segunda-feira, 3 de junho de 2019

CANTO XXI


 PARAÍSO


Canto XXI


            Enquanto sobem ao sétimo céu, o de Saturno, onde estão os espíritos dos contemplativos, Dante tem os olhos fixos no rosto de Beatriz, assim como a mente, que se afastara de qualquer outro pensamento (v. 1-3). Ele apenas se dedica a essa contemplação. Mas Beatriz não lhe sorri.

Gustave Doré

          E ela inicia sua fala explicando por que isso não ocorreu. “Se eu risse, tu serias como Sêmele/ que se transformou em cinzas” ( /.../ S’io ridessi,/.../ tu ti faresti quale/ fu Semelè quando di cener fessi- v. 4-6). Sêmele foi uma jovem da mitologia grega induzida pela ciumenta Juno a pedir a Júpiter para se mostrar a ela em todo seu esplendor, o que teve aquele efeito, como consequência  (1). 

Assim, à medida que Beatriz sobe a uma esfera celeste mais elevada, ou sobe “pelas escadarias/ do eterno palácio” (/.../ per le scale/ de l’etterno palazzo /.../- v. 7-8) (note-se a metáfora), sua beleza se intensifica, e ela tem que ser limitada (ao não sorrir), caso contrário tal fulgor, para um mortal, “seria ramo que o raio despedaça” (sarebbe fronda che trono scoscende- v. 12).

O “sétimo esplendor” (settimo splendore- v.13), a esfera de Saturno, para onde eles ascenderam, está em conjunção com a constelação de Leão, pois ele está “sob o peito do Leão ardente” (/.../ sotto l’ petto del Leone ardente- v. 14), o que se verifica em março-abril (no caso,  de 1300).  O planeta “lança seus raios sobre a Terra com os quais a força dele se mistura” (raggia mo misto giù del suo valore- v. 15), i.e. a força da Constelação se associava aos raios do planeta (2).

Beatriz encerra a fala em que faz essas observações alertando Dante para o que ele verá na sequência. Diz ela: “faz teus olhos refletirem a figura/ que te aparecerá neste espelho” (e fa di quelli specchi a la figura/ che ‘n questo specchio ti sarà parvente- v. 17-18), ou neste planeta Saturno, que mais adiante é referido como “cristal”  (cristallo- v. 25) (3).

Dante contemplava (literalmente, se alimentava de) o “rosto abençoado” (l’ aspetto beato- v.20) de Beatriz. Ele então, atendendo ao seu pedido, desvia o olhar para outro objeto, “confrontando um prazer com o outro” ( contrapesando l’ un con l’altro lato- v. 24), i.e., o prazer de contemplá-la com o prazer de obedecê-la.

Dentro al cristallo che ‘l vocabol porta,
cerchiando il mondo, del suo caro duce
sotto cui giacque ogne malizia morta,          (v. 25-27)

Dentro do cristal que, girando em torno da Terra,/ porta o nome daquele caro rei/ sob quem toda maldade desapareceu,

vale dizer, dentro do planeta que toma o nome de Saturno, “o melhor dos deuses”, pai de Júpiter (que reinou numa mítica idade de ouro e de inocência), Dante vê uma escada “da cor do ouro quando reflete o raio solar” (di color d’ oro in che raggio traluce- v. 28) que subia tanto que sua vista não podia segui-la. Pelos seus degraus, desciam luzes esplendorosas, i.e. os espíritos dos contemplativos, para recebê-lo. Tais espíritos procedem do Empíreo, onde estão todas as almas salvas, além dos anjos. Essa escada é associada pelos comentaristas àquela do sonho de Jacó, conforme é narrado na Bíblia (Gênesis  28:12) (4).


Gustave Doré

            Em seguida, essas luzes são comparadas a certos pássaros (gralhas ou corvos) que primeiro juntos se alçam no começo do dia para aquecer as plumas resfriadas pela noite e

poi altre vanno via sanza ritorno,
altre rivolgon sé onde son mosse,
e altre roteando fan soggiorno;         (v. 37-39)

depois umas se vão sem retornar,/ outras voltam ao local de onde partiram,/ e outras ainda permanecem voando, em círculos;

Os comentaristas comparam essas aves às almas contemplativas, que ou se isolam do mundo, ou voltam aos seus retiros ou não voltam, fazendo seu trabalho externamente (5).

As luzes esplendorosas descem até um determinado degrau, onde se apresentam conjuntamente. E o brilho de uma delas, mais perto de Dante, se intensifica, fazendo este compreender que tal brilho significa amor por ele. Dante tem vontade de se dirigir a esse espírito, fazer-lhe perguntas, saber quem é -- só adiante, no v. 121, ele dirá que se chamou Pedro Damiano na Terra -- mas se contém, porque Beatriz está silente. Esta porém lê o seu pensamento. Ela, “que via o meu silêncio/ por meio d’Aquele que tudo vê” ( Per ch’ ella, che vedëa il tacer mio/ nel veder di colui che tutto vede- v.49-50), um privilégio dos bem-aventurados, diz então para ele: “Satisfaz teu ardente desejo” (Solvi il tuo caldo  disio- v. 51).   

Dante então lhe pergunta porque esse espírito está mais próximo dele e porque aquele céu silenciou “a doce sinfonia do Paraíso” (la dolce sinfonia di Paradiso- v. 59), que nas esferas abaixo soa tão devotamente.

O espírito começa a responder pela segunda pergunta. Ele diz que ali Dante não pode ouvir o som musical nem ver Beatriz sorrir porque isso seria excessivo para os seus sentidos de mortal (6).

Em seguida, afirma que ele desceu “os degraus da escada santa” (/.../ per li gradi de la scala santa-v. 64) para recebê-lo, não porque tenha mais amor que os outros, pois “mais e igual amor ao meu acima ferve” (ché più e tanto amor quinci sù ferve- v. 68). Ele assim o faz condicionado pela “alta caridade” (l’alta carità- v.70), o amor de Deus (7), que o leva, e os outros espíritos bem-aventurados “a servir/ prontamente à vontade que governa o mundo” (/.../ che ci fa serve/ pronte al consiglio che il mondo governa- v. 70-71), ou seja, a vontade de Deus.

Busto de Pedro Damiano
Dante volta a se manifestar, afirma perceber que o amor desses espíritos basta para que eles (livremente) sigam a vontade da “Eterna Providência” (provedenza etterna- v. 75) (este último termo, em latim, significa “ver antes”) (8), mas não compreende porque só ele, dentre todos, foi o encarregado de tal função (de receber e se comunicar com Dante). Ao ouvir, isso, o “lume” (v.80), como uma “mó veloz” (veloce mola- v.81), gira sobre si mesmo (tal giro, como o brilho maior, indica a intensidade de sua alegria) (9) e lhe responde. Começa por dizer que a “luz divina” (Luce divina- v. 83), penetrando nessa que o envolve, o eleva tanto que ele vê a “Alta Fonte” (somma essenza- v. 87) (Deus) da qual a sua luz emana. “Daí vem a alegria com a qual flamejo” (Quinci vien l’allegrezza ond’io fiammeggio- v. 88), afirma ele, comparando a sua visão clara (de Deus) com a claridade da sua chama. Todavia, ele não poderá responder a essa pergunta de Dante:

Ma quell’ alma nel ciel che più si schiara,
quel serafin che ‘n Dio più l’ occhio ha fisso,
a la dimanda tua non satisfara,

però che sì s’innoltra ne lo abisso
de l’etterno statuto quel che chiedi,
che da ogne creata vista è scisso.    (v. 91-96)

Mas nem mesmo aquela alma mais iluminada do céu,/ aquele serafim que mais contempla Deus,/ poderiam responder à tua pergunta,
pois adentra tanto no abismo/ da Eterna Vontade aquilo que demandas,/ que é excluído da vista de toda criatura. 

            Assim, nenhuma criatura, ou ser criado por Deus, nem mesmo a “alma mais iluminada do céu” (v.91), Maria, nem os serafins, que ocupam na hierarquia angelical a posição mais elevada, a nona, poderão responder aquela pergunta. A propósito, abaixo dos serafins, estão os querubins, tronos, dominações, virtudes, potestades, principados, arcanjos e anjos (10).

            Pedro Damiano conclui esta fala com a recomendação seguinte:   E ao mundo mortal, quando retornares,/ relata isso /.../“ (E al mondo mortal, quando tu riedi,/ questo rapporta, /.../- v. 97-98). Após as palavras dele, Dante se retrai e se limita “humildemente a perguntar quem era” (/.../ e mi ritrassi/ a dimandarla umilmente chi fue-  v.104-105).

            O espírito começa então sua “terceira fala” (terzo sermo- v. 112) dirigida a  Dante. Antes de se identificar, refere-se à localização geográfica do claustro (v.118) onde ele se dedicou “tão firmemente ao serviço de Deus” (al servigio di Dio mi fe’ sì fermo- v. 114). Está situado numa elevação que faz parte das montanhas (a cadeia dos  Apeninos) localizadas “Entre as duas costas da Itália” (Tra’ due liti d’Italia /.../- v. 106), ou seja, as costas do Adriático e do Tirreno. Trata-se do convento beneditino Santa Croce de Fonte Avellana (11), “um lugar ermo consagrado,/ dedicado somente à adoração de Deus” (/.../  è consecrato un ermo,/ che suole esser disposto a sola latria-  v. 110-111). Ali vivia, com sua alimentação frugal, “suportava com facilidade o calor e o frio/ contente em meus pensamentos contemplativos” (lievemente passava caldi e geli/ contento ne’ pensier contemplativi- v. 116-117).  Na sequência, diz que “Aquele claustro costumava dar almas a estes céus, abundantemente;/ mas agora tornou-se estéril” (Render solea quel chiostro a questi cieli/ fertilemente; e ora è fatto vano-  v.118-119), uma crítica ao clero de sua época. É só então, depois dessas observações, que o espirito se identifica. Afirma que foi chamado Pedro Damiano naquele local, “e Pedro Pecador, na Casa/ de Nossa Senhora na costa do Adriático” (e Pietro Peccator  fu’ ne la casa/ di Nostra Donna in sul lito adriano- v. 122-123). Aqui, os comentaristas dizem que Dante confundiu duas pessoas diferentes. E assinalam também um anacronismo no v. 125, pois o chapéu cardinalício aí referido só seria adotado mais de 170 anos após a morte de Pedro Damiano, que viveu de 1007 a 1072 e foi um monge erudito, autor de muitos escritos, por isso considerado Doutor da Igreja (12). Ele era um asceta mas foi “arrastado a tomar aquele chapéu/ que sempre passa de mau para pior ” ( /.../ fui chiesto e tratto a quel cappello/ che pur di male in peggio si travasa- v. 125-126), outra  crítica à Igreja de então, no caso, ao tipo de pessoas escolhidas para  ocupar os cargos de cardeal.

            A seguir, Damiano faz outra crítica, agora indireta, aos prelados da Igreja, mencionando “Cefás” (v.127) (que significa “pedra” em aramaico, uma referência a S.Pedro) e o “grande vaso/ do Espírito Santo” (/.../ il gran vasello/ de lo Spirito Santo. /.../- v.127-128) (trata-se de S. Paulo, chamado “Vaso de Eleição”, na Bíblia). Eles eram magros e estavam descalços (magri e scalzi- v. 128), “recebendo o alimento de qualquer casa” (prendendo il cibo da qualunque ostello- v.129). “Agora, os modernos pastores, de tão pesados,/ precisam de quem os ampare de um lado e do outro,/ e de quem por trás os alcem (para a sela)./ Cobrem com seu manto os cavalos/ de modo que duas bestas andam sob uma mesma pele:  (Or voglion quinci e quindi chi rincalzi/ li moderni pastori e chi li meni,/ tanto son gravi, e chi di rietro li alzi. Cuopron d’ i manti loro i palafreni,/ sì che due bestie van sott’ una pelle:”- v. 130-134). Com estas palavras ásperas, Damiano encerra sua fala.

            O Canto termina com o poeta descrevendo o movimento das chamas que desciam os degraus da escada, e rodopiavam: “e cada giro as fazia mais belas” (e ogne giro le facea più belle-  v. 138),  o que indica alegria e aprovação das almas às palavras de Pedro Damiano (13). Elas se juntam em torno deste, diz Dante, mas depois -- “deram um grito tão alto/ que não poderia ser comparado a nenhum daqui;/ nem eu o entendi, tanto me venceu o estrondo” (e fero un grido di sì alto suono,/ che non potrebbe qui assomigliarsi;/ né io lo ‘ntesi, sì mi vinse il tuono.- v.140-142).  A razão desse grito será explicada por Beatriz no próximo Canto.

Amos Nattini
 NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.383.

(2) Id. ib, p. 384.

(3) Id. ib, p. 384.]

(4) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.  Penguin Books, 1971, p. 246;  HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p. 518. 

(5) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p.253.

(6) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 384. .

(7) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p.254. 

(8) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi.  New American Library, 2003, p.784.

(9) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 385. 

(10) ZOLI, M. e ZANOBINI, F.- “La Divina Commedia: a cura di M.Zoli e F.Zanobini. Inferno. Purgatorio. Paradiso”. Bulgarini, 2013, p. 910.

(11) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 385

(12) Id. ib, p. 385; cf também HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 522-524.

(13) LONGNON, Henri- “La Divine Comédie”. Traduction, préface, notes et commentaires par Henri Longnon. Paris: Garnier, 1951, p. 675.

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Para ouvir o Canto XXI:

 

https://www.youtube.com/watch?v=Zvd-WgpHupc

 

(acessado em 28.09.20)



Salvador Dalí 

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