de relâmpago, no seio daquele "incêndio" (12).
 
          O Santo afirma depois que tal virtude (a esperança) o acompanhou  até a morte (ele foi decapitado no ano 44 d.C.) ou em suas palavras “até a palma (símbolo do martírio) e minha partida do campo de batalha” (infin la palma e a l’uscir del campo- v. 84), vale dizer, quando ele passou da Igreja Militante para a Igreja Triunfante (13). S.Tiago gostaria que Dante lhe dissesse agora “aquilo que a esperança te promete” (quello che la speranza ti ‘mpromette- v. 87).

            O poeta lhe responde que isso está contido nas “novas e antigas escrituras” (/.../ Le nove e le scritture antiche- v.88). E cita o profeta Isaías (LXI, 7), que menciona a “dupla veste” (doppia vesta- v.92) que cada alma usará na “doce vida” (dolce vita- v. 93), o Paraíso. Essa vestimenta dupla se refere às luzes da alma e do corpo dos bem-aventurados, entendendo-se “corpo” a carne ressurecta após o Dia do Juízo (14). Dante cita também “o teu irmão” (tuo fratello- v.94), a saber, S. João Evangelista, que igualmente se refere a essas  brancas vestes” (bianche stole- v. 95) no Apocalipse, VII, 9, 13-17 (15).  

            Concluído o exame de Dante, ouve-se no Céu o canto do salmo IX, relativo à esperança, antes referido.  Depois, entre essas almas, uma luz se intensifica tanto “que se em Câncer houvesse tal cristal/ o mês de inverno seria um só dia” (sì che, se’l Cancro avesse un tal cristallo,/ l’inverno avrebbe un mese d’un sol dì- v. 101-102) (essa luz, como se verá logo adiante, é a de S.João).  O mês de inverno (do ponto de vista do hemisfério Norte), no caso, é o que vai de 21 de dezembro a 21 de janeiro, em que a constelação de Câncer está presente à noite. Se houvesse “tal cristal” ali, ou uma estrela como o Sol nessa constelação, todo o mês em questão estaria iluminado, não haveria mais noite, apenas o dia (16).

S.João Evangelista, por El Greco

            Dante então compara o movimento desse “refulgente esplendor” (schiarato splendore- v. 106), S. João, em direção aos outros dois apóstolos -- “que dançavam segundo o ritmo do canto/ adequado ao seu ardente amor” (/.../ si volgieno a nota/ qual conveniesi al loro ardente amore- v. 107-108) -- a uma alegre donzela entrando na dança para honrar a noiva, no dia do casamento (lembremo-nos que S. João está associado ao amor, ou caridade, a terceira virtude teologal). Beatriz observa a dança e o canto dos três apóstolos “como a esposa (recém-casada), silenciosa e imóvel” (pur come sposa tacita e immota- v.111). Mantendo o olhar neles, ela assim se refere a S.João, que foi escolhido por Cristo, do alto da cruz, para cuidar de sua mãe, conforme o evangelho desse santo:

“Questi è colui che giacque sopra ‘l petto
del nostro pellicano, e questi fue
di su la croce al grande officio eletto.”    (v. 112-114)     
Este é aquele que recostou a cabeça no peito/ do nosso pelicano, e foi escolhido/ para a grande tarefa desde o alto da cruz”.
            Acreditava-se que o pelicano bicava o próprio peito para, com seu sangue, dar vida novamente ao filhote falecido. Por isso, sua imagem está associada a Cristo, cujo sacrifício, para os cristãos, redimiu e deu a vida eterna aos homens (17).   

            Segue-se uma comparação entre a perda de visão de alguém cujo olhar se fixa num eclipse e o ofuscamento de Dante que olha atentamente “o último fogo” (v. 121) para procurar algo que não está ali, ou seja, o corpo de S.João:

Qual è colui ch’adocchia e s’argomenta
di vedere eclissar lo sole un poco,
che, per veder, non vedente diventa;

tal mi fec’ïo a quell’ ultimo foco
mentre che detto fu:  “Perché t’abbagli
per veder cosa che qui non ha loco?     (v. 118-123)

Como aquele que aguça o olhar e se esforça/ para ver o Sol eclipsar-se um pouco/ e que por ver fica sem visão,
assim fiquei eu ao olhar atentamente o último fogo/ até que ele me disse: “Por que te ofuscas/ para ver coisa que aqui não tem lugar?”

            Note-se a sonoridade dos versos acima, no original, decorrente da ocorrência dos fonemas envolvendo as consoantes k (ou o c com som equivalente), v e d, sonoridade essa criada pelo poeta, que mostra aqui sua grande virtuosidade formal.  

            S. João conclui sua manifestação afirmando que seu “corpo agora é terra” (/.../ è terra il mio corpo /.../- v.124). Ele está na terra, juntamente com outros, até que o número deles “se iguale ao propósito divino” (con l’etterno proposito s’agguagli- v. 126), ou seja, até que ocorra a ressurreição da carne no Dia do Juízo (18). “Com dupla veste” (Con le due stole /.../- v.127), i.e., com corpo e alma, “somente duas luzes subiram” (son le due luci sole che saliro- v. 128) ao “santo claustro” (beato chiostro- v. 127), vale dizer, somente Cristo e sua mãe subiram ao Céu com corpo e alma. Dante deve relatar isso, ao retornar ao nosso mundo. E assim desfazer a lenda relativa a S.João.  

            A essas palavras os três apóstolos (Pedro, Tiago e João) param sua dança e canto. Isso é comparado por Dante a um assobio que faz pousar os remos, os quais antes golpeavam a água.

            Nos últimos versos do Canto, Dante diz que ficou admirado com o fato de que, quando se voltou para ver Beatriz, ele não pôde vê-la, embora estivesse perto dela.   

Sandro Botticelli

Salvador Dalì 
  
NOTAS


(1) CIARDI, John-  “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi.  New American Library, 2003, p.821
(2) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.398. 

(3) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.  Penguin Books, 1971, p. 278.

(4) MOURA, Vasco Graça—“Dante Alighieri- A Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. S.Paulo: Landmark, 2005- p. 813.

(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.398-9.

(6) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p.301.

(7) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 399.

(8) Id. ib, p. 400.

(9) Id. ib, p. 400.

(10) Salmo IX, 10 (Bíblia traduzida das línguas orientais) ou IX,11 (Bíblia traduzida da Vulgata): "E em ti esperarão os que conhecem o teu nome, porque tu, Senhor, não desamparaste os que te buscam".
 Quase todos os livros do Velho Testamento foram escritos em hebraico enquanto o Novo Testamento foi escrito em grego. É conhecida como  “Vulgata” a versão latina da Bíblia, feita na sua quase totalidade por S.Jerônimo (“Bíblia Sagrada”. Ed. Paulinas, 1960, XII edição, p.612 e Introdução, p. 12-13). S.Jerônimo viveu de 347 d.C. a  420 d.C.     

(11) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”, op cit, p. 278.  

(12) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p.303

(13) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 400;  CIARDI, John-  “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”, op cit, p. 823.

(14) Id. ib,, p. 823; MOURA, Vasco Graça—“Dante Alighieri- A Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. S.Paulo: Landmark, 2005- p. 817.

(15) LONGNON, Henri- “La Divine Comédie”. Traduction, préface, notes et commentaires par Henri Longnon. Paris: Garnier, 1951, p. 682.

(16) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p.304.

(17) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 401-2

(18) Id. ib., p. 402.
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-Para ouvir o Canto XXV:

 

https://www.youtube.com/watch?v=vmIfQ-ebZLc

 

(acessado em 7.10.20)

  



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