PARAÍSO
Canto XIX
Gustave Doré |
Dante inicia o canto XIX referindo-se
à “bela imagem que em sua doce fruição/
as almas felizes formavam reunidas” (la bela image che nel doce frui/ liete facevan l’anime conserte- v.
2-3). A imagem é da águia imperial romana,
símbolo da justiça terrena (decorrente da justiça
divina), que com as asas abertas se mostrava ao poeta no céu de Júpiter. Cada luz ou alma (de um justo governante
que ali está) formadora da águia era um rubi (cf a metáfora) que brilhava tão
intensamente pela incidência do raio do Sol (Deus) que para os olhos dele era
como se todo o Sol se refletisse numa só alma.
E ocorre então algo que “não foi jamais dito, nem escrito” (non portò voce mai,
né scrisse incostro- v. 8) nem concebido pela fantasia, pois
Dante vê e ouve a águia se manifestar em palavras, usando a primeira pessoa do
singular e não a do plural. Ela diz que “por ser justa e piedosa” (/.../. Per esser giusto e
pio- v.13) (ela, i.e. as
almas dos príncipes justos que a compõem) foi elevada à glória máxima, a do Paraíso. E que
na Terra deixou tal memória (a da vida correta desses governantes) (1), “que lá a gente malvada/ a elogia mas não
segue seu exemplo” (/.../
che le genti lì malvage/ commendan lei, ma non seguon la storia- v. 17-18).
Enfatizando a expressão una de uma
pluralidade de almas, Dante a compara ao calor resultante de muitas brasas:
Così um sol calor di molte brage
si fa sentir, come di molti amori
usciva solo un suon di quella image. (v. 19-21)
Como um
só calor de muitas brasas/ se propaga, assim de muitos amores/ só um som saía
daquela imagem.
Na sequência, o poeta começa a
falar, dirigindo-se àquelas “flores
perenes da eterna alegria” (/.../ O perpetüi fiori/ de l’etterna letizia,
/.../- v. 22-23), que
fazem parecer um só todos os seus perfumes. Pede a elas para livrá-lo de seu “grande jejum” (il gran digiuno- v.
25), uma vez que ele não
encontra na Terra o alimento necessário para superar o seu jejum, i.e. saciar a
sua curiosidade. Ele está ciente de que há um outro reino no céu que “é espelho da justiça divina” (la divina giustizia fa suo specchio- v. 29) (este é o sétimo céu, de Saturno,
presidido pelos anjos chamados Tronos, que desvendam os julgamentos de Deus para
os bem-aventurados, já referidos no canto IX, v.61-63) (2). Todavia, neste reino
em que estão, o céu de Júpiter, os justos também contemplam a perfeição divina de
modo não velado. Eles, como todos os bem-aventurados, podem ler o seu pensamento. Assim, Dante conclui a sua
fala afirmando: “sabeis qual é/ a dúvida que me causa fome há tanto tempo” ( /../ sapete qual è
quello/ dubbio che m’è digiun contanto vecchio- v. 32-33) (3). Qual é essa dúvida será
explicitada para nós, leitores, mais adiante neste Canto (trata-se da exclusão
dos pagãos virtuosos do Paraíso apenas por terem nascido antes da vinda de
Cristo).
A seguir, os versos contêm uma comparação.
“Aquele símbolo (a águia) de louvores/ à divina graça formado” ( /.../ quel segno, che
di laude/ de la divina grazia era contesto- v. 37-38), acompanhado de cantos, é comparado
a um falcão, livre do capuz e alegre, “com
vontade (de voar) e fazer-se belo”
(voglia
mostrando e faccendosi bello- v.36) (nas alturas).
Essa águia então recomeça a falar.
Afirma que Deus (“Aquele que girou o
compasso/ para assinalar os confins do mundo”: “Colui che volse il
sesto/ a lo stremo del mondo, /.../- v. 40-41, onde está presente tanto o “oculto” quanto o “manifesto”) não pode imprimir o seu “poder” (= “virtude criativa”) (4) em
todo o universo, pois isso superaria “em
infinito excesso” (in
infinito eccesso- v. 45)
sua criação. Deus é infinito e as coisas criadas, finitas. O “primeiro ser soberbo” (/.../ ‘l primo superbo- v. 46), Lúcifer, “que foi a mais alta de todas as criaturas” (che fu la somma d’ogne creatura- v.47),
“por não querer esperar a luz, caiu do
céu, imaturo” (per
non aspettar lume, cadde acerbo- v.48).
Em seu período de provação, Lúcifer lideraria uma rebelião, que acabou por precipitá-lo do céu, ainda imaturo (sua
criação ainda não se completara plenamente) (5). Toda natureza (como a natureza humana), inferior
a ele, (6) “é pequeno receptáculo àquele
bem/ que não tem fim e é a sua própria medida” (è corto recettacolo a quel bene/ che non ha fine
e sé com sé misura- v.50-51)
(Deus). A águia é direta em dizer a Dante que sua “visão” (ou capacidade de
entendimento), que é um dos raios da mente de Deus (v.52-53), não é tão potente
“para reconhecer o seu princípio (Deus) / muito além daquilo que lhe foi manifesto”
(/.../
che suo principio non discerna/ molto di là da quel che l’è parvente- v. 56-57).
Assim, sua visão da Justiça eterna é
comparada à do olho vendo o mar desde a orla, ciente de que há um fundo,
escondido em sua profundidade. A Justiça divina, como o fundo do mar, está
presente mas não é vista (a razão humana não pode penetrar nela).
A seguir, a águia opõe a luz
verdadeira, aquela que provém do “céu
sereno” (v.64), de outra luz, que na realidade “é treva,/ ou sombra da carne ou veneno dela” ( /.../ è tenèbra/ od
ombra de la carne o suo veleno- v. 65-66 ).
Só a luz da graça divina pode vencer as limitações do intelecto humano (“sombra
da carne”) ou o pecado (“veneno da carne”) (7).
Ela prossegue afirmando que o
esconderijo da “justiça viva” ( giustizia viva- v. 68 ), a quem Dante dirigiu tantas questões
(subentendidas nos v. 25-33) agora lhe é
aberto. Explicita agora, para nós leitores, o que se passa na mente de Dante.
Um homem nasce às margens do rio Indo, nunca ouviu falar em Cristo, mas sua
conduta é boa, sem cometer pecado. E um dia,
Muore non battezzato e sanza fede:
ov’ è questa giustizia che ‘l condanna?
o0v’ è colpa sua, se ei non crede? (v. 76-78)
Morre sem
batismo e sem fé:/ Onde está essa justiça que o condena?/ Onde está sua culpa,
se não crê?
Dante pensa assim. E é repreendido
desta forma:
Or tu chi se’, che vuo’ sedere a scranna,
per giudicar di lungi mille miglia
com la veduta corta d’una spanna? (v.79-81)
Ora, tu
quem és para sentar na cadeira do juiz/ e julgar a mil milhas de distância/ com
tua vista curta de um palmo?
A águia continua seu discurso recomendando
guiar-se pela (Sagrada) Escritura, pois sem ela, “muito teria para duvidar” ( da dubitar sarebbe a maraviglia- v.84 ). A fé no que ela contém auxilia a
razão humana, que por si só não chega até essas verdades reveladas (8). As “mentes obtusas” (menti grosse- v. 85) das criaturas humanas (“animais terrenos”: terreni animali- v.85)
não veem que a “vontade primeira” (La prima volontà- v.
86) (ou a vontade divina)
(9) “é o sumo bem” (è sommo ben- v. 87), que todo bem criado é causado por
ela própria. Assim, não poderia haver discordância entre o desejo de justiça de
Dante e a “vontade primeira”. Mas
isso deve ser aceito pela fé, não é demonstrado pela razão.
Interrompe-se por um momento a fala da
águia e Dante introduz em seu relato este comentário, sob a forma de uma
comparação, em que uma cegonha é associada à águia e um dos filhotes dela, a
Dante (v. 91-96):.
Como sobre o ninho gira/
a cegonha após alimentar os
filhos/ e como aquele que se alimentou olha para ela (Quale sovresso il nido si rigira/ poi c’ha pasciuti
la cicogna i figli,/ e come quel ch’è pasto la rimira;- v. 91-93),
assim também se sentiu Dante, erguendo os
olhos para ver a águia, depois de alimentado (espiritualmente) por ela, que
abriu as asas, impelida pelas inúmeras almas concordes que a formavam.
Rodeando, a águia cantava e comparava
a incompreensão do canto dela por Dante com outra incompreensão, a da Justiça
divina, por parte dos seres humanos (indicado pelo uso do “vós”):
/.../ “Quali
son le mie note a te, che non le’ ntendi,
tal è il giudicio etterno a voi mortali”. (v. 97-99)
/.../ “Como/
são as minhas notas para ti, que não as entendes,/ tal é o juízo eterno a vós
mortais”.
Mais adiante, aquele “símbolo (a águia)/ que fez os romanos reverenciados no mundo” ( /.../ segno/ che fé i
Romani al mondo reverendi- v. 101-102) afirma que “A este reino (o do Paraíso)/
não subiu jamais quem não acreditou em Cristo” ( /.../ A questo regno/
non salì mai chi non credette ‘n Cristo- v. 103-104). Mas, diz ele, muitos cristãos
atuais estarão, no Dia do Juízo, mais afastados de Cristo do que os que não o
conheceram. E quando os cristãos forem
separados em duas fileiras -- uma dos
salvos e outra dos condenados, ou, como ele diz, “uma dos ricos para sempre, e outra, dos pobres” ( l’uno in etterno ricco
e l’altro inòpe- v. 111)
– o poeta, pela boca da águia, opta por vê-los do ponto de vista dos não-cristãos,
representados pela menção aos etíopes (v.109) ou aos persas (v. 112). Ela então
afirma que “o etíope condenará tais
cristãos” ( e
tai Cristian dannerà l’ Etïòpe- v. 109)
(que diferentemente dos etíopes justos não-salvos tiveram a chance de ir para o
Paraíso e a desprezaram) (10). Faz depois uma pergunta retórica:
Che poran dir li Perse a’ vostri regi,
come vedranno quel volume aperto
nel qual si scrivon tutti suoi dispregi? ( v. 112-114).
Que dirão
os persas aos vossos reis/ quando virem aberto aquele volume/ no qual se
escrevem todos os seus malfeitos?
Tal
volume, de acordo com os comentaristas (11), é aquele referido na Bíblia
(“Apocalipse”, XX, 12), aberto no Dia do Juízo.
O primeiro dos “reis” injustos a ser
citado naquele volume é Alberto (de Áustria) (1248-1308), cujas ações em breve (em
1304) devastarão o reino de Praga (ou da Boêmia), desrespeitando assim os
direitos do vassalo. Esse reino estava a
cargo de Venceslau IV, seu cunhado (12).
Depois é citado “aquele que
morrerá pelo golpe do javali” (quel che morrà di colpo di cotenna- v. 120), vale dizer, Filipe o Belo de França
(cf menção ao rio Sena no v. 118), que teria
falsificado moeda em prejuízo da população. Morreu em 1314 num acidente quando participava
de uma caça ao urso (13). O livro refere-se, na sequência, às guerras
empreendidas, por sede de poder (/.../ la superbia ch’ asseta- v. 121), entre o rei inglês e o escocês (14); refere-se também
à luxúria e à indolência “daquele de
Espanha (Ferdinando IV de Castela) e
daquele de Boêmia” (Venceslau IV) (di quel di Spagna e di quel di Boemme- v. 125); ao Coxo
de Jerusalém (Ciotto
di Ierusalemme- v.127)
(Charles II, de Anjou, Charles, o Coxo, também chamado rei de Jerusalém), rei da Apúlia e Nápoles
(15), cujas ações más foram mil vezes mais frequentes do que as boas, daí a
menção aos algarismos romanos I e M nos
vv. 128-9, que são também a primeira e última letra da palavra Ierusalem (16). Ver-se-á também naquele
livro registro (abreviado, porque as ações más são muitas e o espaço é pequeno-
v. 134-135) da “avareza e vilania/
daquele que guarda a ilha do fogo/ onde Anquises findou a longa vida” ( /.../ l’avarizia e la
viltate/ di quei che guarda l’isola del foco,/ ove Anchise finì la lunga etate”-
v. 130-132). Quem
“guarda” tal ilha (chamada “do fogo” por causa da presença do vulcão Etna) (17),
a da Sicília, é o seu rei Frederico II, de Aragão. E Anquises é o pai de Enéas,
que ali faleceu (17). É citada ainda a “obra
vergonhosa” ( l’opere
sozze- v. 136 ) de Jaime
e Jaime II, respectivamente tio e irmão desse Frederico, que desonraram, além
de sua estirpe, duas coroas (v.137-8), pois o primeiro foi rei de Majorca e o
segundo, de Aragão (18). São citados ainda os reis de Portugal (D.Diniz, que
reinou de 1279 a 1325 ) e da Noruega (Akon VIII), além do rei da Rascia (ou
Sérvia), que falsificou a moeda de Veneza. Quanto a D. Diniz e ao rei da Noruega, nota em Mandelbaum et al. afirma que “não parecem merecer o
opróbrio de Dante”. Quanto a D. Diniz, especificamente, Graça Moura (19)
considera pouco consistente a inclusão dele “no livro das malfeitorias dos reis por ser ‘todo dado a adquirir
haveres’”, conforme antigo comentador, o que seria explicado pelo seu interesse
nos bens da Ordem dos Templários, quando da liquidação desta.
Encerra-se aqui, no v. 141, o
conjunto de nove tercetos relativos aos maus reis citados, iniciado no v.115.
Cada grupo de três tercetos começa, nos versos originais, por uma mesma
expressão, cujas primeiras letras formam a palavra L- V (ou U)- E. “Lue” significa “peste” ou “pestilência” (20).
É assim, usando anáforas, que Dante cria um artifício para qualificar
globalmente esses reis de seu tempo...
O Canto conclui apostrofando a
Hungria, que será “ditosa” (v. 142)
se não tiver mais maus governantes (como
tem tido), assim como será Navarra, “se
se defender com os montes que a circundam!” ( se s’armasse del
monte che la fascia!- v. 144 ),
i.e. os Pirineus. Por último, é citado indiretamente o reino de Chipre, dada a
menção a duas cidades suas, Nicosia e Famagosta, que “se lamentam e bradam contra seu bestial rei” (per la lor bestia si
lamenti e garra- v. 147),
Henrique II de Lusignan, que não deve ser separado do rol de maus reis mencionado acima (21).
Amos Nattini |
NOTAS
(1) MARTINS, Cristiano- “A Divina Comédia”.
Segundo volume. Purgatório. Paraíso. Tradução, introdução e notas de Cristiano
Martins. 5a edição. Belo Horizonte: Ed Itatiaia, 1989, p. 443.
(2) Id. ib,, p. 364 e 443.
(3) Id. ib., p.443.
(4) ZOLI, M. e ZANOBINI, F.- “La Divina
Commedia: a cura di M.Zoli e F.Zanobini. Inferno. Purgatorio. Paradiso”.
Bulgarini, 2013, p. 897.
(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony
Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam
Books, 1986- p.373.
(6) HOLLANDER, Robert
& Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert &
Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander. Doubleday, 2007, p. 472- 473.
(7) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The
Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi. New American Library, 2003, p.766.
(8) Cf citação de “Monarchia” in MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso, op cit, p.378. .
(9) MARTINS, Cristiano- “A Divina Comédia”. Segundo volume,
op cit, p. 446..
(10) HOLLANDER, Robert
& Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 476.
(11) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso, op cit, p.378.
(12)
Id. ib., p. 379.
(13)
Id. ib, p. 379
(14)
Id. ib, p. 379
(15) HOLLANDER, Robert
& Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 478.
(16) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso, op cit, p.379.
(17) HOLLANDER, Robert
& Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 478; MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso, op cit, p.379.
.
(18) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso, op cit, p.379.
(19) MOURA, Vasco Graça—“Dante Alighieri- A
Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco da Graça Moura. S.Paulo:
Landmark, 2005- p. 765. .
(20) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso, op cit, p.378.
(21) HOLLANDER, Robert
& Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 479.
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-Para
ouvir o Canto XIX:
https://www.youtube.com/watch?v=aALdjTPAR2I
(acessado
em 23.09.20)
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