Canto XXI
Enquanto
sobem ao sétimo céu, o de Saturno, onde estão os espíritos dos contemplativos,
Dante tem os olhos fixos no rosto de Beatriz, assim como a mente, que se
afastara de qualquer outro pensamento (v. 1-3). Ele apenas se dedica a essa
contemplação. Mas Beatriz não lhe sorri.
Gustave Doré |
E ela inicia sua fala explicando por
que isso não ocorreu. “Se eu risse, tu
serias como Sêmele/ que se transformou em cinzas” ( /.../ S’io
ridessi,/.../ tu ti faresti quale/ fu Semelè quando di cener fessi- v. 4-6). Sêmele foi uma jovem da mitologia
grega induzida pela ciumenta Juno a pedir a Júpiter para se mostrar a ela em
todo seu esplendor, o que teve aquele efeito, como consequência (1).
Assim, à medida que Beatriz sobe a uma
esfera celeste mais elevada, ou sobe “pelas
escadarias/ do eterno palácio” (/.../ per le scale/ de l’etterno palazzo
/.../- v. 7-8) (note-se a
metáfora), sua beleza se intensifica, e ela tem que ser limitada (ao não
sorrir), caso contrário tal fulgor, para um mortal, “seria ramo que o raio despedaça” (sarebbe fronda che trono scoscende- v.
12).
O “sétimo
esplendor” (settimo
splendore- v.13), a
esfera de Saturno, para onde eles ascenderam, está em conjunção com a
constelação de Leão, pois ele está “sob o
peito do Leão ardente” (/.../ sotto l’ petto del Leone ardente- v. 14), o que se verifica em março-abril
(no caso, de 1300). O planeta “lança seus raios sobre a Terra com os quais a força dele se mistura”
(raggia
mo misto giù del suo valore- v. 15),
i.e. a força da Constelação se associava aos raios do planeta (2).
Beatriz encerra a fala em que faz essas observações alertando Dante para o que ele verá na sequência. Diz ela: “faz teus olhos refletirem a figura/ que te
aparecerá neste espelho” (e fa di quelli specchi a la figura/ che ‘n questo
specchio ti sarà parvente- v. 17-18),
ou neste planeta Saturno, que mais adiante é referido como “cristal” (cristallo- v. 25) (3).
Dante contemplava (literalmente, se
alimentava de) o “rosto abençoado” (l’ aspetto beato- v.20) de Beatriz. Ele então, atendendo ao
seu pedido, desvia o olhar para outro objeto, “confrontando um prazer com o outro” ( contrapesando l’ un
con l’altro lato- v. 24),
i.e., o prazer de contemplá-la com o prazer de obedecê-la.
Dentro al cristallo che ‘l vocabol porta,
cerchiando il mondo, del suo caro duce
sotto cui giacque ogne malizia morta, (v. 25-27)
Dentro
do cristal que, girando em torno da Terra,/ porta o nome daquele caro rei/ sob
quem toda maldade desapareceu,
vale
dizer, dentro do planeta que toma o nome de Saturno, “o melhor dos deuses”, pai
de Júpiter (que reinou numa mítica idade de ouro e de inocência), Dante vê uma
escada “da cor do ouro quando reflete o
raio solar” (di
color d’ oro in che raggio traluce- v. 28)
que subia tanto que sua vista não podia segui-la. Pelos seus degraus, desciam
luzes esplendorosas, i.e. os espíritos dos contemplativos, para recebê-lo. Tais
espíritos procedem do Empíreo, onde estão todas as almas salvas, além dos anjos.
Essa escada é associada pelos comentaristas àquela do sonho de Jacó, conforme é
narrado na Bíblia (Gênesis 28:12) (4).
Gustave Doré |
Em seguida, essas luzes são
comparadas a certos pássaros (gralhas ou corvos) que primeiro juntos se alçam
no começo do dia para aquecer as plumas resfriadas pela noite e
poi altre vanno via sanza ritorno,
altre rivolgon sé onde son mosse,
e altre roteando fan soggiorno; (v. 37-39)
depois umas
se vão sem retornar,/ outras voltam ao local de onde partiram,/ e outras
ainda permanecem voando, em círculos;
Os comentaristas comparam essas aves às
almas contemplativas, que ou se isolam do mundo, ou voltam aos seus retiros ou
não voltam, fazendo seu trabalho externamente (5).
As luzes esplendorosas descem até um
determinado degrau, onde se apresentam conjuntamente. E o brilho de uma delas, mais
perto de Dante, se intensifica, fazendo este compreender que tal brilho
significa amor por ele. Dante tem vontade de se dirigir a esse espírito, fazer-lhe
perguntas, saber quem é -- só adiante, no v. 121, ele dirá que se chamou Pedro
Damiano na Terra -- mas se contém, porque Beatriz está silente. Esta porém lê o
seu pensamento. Ela, “que via o meu silêncio/ por meio d’Aquele que
tudo vê” ( Per
ch’ ella, che vedëa il tacer mio/ nel veder di colui che tutto vede- v.49-50), um privilégio dos bem-aventurados, diz
então para ele: “Satisfaz teu ardente
desejo” (Solvi
il tuo caldo disio- v. 51).
Dante então lhe pergunta porque esse
espírito está mais próximo dele e porque aquele céu silenciou “a doce sinfonia do Paraíso” (la dolce sinfonia di
Paradiso- v. 59), que nas
esferas abaixo soa tão devotamente.
O espírito começa a responder pela
segunda pergunta. Ele diz que ali Dante não pode ouvir o som musical nem ver Beatriz
sorrir porque isso seria excessivo para os seus sentidos de mortal (6).
Em seguida, afirma que ele desceu “os degraus da escada santa” (/.../ per li gradi de
la scala santa-v. 64)
para recebê-lo, não porque tenha mais amor que os outros, pois “mais e igual amor ao meu acima ferve” (ché più e tanto amor quinci
sù ferve- v. 68). Ele assim
o faz condicionado pela “alta caridade”
(l’alta
carità- v.70), o amor de
Deus (7), que o leva, e os outros espíritos bem-aventurados “a servir/ prontamente à vontade que governa
o mundo” (/.../
che ci fa serve/ pronte al consiglio che il mondo governa- v. 70-71), ou seja, a vontade de Deus.
Busto de Pedro Damiano |
Dante volta a se manifestar, afirma
perceber que o amor desses espíritos basta para que eles (livremente) sigam a
vontade da “Eterna Providência” (provedenza etterna- v.
75) (este último termo,
em latim, significa “ver antes”) (8), mas não compreende porque só ele, dentre
todos, foi o encarregado de tal função (de receber e se comunicar com Dante).
Ao ouvir, isso, o “lume” (v.80), como
uma “mó veloz” (veloce mola- v.81), gira sobre si mesmo (tal giro, como
o brilho maior, indica a intensidade de sua alegria) (9) e lhe responde. Começa
por dizer que a “luz divina” (Luce divina- v. 83), penetrando nessa que o envolve, o
eleva tanto que ele vê a “Alta Fonte”
(somma
essenza- v. 87) (Deus) da
qual a sua luz emana. “Daí vem a alegria
com a qual flamejo” (Quinci
vien l’allegrezza ond’io fiammeggio- v. 88),
afirma ele, comparando a sua visão clara (de Deus) com a claridade da sua
chama. Todavia, ele não poderá responder a essa pergunta de Dante:
Ma quell’ alma nel ciel che più si schiara,
quel serafin che ‘n Dio più l’ occhio ha
fisso,
a la dimanda tua non satisfara,
però che sì s’innoltra ne lo abisso
de l’etterno statuto quel che chiedi,
che da ogne creata vista è scisso. (v. 91-96)
Mas nem
mesmo aquela alma mais iluminada do céu,/ aquele serafim que mais contempla
Deus,/ poderiam responder à tua pergunta,
pois
adentra tanto no abismo/ da Eterna Vontade aquilo que demandas,/ que é excluído
da vista de toda criatura.
Assim, nenhuma criatura, ou ser
criado por Deus, nem mesmo a “alma mais
iluminada do céu” (v.91), Maria, nem os serafins, que ocupam na hierarquia
angelical a posição mais elevada, a nona, poderão responder aquela pergunta. A
propósito, abaixo dos serafins, estão os querubins, tronos, dominações,
virtudes, potestades, principados, arcanjos e anjos (10).
Pedro
Damiano conclui esta fala com a recomendação seguinte: “E ao
mundo mortal, quando retornares,/ relata isso /.../“ (E al mondo mortal,
quando tu riedi,/ questo rapporta, /.../- v. 97-98). Após as palavras dele, Dante se
retrai e se limita “humildemente a
perguntar quem era” (/.../
e mi ritrassi/ a dimandarla umilmente chi fue-
v.104-105).
O espírito começa então sua “terceira fala” (terzo sermo- v. 112) dirigida a Dante. Antes de se identificar, refere-se à
localização geográfica do claustro (v.118) onde ele se dedicou “tão firmemente ao serviço de Deus” (al servigio di Dio mi
fe’ sì fermo- v. 114). Está
situado numa elevação que faz parte das montanhas (a cadeia dos Apeninos) localizadas “Entre as duas costas da Itália” (Tra’ due liti d’Italia /.../- v. 106), ou seja, as costas do Adriático e
do Tirreno. Trata-se do convento beneditino Santa Croce de Fonte Avellana (11),
“um lugar ermo consagrado,/ dedicado
somente à adoração de Deus” (/.../
è consecrato un ermo,/ che suole esser disposto a sola latria- v. 110-111). Ali vivia, com sua alimentação frugal, “suportava com facilidade o calor e o frio/ contente
em meus pensamentos contemplativos” (lievemente passava caldi e geli/ contento ne’
pensier contemplativi- v. 116-117). Na sequência, diz que “Aquele claustro costumava dar almas a estes céus, abundantemente;/ mas
agora tornou-se estéril” (Render solea quel chiostro a questi cieli/ fertilemente;
e ora è fatto vano- v.118-119), uma crítica ao clero de sua época.
É só então, depois dessas observações, que o espirito se identifica. Afirma que
foi chamado Pedro Damiano naquele local, “e
Pedro Pecador, na Casa/ de Nossa Senhora na costa do Adriático” (e Pietro
Peccator fu’ ne la casa/ di Nostra Donna
in sul lito adriano- v. 122-123).
Aqui, os comentaristas dizem que Dante confundiu duas pessoas diferentes. E
assinalam também um anacronismo no v. 125, pois o chapéu cardinalício aí referido só seria
adotado mais de 170 anos após a morte de Pedro Damiano, que viveu de 1007 a
1072 e foi um monge erudito, autor de muitos escritos, por isso considerado
Doutor da Igreja (12). Ele era um asceta mas foi “arrastado a tomar aquele chapéu/ que sempre passa de mau para pior ”
( /.../
fui chiesto e tratto a quel cappello/ che pur di male in peggio si travasa- v.
125-126), outra crítica à Igreja de então, no caso, ao tipo de
pessoas escolhidas para ocupar os cargos
de cardeal.
A seguir, Damiano faz outra crítica,
agora indireta, aos prelados da Igreja, mencionando “Cefás” (v.127) (que significa “pedra” em aramaico, uma referência a
S.Pedro) e o “grande vaso/ do Espírito
Santo” (/.../
il gran vasello/ de lo Spirito Santo. /.../- v.127-128) (trata-se de S. Paulo, chamado “Vaso
de Eleição”, na Bíblia). Eles eram magros e estavam descalços (magri e scalzi- v.
128), “recebendo o alimento de qualquer casa” (prendendo il cibo da
qualunque ostello- v.129).
“Agora, os modernos pastores, de tão
pesados,/ precisam de quem os ampare de um lado e do outro,/ e de quem por trás
os alcem (para a sela)./ Cobrem com seu manto os cavalos/ de modo que duas
bestas andam sob uma mesma pele:” (Or voglion quinci e quindi chi rincalzi/ li
moderni pastori e chi li meni,/ tanto son gravi, e chi di rietro li alzi.
Cuopron d’ i manti loro i palafreni,/ sì che due bestie van sott’ una pelle:”- v.
130-134). Com estas
palavras ásperas, Damiano encerra sua fala.
O Canto termina com o poeta
descrevendo o movimento das chamas que desciam os degraus da escada, e
rodopiavam: “e cada giro as fazia mais
belas” (e
ogne giro le facea più belle- v. 138), o que indica alegria e aprovação das almas às
palavras de Pedro Damiano (13). Elas se juntam em torno deste, diz Dante, mas
depois -- “deram um grito tão alto/ que
não poderia ser comparado a nenhum daqui;/
nem eu o entendi, tanto me venceu o estrondo” (e fero un grido di sì
alto suono,/ che non potrebbe qui assomigliarsi;/ né io lo ‘ntesi, sì mi vinse
il tuono.- v.140-142). A
razão desse grito será explicada por Beatriz no próximo Canto.
Amos Nattini |
(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony
Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam
Books, 1986- p.383.
(2) Id. ib, p. 384.
(3) Id. ib, p. 384.]
(4) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The
Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara
Reynolds. Penguin Books, 1971, p. 246; HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante
Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander.
Introduction & Notes by Robert Hollander.
Doubleday, 2007, p. 518.
(5) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated
with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986,
p.253.
(6) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of
Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 384. .
(7) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit,
p.254.
(8) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The
Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi. New American Library, 2003, p.784.
(9) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of
Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 385.
(10) ZOLI, M. e ZANOBINI, F.- “La Divina
Commedia: a cura di M.Zoli e F.Zanobini. Inferno. Purgatorio. Paradiso”. Bulgarini,
2013, p. 910.
(11) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy
of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 385
(12) Id. ib, p. 385; cf também HOLLANDER, Robert
& Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 522-524.
(13) LONGNON, Henri- “La Divine Comédie”.
Traduction, préface, notes et commentaires par Henri Longnon. Paris: Garnier,
1951, p. 675.
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Para
ouvir o Canto XXI:
https://www.youtube.com/watch?v=Zvd-WgpHupc
(acessado em 28.09.20)
Salvador Dalí |
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