PARAÍSO
Canto I
O Canto (ou o “Paraíso”) inicia por
um prólogo e uma invocação. No prólogo (v. 1 a 12), Dante afirma que esteve “No céu que mais de sua luz recebe” (Nel ciel que più de
la sua luce prende- v.4),
quer dizer no céu que mais recebe a luz de Deus, “d’Aquele que tudo move” (/.../ di colui che tutto move- v.1) no Universo. Trata-se do Empíreo, a
morada de Deus e dos bem-aventurados. O Empíreo, como se dirá adiante, é “sempre quieto” (sempre quïeto- v. 122), i.e. fixo, mas a ele se associa o Primum Mobile, a esfera
celeste que gira mais veloz (nel qual si volge quel c’ha maggior fretta- v. 123) e move todas as outras. Dante inicia
assim referindo-se a essa sua experiência única, pois viu coisas que tem
dificuldade de expressar em palavras, agora que de lá retornou. Mas se
esforçará para tanto, tentando expressar o que sua memória pôde reter, e isso será
a matéria desta terceira e última parte de seu poema.
Na invocação (v. 13 a 36), o poeta clama
pela ajuda não só das Musas mas também de Apolo, o deus do Sol, da música e da
poesia, que amava a ninfa Dafne, transformada pelo pai em loureiro, para afastá-la de seu amante
(1):
Salvador Dalí |
O buono Appollo, a l’ultimo lavoro
fammi del tuo valor sì fatto vaso,
come dimandi a dar l’amato alloro. (v.13-15)
Ó bom
Apolo, para esta última tarefa/ faz de mim vaso tão pleno de teu valor/ como
exiges para dar o amado louro
Dante na sequência refere-se ao
monte do Parnaso, e aos seus dois cumes, Cirra e Elícona, consagrados
respectivamente a Apolo e às Musas. Diz o poeta:
Infino a qui l’un giogo di Parnaso
assai mi fu; ma or com amendue
m’è uopo intrar ne l’aringo rimaso. (v. 16-18)
Até
aqui um cume no Parnaso/ me bastou; mas agora são necessários os dois/ para
entrar na arena que resta.
Até aqui, para elaborar o “Inferno” e
o “Purgatório”, um cume só, o das Musas, antes invocadas, lhe bastou. Agora,
para elaborar o “Paraíso”, precisará também da ajuda de Apolo. Só assim poderá
ser digno das folhas do loureiro, o “dileto
lenho” (diletto
legno- v. 25) dele, porque
se trata de Dafne transformada.
Dante, ao pedir a Apolo inspiração,
faz uma comparação curiosa. Refere-se ao presunçoso sátiro Marsias, que ousou
desafiar o deus para um duelo musical. Após
derrotá-lo, Apolo o esfolou vivo, retirando-o de si mesmo ou, nas palavras do
verso, retirando-o “da bainha dos membros
seus” (de
la vagina de le membra sue- v.21),
como se retirasse uma espada da bainha (2)... É essa a ajuda que Dante pede a
Apolo, que retire de seu peito a inspiração desejada:
Entra nel petto mio, e spira tue
sì come quando Marsïa traesti
de la vagina de le membra sue. (v.19-21)
Entra
em meu peito, e inspira-me/ como quando Marsias tiraste/ da bainha dos membros
seus.
A invocação é concluída assim:
Poca favilla gran fiamma seconda:
forse di retro a me con miglior voci
forse di retro a me con miglior voci
si pregherà perché Cirra risponda. (v.34-36)
Pequena
faísca provoca grande chama:/ talvez depois de mim, com melhores vozes,/ se
rogará a Cirra que responda.
Na sequência, o poeta preocupa-se em
caracterizar o ponto no horizonte por onde sai “a luz do mundo” (la lucerna del mondo;
/.../- v. 38), vale
dizer, por onde nasce o Sol, “com melhor
curso e com melhor estrela” (con miglior corso e con migliore stella- v.
40). Esse ponto, em
função das referências astronômicas mencionadas no v. 39, corresponde ao “equinócio da primavera”, o instante em que o Sol cruza o equador (fazendo com que a duração do dia se iguale à da noite) e que no hemisfério Norte ocorre em 21 de março (a propósito, no poema, toda a população da Terra vive nesse hemisfério, segundo a concepção da época dotada). Inicia-se então o período em que o Sol está na constelação de Áries, de 21 de
março a 20 de abril, época considerada pelo poeta como aquela mais favorável
pois foi quando Deus criou o universo. Por outro lado, quando o Sol está no equinócio da primavera, ele exerce a
sua mais benéfica influência, moldando a seu modo a “cera do mundo” (la mondana cera- v.41) (3).
O nascer do Sol trouxera o dia (a manhã)
ao hemisfério Sul (monte do Purgatório) e noite ao hemisfério Norte (Jerusalém).
Mas agora deve ser pouco mais do que meio-dia no Paraíso Terrestre,
considerando a referência ao tempo indicada em Purg., XXXIII, 104, o que
atribui um valor simbólico ao início da jornada para o Paraíso, pela associação
do Sol, com todo o seu resplendor, à
divindade (a jornada para o Inferno iniciou-se à noite e a subida do monte do
Purgatório, na madrugada) (4). Dante diz
que vê Beatriz contemplar o Sol (do meio-dia), fixando o olhar mais do que uma
águia. Ao vê-la, ele é induzido a fazer o mesmo. Também fixa o olhar no Sol, “mais do que é usual” (/.../ oltre nostr’
uso- v.54), pois
Molte è licito là, che qui non lece
a le nostre virtù, mercé del loco
fato per proprio de l’umana spece. (v.55-57)
Muito é
permitido lá, que aqui não é,/ às nossas faculdades, por causa do lugar,/ feito
próprio para a espécie humana.
Isso traz implícita a informação de
que ainda está no Paraíso Terrestre. Mas
logo Dante vê o Sol cintilar em torno “como
ferro que candente sai do fogo” (com’ ferro che bogliente esce del foco- v. 60) e a luz intensificar-se, “de repente parecendo que dia fora
acrescentado/ ao dia” (e di sùbito parve giorno a giorno/ essere aggiunto, /.../-
v.61-62). Beatriz
continua a fixar os olhos nas esferas celestes, mas Dante desvia os seus,
fixando-os nela. E olhando-a sente transformar-se, comparando-se ao pescador
Glauco, outro personagem mitológico, que após provar uma certa erva
transformou-se num deus marinho. Dante se refere a essa experiência que viveu e
o impressionou como “transumanar” (v.
70). Dirigindo-se diretamente a Deus (“ó Amor
que governa os céus”: /.../ amor che ‘l
ciel governi- v.74), diz não saber se era então só alma (v.73) mas afirma
que foi pela luz d’Ele alçado. Sua atenção é atraída pelo giro das esferas
celestes (explicado pelo desejo por Deus). E acrescenta:
parvemi tanto allor del cielo acceso
de la fiamma del sol, che pioggia o fiume
lago non fece alcun tanto disteso. (v. 79-81)
me
pareceu então que o fogo do Sol/ incendiava tanto do céu que chuva ou rio/
nunca formaram lago tão amplo.
Na concepção dantesca do universo, geocêntrica, a terra e a água são
envolvidas por uma camada de ar e acima
desta, por outra, de fogo (congregando
desse modo os 4 elementos naturais), após o que se localizam as nove esferas
celestes (a primeira das quais é a da Lua, seguida pela de Mercúrio, Vênus,
Sol, Marte, Júpiter, Saturno, das Estrelas Fixas e do Primum Mobile) e o
Empíreo (5). Dante está sendo alçado assim para essas esferas e atravessa então
a camada de fogo. Fica curioso para
saber mais sobre o que está ocorrendo (intrigado com o som, interpretado como a
“música das esferas” - v. 79 e 82- e pela
amplidão da luz- v.81-82). Beatriz, compreendendo isso, sem que ele chegue a formular
sua pergunta, lhe esclarece:
Tu non se’ in terra, sì come tu credi;
ma folgore, fuggendo il proprio sito,
non corse come tu ch’ad esso riedi.” (v.91-93)
Tu não
estás em terra como crês;/ mas um raio, fugindo de seu local de origem,/ é
menos veloz que tu, voltando a ele”.
Dante está assim subindo mais rápido
que um raio ao cair, ou seja, está
voltando ao seu “local de origem”,
que é a própria divindade (sentido maior de sua transumanização).
Amos Nattini |
Ele, em seguida, manifesta novamente
seu assombro a Beatriz por estar ultrapassando “corpos mais leves” (corpi levi- v. 99) (o ar, o fogo). A resposta dela é
extensa, vai do v.103 até o fim do Canto. Beatriz, comparada a uma mãe
dirigindo-se ao filho delirante, inicia explicando-lhe que todas as coisas
possuem uma ordem entre si, e esse fato torna o universo semelhante a Deus. Nisso
os seres superiores (os anjos, os seres humanos) veem a marca do Eterno Valor,
ou seja, de Deus, a quem toda essa ordem tende. A ela, ao Criador, tendem todas
as criaturas. É uma força inata em todas estas, que as faz tender para Deus como
no fogo há uma tendência para o alto (para a Lua- v.115, 1ª esfera), nos
animais irracionais (“corações mortais”:
cor
mortali- v. 116) há o
instinto e a força da gravidade subjuga a terra (6). Tal força abrange todas as
criaturas, “não só as desprovidas de
inteligência” (né
pur le creature che son fore/ d’intelligenza /.../ - V.118-119) mas também “as dotadas de intelecto e amor” (/.../ c’hanno intelletto e amore- v.
120).
Explorando a imagem de um arco, já usada antes, Beatriz informa claramente a Dante, nestes termos, que
ele está subindo rumo ao Empíreo:
e ora lì, come a sito decreto,
cen porta la virtù di quella corda
che ciò che scocca drizza in segno
lieto. (v.124-126)
e agora
até lá, como a um lugar predestinado, / nos leva a virtude daquela corda/ que a
alvo feliz arremessa o que desfecha
É verdade, ela observa, que a criatura
pode desviar-se (pelo livre-arbítrio) desse caminho (para Deus), assim “como se pode ver cair/ fogo de uma nuvem”
(e sì
come veder si può cadere/ foco di nube- v.133-134) (caso do raio), ao invés dele buscar
o alto.
Nos versos finais, a imagem do fogo
(com essa característica subentendida) retornará, contrastada agora com a da
água (rio) que desce a encosta:
Non dei più ammirar, se bene stimo,
lo tuo salir, se non come d’un rivo
se d’alto monte scende giuso ad imo.
Maraviglia sarebbe in te se, privo
d’impedimento, giù ti fossi assiso,
com’ a terra quïete in foco vivo”. (v.136-141)
Não
deves admirar-te mais, se bem julgo,/ com a tua subida do que com um rio/ que
do alto monte desce para a planície.
Assombroso
te seria se, sem/ impedimento, permanecesses parado embaixo,/ como um fogo vivo
imóvel sobre a terra”.
Concluída sua fala, Beatriz “volveu de novo o olhar para o céu” (Quinci rivolse
inver’ lo cielo il viso- v. 142). Este é o último verso do Canto, que se destaca, como se vê, pela sua sonoridade, dada a incidência
reiterada da consoante v.
NOTAS
(1)
MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse
translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman,
with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p. 311
(2) Id, ib, p. 311
(3) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated
with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986,
p.9-10.
(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of
Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 312.
(5) Cf diagrama in MANDELBAUM, Allen, op cit, p. 305.
(6) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri-
Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction
& Notes by Robert Hollander.
Doubleday, 2007, p. 29.
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Para ouvir o Canto I:
(acessado em 21.08.20)
Sensacional, estou lendo o livro e buscando um melhor entendimento com seus textos, muito obrigado.
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