sexta-feira, 16 de setembro de 2016

CANTO II


PARAÍSO


Canto II


            Nos versos iniciais deste Canto, Dante explora a metáfora do barco não só em relação a si mesmo -- quando sua jornada é comparada a um navio (cf.  lenho”: legno- v.3, uma metonímia) avançando em água que “jamais foi navegada” (L’acqua ch’io prendo già mai non si corse- v. 7) -- mas também em relação aos seus seguidores. Aqueles que navegam “em pequenina barca” (/.../ in piccioletta barca- v.1) são desestimulados a prosseguir, pois se extraviarão.  Só serão bem sucedidos nesse “alto mar” (alto sale- v. 13) os seguidores que se alimentaram a tempo do “pão dos anjos” (pan de li angeli- v. 11), interpretado como a “sabedoria divina” (que se obtém nos estudos teológicos e filosóficos) (1), “do qual/ vive-se aqui, mas sem se saciar” (/.../ del quale/ vivesi qui ma non sen vien satollo- v.11-12). Tais seguidores se admirarão mais com o que verão do que os Argonautas, ao verem Jasão -- aquele que, segundo a lenda, buscava o velocino de ouro (2) -- transformado em lavrador, uma referência mitológica que nestes versos preliminares já foi  antecedida por outra, pois nos versos 8 e 9 o poeta menciona Minerva (deusa da sabedoria), Apolo, que o conduz, e as nove Musas, que o orientam.

Amos Nattini
            Na sequência, Dante afirma que ele e Beatriz são elevados velozmente   pela sede do reino divino, ela olhando para o alto, e ele, para ela. Logo depois afirma que eles se encontram num lugar estranho, peculiar, identificado no v. 30 como o da “primeira estrela  (prima stella), conforme Beatriz informa a Dante, antes que este lhe pergunte a respeito.  Eles já estão assim no 1º céu, o da Lua. O poeta, para expressar esse rapidíssimo movimento para o alto, usa a imagem (frequente) da seta/ arco e uma figura de retórica chamada “hysteron proteron” (3), em que o movimento (da seta, no caso) é invertido, partindo-se do resultado final e retrocedendo-se à sua origem (o arco):

Beatrice in suso, e io in lei guardava;
e forse in tanto in quanto un quadrel posa
e vola e da la noce si dischiava,

giunto mi vidi ove mirabil cosa
mi torse il viso a sé; /.../      (v. 22-26)

Beatriz para o alto, e eu para ela olhava; / e talvez tão rápido quanto uma seta se fixa/ e voa e se desprende do arco,/
me encontrei num lugar onde coisa admirável/ atraiu meu olhar para si; /.../ 

Os dois estavam assim dentro da Lua, que os “recebeu como água recebe/ raio de luz permanecendo unida” (ne ricevette, com’ acqua recepe/ raggio di luce permanendo unita- v. 35-36), vale dizer, ao penetrarem na “estrela” não alteram as condições desta, diferentemente do que ocorreria na Terra (v. 37) se recebesse outros corpos. Isso aumenta o desejo do poeta de ver “aquela Essência” (quella essenza- v. 41), Cristo, em que, similarmente, estão unidas, embora distintas, duas naturezas, a  humana e a divina (v. 42).

Dante tem curiosidade de saber qual é a explicação para as manchas escuras da Lua (que para uma crença popular da época eram Caim carregando um arbusto de espinhos, castigo que lhe foi imposto por ter matado seu irmão Abel) (4). E pergunta a Beatriz sobre isso. Mas esta, antes de responder, indaga o que ele pensa a respeito.  E ele lhe diz: “O que nos parece diverso aqui/ decorre, creio, das partes raras e densas”. (E io: “Ciò che n’appar qua sù diverso/ credo che fanno i corpi rari e densi”.- v. 59-60). Na visão de Dante, assim, a diferença de luminosidade da “estrela” deve ser atribuída à irregularidade do corpo lunar, com partes raras e densas. Desse modo, ele atribui aquelas  manchas à diferença de densidade na superfície da Lua, em que há partes menos densas (“raras”) e outras mais. Enquanto as partes raras refletem menos os raios solares, as partes densas refletem mais esses raios (5).

Beatriz, em sua longa resposta, que inicia no v. 61 e só finaliza no último verso do Canto (v. 148), contradiz essa explicação.  Ela começa por referir-se à “esfera oitava” (La spera ottava- v.64), i.e, ao oitavo céu (o das estrelas fixas), cujas “luzes” diferem em qualidade e quantidade (v.65) e apresentam “virtudes diversas” (Virtù diverse- v.70) (ou diversas capacidades de influenciar) (6), fruto de diferentes “princípios formais” (princìpi formali- v. 71). Dante empresta esse conceito da Filosofia Escolástica a qual, conforme Longnon (7), distingue nos corpos o princípio material (a matéria), que lhes é comum, e o princípio formal (forma substancial) que determina a sua espécie e natureza própria e, portanto, sua virtude particular. Se a explicação de Dante fosse válida, só haveria um princípio formal determinante, o da maior ou menor densidade dos corpos, e uma só virtude nas estrelas (v. 68). 

Depois, ela dá uma ideia rápida da configuração do Universo, onde se insere o primeiro céu. Afirma que “Dentro do céu da divina paz” (Dentro dal ciel de la divina pace- v.112) (o Empíreo imóvel, a morada de Deus) gira um outro (o Primum Mobile), seguido do céu “com tantas estrelas” (/.../ c’ha tante vedute- v.115) (o oitavo céu, das estrelas fixas) e “Os outros céus” (Li altri giron /.../- v.118) (os sete céus inferiores), com “distintas virtudes” (le distinzion che dentro da sé hanno- v.119), todos “recebendo de cima e agindo em baixo” (che di sù prendono e di sotto fanno- v. 123), intervindo nesse processo os “motores beatos” (beati motor- v.129), i.e. Inteligências Celestiais ou anjos  (8).
  
Salvador Dalí 
Beatriz conclui, retornando para a questão que Dante formulara, e resumindo sua explicação das manchas lunares. Reporta-se ao oitavo céu para mostrar que a Inteligência que lhe move distribui sua influência entre as estrelas fixas, a qual é modificada pelo caráter dos corpos de cada uma, daí decorrendo a diferença no brilho delas; o mesmo ocorre com a Lua: (9)

E comme l’alma dentro a vostra polve
per differenti membra e conformate
a diverse potenze si risolve,

così l’intelligenza sua bontate
multiplicata per le stelle spiega,
girando sé sovra sua unitate.

Virtù diverso fa diversa lega
col prezïoso corpo ch’ella aviva,
nel qual, sì come vita in voi, si lega.

Per la natura lieta onde deriva,
la virtù mista per lo corpo luce
come letizia per pupilla viva.

Da essa vien ciò che da luce a luce
par differente, non da denso e raro;
essa è formal principio che produce,

conforme a sua bontà, lo turbo e ‘l chiaro.”   (v.133- 148)

E como a alma dentro do vosso pó/ por diferentes membros se estende,/ conformados a diversas faculdades (dos sentidos),/
assim a inteligência angélica manifesta/ a sua virtude multiplicada nas estrelas,/ girando sobre sua unidade. 

A virtude diversificada forma uma unidade diversa/ com o precioso corpo (estelar) que ela aviva/ e à qual se liga, assim como a vida em vós.
Pela natureza alegre de sua fonte (Deus)/ a virtude misturada ao corpo brilha/ como a alegria pela pupila viva.

Dela provém as diferenças de luz a luz (de estrela a estrela)/ e não da densidade e raridade;/ ela é o princípio formal que produz,/

conforme sua qualidade, o escuro e o claro.  



NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p. 315

(2) Id, ib, p. 315

(3) CIARDI, John-  “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi.  New American Library, 2003, p. 612.

(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 317.  

(5) Id, ib, p.317

(6) ZOLI, M. e ZANOBINI, F.- “La Divina Commedia: a cura di M.Zoli e F.Zanobini. Inferno. Purgatorio. Paradiso”. Bulgarini, 2013, p. 724.

(7) LONGNON, Henri- “La Divine Comédie”. Traduction, préface, notes et commentaires par Henri Longnon. Paris: Garnier, 1951, p. 636

(8) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 319

(9) BINYON, Laurence- “The Divine Comedy”, complete, translated by Laurence Binyon, with notes from C.H. Grandgent in “The Portable Dante”. The Vicking Press, New York, 1976, p. 372


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Para ouvir o Canto II:


(acessado em 21.08.20)

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