terça-feira, 25 de outubro de 2016

CANTO III


PARAÍSO


Canto III

Amos Nattini


Dante admite estar convencido de seu equívoco após a explicação das manchas lunares dada por Beatriz (ele não levou em conta o papel da inteligência angélica em sua explicação). Ela é referida do seguinte modo no verso de abertura do Canto:  Aquele sol que primeiro me aqueceu o peito de amor” (Quel sol che pria d’amor mi scaldó ‘l petto-  v.1).  O poeta usa a imagem do sol para defini-la face à sua atual condição, junto aos bem-aventurados, uma vez que o sol no poema está associado a Deus, ou à sabedoria divina. Mas também se refere ao passado comum deles, ao seu amor de infância e ao encontro primeiro, quando tinham apenas 9 anos, relatado por Dante em “Vita Nuova”. 

Dante tencionava dizer a Beatriz que estava convencido da verdade da explicação dela, e reconhecer que era melhor que a sua, mas esquece isso porque sua atenção é desviada pela visão de rostos de contornos débeis como “pérola em branca fronte” (/../ perla in bianca fronte- v. 14) (“pérola” está aqui pelos adornos medievais de pérola usados pelas damas) (1), ou como vistos “através de vidros transparentes e límpidos,/ ou de águas nítidas e tranquilas(/.../ per vetri trasparenti e tersi/ o  /.../ per acque nitide e tranquille-  v.10-11).

Gustave Doré

Ao ver esses “muitos rostos prontos a falar” (/.../ più facce a parlar pronte- v.16), Dante vira-se para o lado, a fim de lhes dirigir a palavra, acreditando que eram “rostos refletidos” (specchiati sembianti- v. 20). Mas caiu no erro oposto “àquele que acendeu amor entre o homem e a fonte” (a quel ch’ accese amor tra l’omo e ‘l fonte- v. 18), i.e. o erro oposto ao de Narciso, que acreditava ser de outra pessoa sua imagem refletida na água (2). Beatriz logo lhe esclarece que aquelas são “veras substâncias” (vere sustanze- v.29), “aqui colocadas por não cumprirem os votos” (qui rilegate per manco di voto- v.30). Dante emprega o termo “substância” no sentido da filosofia escolástica, por oposição a “acidente”. Enquanto aquela existe por si mesma, esta existe como atributo das substâncias (3). No caso, os rostos que Dante vê não são imagens refletidas mas as próprias almas que ali estão.  Incentivado por Beatriz, Dante se dirige àquela “que parecia mais desejosa/ de falar” (/.../ che parea più vaga/ di ragionar /.../-  v.34-35), perguntando o seu nome e indagando sobre a sorte delas. Ela lhe responde que sua “caridade” (carità- v. 43) (termo que é repetido várias vezes no Canto e deve ser entendido como sinônimo de “amor espiritual”) (4), “não fecha as portas/ ao justo desejo” (La nostra carità non serra porte/ a giusta voglia /.../- v. 43-44), como a divina. Ela então se  identifica como Piccarda (v. 49),  diz que no mundo foi “jovem freira” (vergine sorella- v. 46) e que agora é “venturosa na esfera mais lenta” (beata sono in la spera più tarda- v. 51), ou seja, está no céu da Lua, uma das nove esferas concêntricas em torno da Terra, a mais distante do Empíreo, ou da origem do movimento delas (5). É no céu da Lua que estão aqueles cujos votos assumidos com Deus “foram negligenciados /.../, em parte não cumpridos (/.../ perché fuor negletti/ li nostri voti, e vòti in alcun canto- v.56-57).

 Piccarda, segundo os comentaristas, era irmã de Corso Donati, líder dos Guelfos Negros em Florença (partido adversário aos Brancos, de Dante), que a retirou do convento para que ela se casasse com um aliado político, obrigando-a assim a quebrar seus votos de religiosa. Seu outro irmão era Forese Donati, amigo de Dante, que já encontramos no “Purgatório” (cantos XXIII e XXIV). 

Quando Dante lhe pergunta se elas, as almas que ali estão, não gostariam de estar mais acima, em “um lugar mais alto/ para ver mais e ser mais amigos” (de Deus) (/.../ più alto loco/ per più vedere e per più farvi amici?- v.65-66), Piccarda, sorrindo, lhe responde que elas só querem aquilo que já tem:

Se disïassimo esser più superne,
foran discordi li nostri disiri
dal voler di colui che ne cerne;   (v. 73-75)

Se desejássemos estar em mais alta esfera/ nossos desejos seriam discordantes / da vontade daquele que para aqui nos destinou;

            Nos versos subsequentes Piccarda afirma que lá as vontades dessas almas e a divina são uma só e que o modo como estão dispostas nos diversos céus “apraz a todo o reino/ e ao rei que nos induz a desejarmos o que está em seu querer” (/.../ a tutto il regno piace/ com’ a lo re che’ n suo voler ne ‘nvoglia- v. 83-84). Por fim, sintetiza assim a situação, identificando a vontade divina com a metáfora do mar:

E ‘n la sua volontade è nostra pace:
ell’ è quel mare al qual tutto si move
ciò ch’ ella crïa o che natura face.    (v.85-87)

E em sua vontade está a nossa paz:/ ela é aquele mar para o qual tudo se move/ o que ela cria ou o que a natureza faz.

            Dante percebe então que “em todo lugar/ do céu é paraíso” (/.../ ogne dove/ in cielo è paradiso /.../- v. 88-89).

Na sequência, referindo-se a si mesmo, o poeta explora a imagem dos alimentos, dizendo que ao mesmo tempo que ele se sacia de um,  tem fome de outro, vale dizer, ao mesmo que tem sua curiosidade atendida em uma questão, pelo que é grato, já anseia por atender a outra. E para expressá-la passa imediatamente a explorar uma imagem alternativa, inspirada na atividade produtiva da tecelagem. Assim, para expressar sua curiosidade em saber qual foi o voto não cumprido de Piccarda, ele quer “saber dela qual foi a tela/ da qual a lançadeira não chegara ao fim” (per apprender da lei qual fu la tela/ onde non trasse infino a co la spuola- v. 95-96).

Em sua resposta, ela afirma que, ainda “mocinha” (giovinetta- v.103), fugiu do mundo para seguir uma dama, de “vida perfeita e alto mérito” (Perfetta vita e alto merto /.../- v.97) que está agora em “céu mais acima” (v. 97-98), tomando o hábito de sua ordem. Trata-se, segundo os comentaristas, de Santa Clara de Assis, contemporânea e discípula de S.Francisco de Assis, fundadora da Ordem das Clarissas (6).  Mas em vez de mencionar seu irmão Corso como o responsável por arrancá-la do “doce claustro” (dolce chiostra- v. 107), ela atribui o fato a homens “mais acostumados ao mal que ao bem(/.../ a mal più ch’ a bene usi- v. 106). Logo após, Piccarda refere-se a “outro resplendor” (otro splendor- v. 109) que está à sua direita e que “atribui a si mesma aquilo que eu digo de mim” (ciò ch’io dico di me, di sé intende- v. 112). Trata-se da “luz da grande Costanza” (Quest’ è la luce de la gran Costanza- v. 118), a última herdeira dos governantes normandos da Sicília. Ela também foi obrigada a sair do convento para se casar com o imperador Henrique VI, “o segundo vento da Suábia” (/.../ secondo vento di Soave- v.119), filho de Frederico Barbarossa, e por essa união “gerou o terceiro e a última pujança” (generò ‘l terzo e l’ultima possanza- v. 120), o imperador Frederico II, da Apúlia e da Sicília, com quem a dinastia suábia terminou (7).   

R. e J. Hollander  (8) chamam a atenção para seu nome, confrontado com a inconstância na manutenção dos seus votos religiosos. Mas Costanza  foi constante em seu coração (v. 117). Aliás, não é por acaso que os bem-aventurados que não puderam cumprir integralmente seus votos estão no céu da Lua, o astro associado à inconstância, haja vista as diversas fases por que passa ao longo do mês.

Concluída sua fala, Piccarda começou a cantar “Ave Maria” e cantando desvaneceu ali “como na água profunda coisa pesada” (come per acqua cupa cosa grave- v. 123). Dante volta-se então para Beatriz mas seus olhos não conseguem suportar, inicialmente, sua fulguração. Isso o faz retardar suas perguntas. 



NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p. 320.

(2) Id, ib, p. 320

(3) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.  Penguin Books, 1971, p.77

(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 321.

(5) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume III: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p.38.

(6) MOURA, Vasco Graça—“Dante Alighieri- A Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco da Graça Moura. S.Paulo: Landmark, 2005- p. 617.

(7) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 322. 

(8) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p. 78.



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Para ouvir o Canto III:

https://www.youtube.com/watch?v=Pe-9uQ0Vum8

 (acessado em 24.08.20)




Salvador Dalí 




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