sexta-feira, 22 de março de 2019

CANTO XX


PARAÍSO


Canto XX


            Dante refere-se inicialmente ao declínio do Sol, que finaliza o dia em seu hemisfério, e ao surgimento de um céu iluminado pelas estrelas. Ele associa o desaparecimento do Sol ao silêncio do “símbolo do mundo e de seus chefes” (/.../ ‘l segno del mondo e de’ suoi duci- v. 8), ou seja, ao silêncio da Águia, símbolo do Império, que se cala após falar ao poeta. Por outro lado, as “luzes vivas” (vive luci- v. 10) (as almas) que a compõem iniciam seus cantos (após a Águia calar-se) e isso é associado ao surgimento das estrelas (1). Mas o brilho dessas, que é crescente à medida que as almas cantam, ainda provém da fonte primeira, o Sol (de acordo com a astronomia da época, as estrelas não tinham luz própria) (2). Dante lamenta não poder reter tais cantos, dada a sua excelência.   


Gustave Doré

            Na sequência, o poeta invoca as almas, chamando-as de  doce amor” (dolce amor- v. 13), comparando os sons que produziam com seu canto ao de flautas “sopradas só com pensamentos santos!” (ch’avieno spirto sol di pensier santi!- v.15). Em seguida, elas são referidas como “preciosas e reluzentes gemas” (/.../ i cari e lucidi lapilli- v. 16), incrustadas no “sexto céu” (sesto lume- v. 17), o céu de Júpiter, onde ele está, com Beatriz. Após elas silenciarem o seu canto, Dante diz

urdir mi parve un mormorar di fiume
che scende chiaro giù di pietra in pietra,
mostrando l’ubertà del suo cacume       (v. 19-21)

me pareceu ouvir o murmurar de um rio/ que límpido cai, de pedra em pedra,/ mostrando a abundância da sua fonte 

            Os versos seguintes afirmam que aquele murmurar provinha da Águia, cujo som é comparado ao de dois instrumentos musicais, a cítara e a gaita de foles. Esse som se elevou pelo pescoço da ave e se tornou voz, saindo pelo bico em forma de palavras, aguardadas pelo poeta. Este afirma que a ave as pronuncia  como esperava meu coração, e nele as inscrivi” (quali aspettava il core ov’io le scrissi- v. 30), passando a reproduzi-las fielmente na continuação do Canto.

            A Águia começa a falar pedindo a atenção de Dante para aquela parte  das águias mortais que suportam a vista do Sol, i.e os olhos (uma característica dessa ave) (3). Diz a ele que os lumes que formam um dos olhos (inclusive o entorno) “são os de grau mais elevado” (e’ di tutti lor gradi son li sommi- v. 36), considerados todos os que formam a ave. Passa então a mencionar seis homens justos, e o primeiro deles, é “Aquele que, como pupila, brilha no centro” (v. 37), vale dizer, o rei David, da Bíblia, identificado indiretamente pela referência ao fato de que é “o cantor do Espírito Santo” (fu il cantor de lo Spirito Santo- v. 38) e por ter transportado a Arca da Aliança “de vila em vila” (/.../ di villa in villa- v. 39), até Jerusalém (essa Arca simboliza a presença divina) (4).  Ele é o autor dos Salmos, e para compô-los aceitou o Espírito Santo como seu inspirador. O rei David “agora sabe” (ora conosce- v. 40) que está no Paraíso como recompensa por ter feito de sua vontade (v.41) a vontade divina. O poeta inicia aqui a fazer uso de uma anáfora, repetindo por seis vezes a expressão “agora ele sabe” (v. 40, 46, 52, 58, 64 e 70), uma para cada um dos justos governantes mencionados nos versos, explicita ou implicitamente (5).  
   
Salvador Dali
             A Águia diz que os outros cinco notáveis formam o arco de sua sobrancelha. E que o primeiro deles está mais próximo do bico da ave. Este é identificado como Trajano, imperador romano (de 98 a 117 da era cristã), por causa do v. 45 —“ele consolou a viúva pelo filho” (la vedovella consolò del figlio)  – que se refere a um episódio de sua vida (já referido em “Purgatório”, X, 73-93),  em que retardou uma viagem para reparar injustiça feita a uma pobre viúva e vingar a morte do filho dela (6). Trajano “agora sabe” quanto custa caro não seguir a Cristo, pois ele, que ora desfruta a “doce vida” (dolce vita- v.48) do Paraíso, já conheceu a “oposta” (l’opposta- v. 48), ou seja, já esteve no Inferno (no Limbo). Segundo uma tradição medieval, ele foi resgatado daí pelas preces de S. Gregório.

            Segue-lhe, nesse arco da sobrancelha, aquele que “retardou a morte para fazer penitência” (morte indugiò per vera penintenza- v.51). Trata-se de Ezequias, o justo rei de Judá, a quem, segundo a Bíblia, o Senhor concedeu mais quinze anos de vida, após ele ter chorado e rezado ao ouvir o profeta Isaías lhe comunicar que logo morreria. Ezequias “agora sabe que o julgamento eterno/ não se altera /.../ (ora conosce ch ‘l giudicio etterno/ non si trasmuta /.../- v. 52-53) mesmo com uma “digna súplica” (degno preco- v. 53). Se ele obteve a prorrogação de sua vida, é porque isso já estava predeterminado por Deus, e não por causa de sua oração (7).

            A seguir, vem aquele “cuja boa intenção resultou em mau fruto” (sotto buona intenzion che fé mal frutto- v.56), ou seja, o imperador Constantino, que transferiu a sede do Império (“com as leis e comigo”: con le leggi e meco- v. 55, i.e. o símbolo da Águia) para Constantinopla, então Bizâncio, no ano 330, deixando a região ocidental, centralizada em Roma, para o papa Silvestre (“o Pastor”- v. 57). Essa união dos poderes temporal e espiritual é para Dante a raiz de todos os males da Igreja Católica.  Constantino “agora sabe” que o mal derivado de sua decisão não lhe foi nocivo, pois está no Paraíso, mas ela arruinou o mundo  (v. 58-60).

            O próximo lume daquele arco da sobrancelha é a alma de Guilherme, o justo rei do sul da Itália e Sicília, que reinou de 1169 a 1189. Ele é pranteado pela população daquela terra que hoje é governada pelos reis Charles de Anjou  e Frederico II de Aragão, também causa de choro, mas agora pelas suas más ações. Guilherme “agora sabe” que o Céu ama o rei justo, “e ele faz ver isso/ no fulgor de seu aspecto” (/.../ e al sembiante/ del suo fulgore if fa vedere ancora- v.65- 66).

            Por fim, a quinta luz da sobrancelha (e a sexta citada) é o herói troiano Rifeu, personagem da “Eneida”, que morreu lutando pela sua cidade, considerado por Virgílio um homem justo. Como ele viveu muito antes de Cristo, sua salvação é surpreendente para os crentes. Quanto a Rifeu,  Agora ele sabe” (v. 70) algo mais sobre a graça divina, “embora sua vista não divise o fundo” (ben che sua vista non discerna il fondo- v. 72). Para o poeta, a vontade de Deus é insondável.       

Depois disso, a Águia – identificada como a marca da “eterna Beleza” (etterno piacere- v. 77), i. e. Deus --  se cala, e o poeta a compara a uma cotovia, contente “da última doçura que a sacia” (de l’ultima dolcezza che la sazia- v. 75), ou seja, a salvação de Rifeu.  Pela vontade divina cada coisa torna-se o que realmente é:

Quale allodetta che ‘n aere si spazia
prima cantando, e poi tace contenta
de l’ultima dolcezza che la sazia,

tal mi sembiò l’imago de la ‘mprenta
de l’etterno piacere, al cui disio
ciascuna cosa qual ell’ è diventa.    (v.73-78)

Qual cotovia que, livre, no ar,/ primeiro canta e depois se cala, contente/ da última doçura que a sacia,
tal me pareceu a imagem da marca/ da eterna Beleza, por cuja vontade/ cada coisa torna-se aquilo que ela é. 

            O poeta então comenta que como ele “/.../ fosse ali, quanto à (sua) minha dúvida,/  transparente como vidro que reveste a cor” (/.../ ch’io fossi al dubbiar mio/ lì quase vetro a lo color ch’ el veste- v. 79-80) -- dada a presença das almas bem-aventuradas  que podem ler sua mente -- sua dúvida não precisaria ser expressa em palavras, mas estas acabam saindo de sua boca—“Que coisas são essas?” (/.../ “Che cose son queste?- v.82), externando assim sua admiração por ver no Paraíso dois pagãos (Trajano e Rifeu), um que viveu depois da vinda de Cristo, e outro, antes.
           
A “santa insígnia” (lo benedetto segno- v.86), a Águia, vendo o assombro de Dante com isso, dirige-se a ele, afirmando que o poeta crê nessas coisas porque ela o diz, mas não percebe as razões que a justificam. Ele é, diz a Águia, “como aquele que conhece a coisa/ pelo nome” (/.../ come quei che la cosa per nome/ apprende ben /.../- v. 91-92), mas não a sua quididade (ou essência, na  filosofia escolástica), e precisa de outro que a mostre. Os comentaristas fazem aqui a distinção da Escolástica entre conhecimento baseado nos sentidos daquele baseado na razão, o único a apreender o verdadeiro significado dos fenômenos (9).

A seguir, citando indiretamente uma passagem do Evangelho de Mateus (11:12), a Águia afirma que o “Regnum celorum” (Reino dos Céus- v. 94) sofre a violência do amor e da esperança, i.e. a entrada nele é forçada por essas duas virtudes (cf o caso do papa Gregório e de Rifeu). Elas vencem a vontade divina, “elas a vencem porque ela quer ser vencida,/ e, vencida, vence com a sua bondade” (ma vince lei perché vuole esser vinta,/ e, vinta, vince con sua beninanza- v. 98-99), notando-se aqui a presença da figura de linguagem chamada quiasmo (10), dada a repetição invertida das palavras.

As duas almas que causam admiração a Dante por estarem na “região angélica” (region de li angeli- v.102) -- a Águia esclarece o poeta -- “Não deixaram seus corpos, como crês,/ gentios, mas cristãos” ( D’i corpi suoi non uscir, come credi,/ Gentili, ma Cristiani, /.../- v. 103-104). A primeira, a de Trajano, saiu excepcionalmente do Inferno (Limbo) onde se encontrava e “retornou a seus ossos” (/.../ tornò a l’ ossa- v. 107). Ressuscitou  graças à “viva esperança” (viva spene- v. 108 e 109), não dele mas de S. Gregório (como salienta Hollander), que com ela reforçou suas preces (v. 110) em favor de Trajano. A alma deste, “retornada à carne, em que permaneceu por pouco tempo,” (tornata ne la carne, in che fu poco,- v. 113), acreditou na ajuda de Cristo e inflamando-se “em tanto fogo/ de vero amor” (/.../ in tanto foco/ di vero amor /.../- v. 115-116), foi digna de vir ao Paraíso, “após a segunda morte” (/.../ a la morte seconda- v.116). Essa narrativa referente à vida do santo decorre de uma lenda medieval.

Amos Nattini

Quanto à outra alma, a do troiano Rifeu, de uma época bem anterior à vinda de Cristo, “todo o seu amor lá embaixo dedicou ao que é certo” (tutto suo amor là giù pose a drittura- v.121), pelo que Deus lhe premiou, concedendo-lhe a graça de apagar o pecado original pelo batismo, pré-condição para a admissão no Paraíso. Esse batismo consistirá nas três Virtudes Teologais (Fé, Esperança e Caridade, ou Amor), virtudes suficientes para assegurar a salvação. Dante havia visto antes tais virtudes, personalizadas em três damas, quando visitou o Paraíso Terrestre (cf. “Purgatório”,  XXIX, 121-129):

Quelle tre donne li fur per battesmo
che tu vedesti de la destra rota,
dinanzi al battezzar più d’un millesmo.    (v. 127-129)

Aquelas três damas que viste junto à roda direita do carro/ foram o seu batismo/ mil anos antes deste ser instituído.

            A Águia conclui sua fala invocando a predestinação, e associando esse mistério aos “que não veem a Primeira Causa plenamente” (che la prima cagion non veggion tota- v. 132), i.e. os seres humanos e mesmo as almas no Paraíso (11), “uma vez que mesmo nós, que vemos Deus,/ não sabemos todos os que estão eleitos” (/.../ ché noi, che Dio vedemo,/ non conosciamo ancor tutti li eletti- v.134-135). Mas isso não a preocupa “pois o que Deus quer, nós queremos também “ (che quel que vole Iddio, e noi volemo- v. 138).

            Nos versos finais do canto, o poeta chama de “suave medicamento” (soave medicina- v.141) o que recebeu daquela “imagem divina” (imagine divina- v. 139), a saber, o seu esclarecimento sobre a dúvida que tinha a respeito da presença de Trajano e Rifeu no Paraíso. Eles são referidos como “duas luzes” (due luci benedette- v. 146) na comparação que conclui o Canto (relacionando um citarista acompanhando um cantor com o flamejar das duas luzes acompanhando as palavras da Águia), como se vê abaixo:

E come a buon cantor buon citarista
fa seguitar lo guizzo de la corda,
in che più di piacer lo canto acquista,

sì, mentre ch’e’ parlò, sì mi ricorda
ch’io vidi le due luci benedette,
pur come batter d’occhi si concorda,

con le parole mover le fiammette.    (v. 142-148)

E como a um bom cantor bom citarista/ o acompanha com a vibração da corda,/ pelo que o canto se torna mais prazeroso,
assim, enquanto a Águia falava, me lembro/ que vi as duas luzes benditas,/ como os olhos que piscam concordes,
flamejarem de acordo com as palavras dela.


G. Di Paolo- A águia 
   
NOTAS


(1) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p.492.

(2) SINCLAIR, John D.—  “The Divine Comedy of Dante Alighieri. III- Paradiso”.  Translaton and Comment by John D. Sinclair. Oxford Univerfsity Press, p. 296.  O autor cita aí uma interessante afirmação de E.G. Gardner, relacionada à interpretação do v. 8. Segundo Gardner, “Como as estrelas na astronomia de Dante refletem a luz do sol, assim também o poder dos reis e príncipes inferiores derivam do poder do Imperador”. 

(3) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 493.

(4) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.  Penguin Books, 1971, p.237.                           

(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.380-381..
.
(6) Id. ib., p. 381. 

(7) Id. ib., p.381.

(8) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 498. 

(9) Id. ib., p.499.

(10) Id. ib., p.499.

(11) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi.  New American Library, 2003, p.776.
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-Para ouvir o Canto XX:

 

https://www.youtube.com/watch?v=vG21sqQKmlU&t=10s

 

 (acessado em 25.09.20)

 












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