PARAÍSO
Canto XX
Dante refere-se inicialmente ao declínio
do Sol, que finaliza o dia em seu hemisfério, e ao surgimento de um céu
iluminado pelas estrelas. Ele associa o desaparecimento do Sol ao silêncio do “símbolo do mundo e de seus chefes” (/.../ ‘l segno del
mondo e de’ suoi duci- v. 8),
ou seja, ao silêncio da Águia, símbolo do Império, que se cala após falar ao
poeta. Por outro lado, as “luzes vivas”
(vive
luci- v. 10) (as almas)
que a compõem iniciam seus cantos (após a Águia calar-se) e isso é associado ao
surgimento das estrelas (1). Mas o brilho dessas, que é crescente à medida que as almas cantam, ainda provém da fonte primeira, o Sol (de acordo com a astronomia da
época, as estrelas não tinham luz própria) (2). Dante lamenta não poder reter
tais cantos, dada a sua excelência.
Gustave Doré |
Na sequência, o poeta invoca as almas,
chamando-as de “doce amor” (dolce
amor- v. 13), comparando
os sons que produziam com seu canto ao de flautas “sopradas só com pensamentos santos!” (ch’avieno spirto sol
di pensier santi!- v.15).
Em seguida, elas são referidas como “preciosas
e reluzentes gemas” (/.../
i cari e lucidi lapilli- v. 16),
incrustadas no “sexto céu” (sesto lume- v. 17), o céu de Júpiter, onde ele está, com Beatriz. Após
elas silenciarem o seu canto, Dante diz
urdir mi parve un mormorar di fiume
che scende chiaro giù di pietra in pietra,
mostrando l’ubertà del suo cacume (v. 19-21)
me
pareceu ouvir o murmurar de um rio/ que límpido cai, de pedra em pedra,/
mostrando a abundância da sua fonte
Os versos seguintes afirmam que
aquele murmurar provinha da Águia, cujo som é comparado ao de dois instrumentos
musicais, a cítara e a gaita de foles. Esse som se elevou pelo pescoço da ave e
se tornou voz, saindo pelo bico em forma de palavras, aguardadas pelo poeta.
Este afirma que a ave as pronuncia “como esperava meu coração, e nele as
inscrivi” (quali
aspettava il core ov’io le scrissi- v. 30),
passando a reproduzi-las fielmente na continuação do Canto.
A Águia começa a falar pedindo a
atenção de Dante para aquela parte das águias
mortais que suportam a vista do Sol, i.e os olhos (uma característica dessa ave) (3). Diz a ele que os lumes que formam um dos olhos (inclusive o entorno) “são
os de grau mais elevado” (e’ di tutti lor gradi son li sommi- v. 36), considerados todos os que formam a ave.
Passa então a mencionar seis homens justos, e o primeiro deles, é “Aquele que, como pupila, brilha no centro”
(v. 37), vale dizer, o rei David, da
Bíblia, identificado indiretamente pela referência ao fato de que é “o cantor do Espírito Santo” (fu il cantor de lo
Spirito Santo- v. 38) e por
ter transportado a Arca da Aliança “de
vila em vila” (/.../
di villa in villa- v. 39),
até Jerusalém (essa Arca simboliza a presença divina) (4). Ele é o autor dos Salmos, e para compô-los
aceitou o Espírito Santo como seu inspirador. O rei David “agora sabe” (ora
conosce- v. 40) que está
no Paraíso como recompensa por ter feito de sua vontade (v.41) a vontade divina.
O poeta inicia aqui a fazer uso de uma anáfora, repetindo por seis vezes a
expressão “agora ele sabe” (v. 40,
46, 52, 58, 64 e 70), uma para cada um dos justos governantes mencionados nos
versos, explicita ou implicitamente (5).
Salvador Dali |
Segue-lhe, nesse arco da
sobrancelha, aquele que “retardou a morte
para fazer penitência” (morte indugiò per vera penintenza- v.51). Trata-se de Ezequias, o justo rei de Judá, a quem, segundo a Bíblia, o Senhor
concedeu mais quinze anos de vida, após ele ter chorado e rezado ao ouvir o
profeta Isaías lhe comunicar que logo morreria. Ezequias “agora sabe que o julgamento
eterno/ não se altera /.../ (ora conosce ch ‘l giudicio etterno/ non si
trasmuta /.../- v. 52-53)
mesmo com uma “digna súplica” (degno preco- v. 53). Se ele obteve a prorrogação de sua
vida, é porque isso já estava predeterminado por Deus, e não por causa de sua
oração (7).
A seguir, vem aquele “cuja boa intenção resultou em mau fruto”
(sotto
buona intenzion che fé mal frutto- v.56),
ou seja, o imperador Constantino, que
transferiu a sede do Império (“com as
leis e comigo”: con
le leggi e meco- v. 55,
i.e. o símbolo da Águia) para Constantinopla, então Bizâncio, no ano 330, deixando
a região ocidental, centralizada em Roma, para o papa Silvestre (“o Pastor”- v. 57). Essa união dos
poderes temporal e espiritual é para Dante a raiz de todos os males da Igreja
Católica. Constantino “agora sabe” que o mal derivado de sua
decisão não lhe foi nocivo, pois está no Paraíso, mas ela arruinou o mundo (v. 58-60).
O próximo lume daquele arco da
sobrancelha é a alma de Guilherme, o
justo rei do sul da Itália e Sicília, que reinou de 1169 a 1189. Ele é
pranteado pela população daquela terra que hoje é governada pelos reis Charles
de Anjou e Frederico II de Aragão,
também causa de choro, mas agora pelas suas más ações. Guilherme “agora sabe” que o Céu ama o rei justo, “e ele faz ver isso/ no fulgor de seu aspecto” (/.../ e al sembiante/ del suo fulgore if fa
vedere ancora- v.65- 66).
Por fim, a quinta luz da sobrancelha
(e a sexta citada) é o herói troiano Rifeu,
personagem da “Eneida”, que morreu lutando pela sua cidade, considerado por
Virgílio um homem justo. Como ele viveu muito antes de Cristo, sua salvação é
surpreendente para os crentes. Quanto a Rifeu,
“Agora ele sabe” (v. 70) algo
mais sobre a graça divina, “embora sua
vista não divise o fundo” (ben che sua vista non discerna il fondo- v. 72). Para o poeta, a vontade de Deus é
insondável.
Depois disso, a Águia – identificada
como a marca da “eterna Beleza” (etterno piacere- v.
77), i. e. Deus -- se cala, e o poeta a compara a uma cotovia, contente
“da última doçura que a sacia” (de l’ultima dolcezza
che la sazia- v. 75), ou
seja, a salvação de Rifeu. Pela vontade divina
cada coisa torna-se o que realmente é:
Quale allodetta che ‘n aere si spazia
prima cantando, e poi tace contenta
de l’ultima dolcezza che la sazia,
tal mi sembiò l’imago de la ‘mprenta
de l’etterno piacere, al cui disio
ciascuna cosa qual ell’ è diventa. (v.73-78)
Qual
cotovia que, livre, no ar,/ primeiro canta e depois se cala, contente/ da
última doçura que a sacia,
tal me
pareceu a imagem da marca/ da eterna Beleza, por cuja vontade/ cada coisa
torna-se aquilo que ela é.
O poeta então comenta que como ele “/.../ fosse ali, quanto à (sua) minha dúvida,/ transparente
como vidro que reveste a cor” (/.../ ch’io fossi al dubbiar mio/ lì
quase vetro a lo color ch’ el veste- v. 79-80) -- dada a presença das almas bem-aventuradas que podem ler sua mente -- sua dúvida não precisaria ser expressa em
palavras, mas estas acabam saindo de sua boca—“Que coisas são essas?” (/.../ “Che cose son queste?- v.82), externando assim sua admiração por
ver no Paraíso dois pagãos (Trajano e Rifeu), um que viveu depois da vinda de
Cristo, e outro, antes.
A “santa
insígnia” (lo
benedetto segno- v.86), a
Águia, vendo o assombro de Dante com isso, dirige-se a ele, afirmando que o
poeta crê nessas coisas porque ela o diz, mas não percebe as razões que a justificam.
Ele é, diz a Águia, “como aquele que conhece
a coisa/ pelo nome” (/.../
come quei che la cosa per nome/ apprende ben /.../- v. 91-92), mas não a sua quididade (ou
essência, na filosofia escolástica), e
precisa de outro que a mostre. Os comentaristas fazem aqui a distinção da Escolástica entre conhecimento baseado nos sentidos daquele baseado na razão, o
único a apreender o verdadeiro significado dos fenômenos (9).
A seguir, citando indiretamente uma
passagem do Evangelho de Mateus (11:12), a Águia afirma que o “Regnum celorum” (Reino dos Céus- v. 94)
sofre a violência do amor e da esperança, i.e. a entrada nele é forçada por essas
duas virtudes (cf o caso do papa Gregório e de Rifeu). Elas vencem a vontade
divina, “elas a vencem porque ela quer
ser vencida,/ e, vencida, vence com a sua bondade” (ma vince lei perché
vuole esser vinta,/ e, vinta, vince con sua beninanza- v. 98-99), notando-se aqui a presença da figura
de linguagem chamada quiasmo (10), dada a repetição invertida das palavras.
As duas almas que causam admiração a
Dante por estarem na “região angélica”
(region
de li angeli- v.102) -- a
Águia esclarece o poeta -- “Não deixaram
seus corpos, como crês,/ gentios, mas cristãos” ( D’i corpi suoi non
uscir, come credi,/ Gentili, ma Cristiani, /.../- v. 103-104). A primeira, a de Trajano, saiu
excepcionalmente do Inferno (Limbo) onde se encontrava e “retornou a seus ossos” (/.../ tornò a l’ ossa- v. 107). Ressuscitou graças à “viva
esperança” (viva
spene- v. 108 e 109), não
dele mas de S. Gregório (como salienta Hollander), que com ela reforçou suas
preces (v. 110) em favor de Trajano. A alma deste, “retornada à carne, em que permaneceu por pouco tempo,” (tornata ne la carne,
in che fu poco,- v. 113),
acreditou na ajuda de Cristo e inflamando-se “em tanto fogo/ de vero amor” (/.../ in tanto foco/ di vero amor /.../- v.
115-116), foi digna de
vir ao Paraíso, “após a segunda morte”
(/.../ a
la morte seconda- v.116).
Essa narrativa referente à vida do santo decorre de uma lenda medieval.
Amos Nattini |
Quanto à outra alma, a do troiano
Rifeu, de uma época bem anterior à vinda de Cristo, “todo o seu amor lá embaixo dedicou ao que é certo” (tutto suo amor là giù
pose a drittura- v.121),
pelo que Deus lhe premiou, concedendo-lhe a graça de apagar o pecado original
pelo batismo, pré-condição para a admissão no Paraíso. Esse batismo consistirá
nas três Virtudes Teologais (Fé, Esperança e Caridade, ou Amor), virtudes suficientes
para assegurar a salvação. Dante havia visto antes tais virtudes, personalizadas em três damas, quando visitou o
Paraíso Terrestre (cf. “Purgatório”,
XXIX, 121-129):
Quelle tre donne li fur per battesmo
che tu vedesti de la destra rota,
dinanzi al battezzar più d’un millesmo. (v. 127-129)
Aquelas
três damas que viste junto à roda direita do carro/ foram o seu batismo/ mil
anos antes deste ser instituído.
A
Águia conclui sua fala invocando a predestinação, e associando esse mistério
aos “que não veem a Primeira Causa
plenamente” (che
la prima cagion non veggion tota- v.
132), i.e. os seres
humanos e mesmo as almas no Paraíso (11), “uma
vez que mesmo nós, que vemos Deus,/ não sabemos todos os que estão eleitos”
(/.../
ché noi, che Dio vedemo,/ non conosciamo ancor tutti li eletti- v.134-135). Mas isso não a preocupa “pois o que Deus quer, nós queremos também
“ (che
quel que vole Iddio, e noi volemo- v. 138).
Nos versos finais do canto, o poeta
chama de “suave medicamento” (soave medicina- v.141) o que recebeu daquela “imagem divina” (imagine divina- v.
139), a saber, o seu
esclarecimento sobre a dúvida que tinha a respeito da presença de Trajano e
Rifeu no Paraíso. Eles são referidos como “duas
luzes” (due
luci benedette- v. 146) na
comparação que conclui o Canto (relacionando um citarista acompanhando um
cantor com o flamejar das duas luzes acompanhando as palavras da Águia), como
se vê abaixo:
E come a buon cantor buon citarista
fa seguitar lo guizzo de la corda,
in che più di piacer lo canto acquista,
sì, mentre ch’e’ parlò, sì mi ricorda
ch’io vidi le due luci benedette,
pur come batter d’occhi si concorda,
con le parole mover le fiammette. (v. 142-148)
E como
a um bom cantor bom citarista/ o acompanha com a vibração da corda,/ pelo que o
canto se torna mais prazeroso,
assim,
enquanto a Águia falava, me lembro/ que vi as duas luzes benditas,/ como os
olhos que piscam concordes,
flamejarem
de acordo com as palavras dela.
G. Di Paolo- A águia |
NOTAS
(1) HOLLANDER, Robert
& Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert &
Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander. Doubleday, 2007, p.492.
(2) SINCLAIR, John D.— “The Divine Comedy of Dante Alighieri. III-
Paradiso”. Translaton and Comment by
John D. Sinclair. Oxford Univerfsity Press, p. 296. O autor cita aí uma interessante afirmação de
E.G. Gardner, relacionada à interpretação do v. 8. Segundo Gardner, “Como as estrelas
na astronomia de Dante refletem a luz do sol, assim também o poder dos reis e
príncipes inferiores derivam do poder do Imperador”.
(3) HOLLANDER, Robert
& Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 493.
(4)
SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3-
Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds. Penguin Books, 1971, p.237.
(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony
Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam
Books, 1986- p.380-381..
.
(6) Id. ib., p. 381.
(7) Id. ib., p.381.
(8) HOLLANDER, Robert
& Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 498.
(9) Id. ib., p.499.
(10) Id. ib., p.499.
(11) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The
Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi. New American Library, 2003, p.776.
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-Para
ouvir o Canto XX:
https://www.youtube.com/watch?v=vG21sqQKmlU&t=10s
(acessado em 25.09.20)
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