PARAÍSO
Canto XXV
O
Canto XXV começa com uma referência ao próprio poema que Dante está compondo. Ele
espera que tal “poema sacro” (poema sacro- v. 1) vença a crueldade dos florentinos
que o desterraram. Seus inimigos são comparados a “lobos” (lupi-
v.6) enquanto ele é um “cordeiro” (agnello- v. 5) e Florença é um “belo aprisco” (bello ovile- v. 5).
Ele tem esperança assim de um dia voltar para sua cidade natal e ser festejado por ela na
igreja onde foi batizado (“/.../ e na fonte/ do meu batismo receberei a
coroa de louros” (/.../
e in sul fonte/ del mio battesmo prenderò ‘l cappello- v. 8-9). Essa foi, pelo batismo, a sua entrada na fé católica. E S.
Pedro, reconhecendo que ele a tem, o homenageia, girando sua luz, à guisa de
coroa, em torno de sua fronte (v.12).
Amos Nattini |
S.Tiago por Peter Paul Rubens |
Uma vez que a Dante, diz S.Tiago, foi
concedida, pelo “nosso Imperador” (lo nostro Imperadore-
v. 41) (cf a terminologia
feudal, também na sequência), a graça dele “antes
da morte” (anzi
la morte- v.41) se
encontrar “com seus condes na sala mais
reservada” (ne
l’aula più secreta co’ suoi conti- v. 42)
– ou seja, encontrar-se com os santos no Empíreo (6) – a fim de que sua
esperança, e a de outros (os que ouvirão/ lerão seu poema), seja reforçada, ele
deve agora responder às três questões seguintes sobre a esperança que S. Tiago lhe
formula: “diz o que ela é, como floresce/
na mente tua, e de onde ela vem para ti” (dì quel ch’ell’ è, dì come se
n’nfiora/ la mente tua, e dì onde a te venne - v. 46-47).
É Beatriz então, em vez de Dante, quem
fala. Ela se antecipa a ele, respondendo à segunda questão. Diz que está
escrito no Sol (ou seja, na mente de Deus) que “Nenhum filho da Igreja Militante/ tem mais esperança /.../” (La Chiesa militante
alcun figliuolo/ non há con più speranza / ../.- v. 52-53) do que Dante, e que por isso lhe foi
concedido “vir do Egito/ a Jerusalém”
(/.../ che d’Egitto/ vegna in Ierusalemme- v.55-56), “antes que termine seu período de militância” (anzi che ‘l militar
li sia prescritto- v. 57),
i.e. enquanto está vivo ainda. Egito --
que é a terra do exílio e cativeiro dos hebreus, conforme a Bíblia --simboliza
a vida terrena enquanto Jerusalém, a vida no Céu (7).
As outras duas questões Beatriz
deixa para Dante responder. A segunda ela respondeu para que ele não elogie a
si mesmo, não seja causa de “jactância”
(iattanza-
v. 62).
Como discípulo ansioso para mostrar
seu conhecimento ao mestre, Dante responde a primeira questão. Ele diz que a
esperança “é a expectativa certa/ da
glória futura” (è
uno attender certo/ de la gloria futura /.../- v. 67-68), ou da “futura beatitude” (8), que resulta da “graça divina e do mérito adquirido” (grazia divina e precedente merto- v.
69).
Quanto à terceira questão, de onde
veio a esperança de Dante, ele afirma:
Da molte stelle mi vien questa luce;
ma quei la distillò nel mio cor pria
che fu sommo cantor del sommo duce. (v. 70-72)
Essa
luz veio a mim de muitas estrelas;/ mas quem primeiro a instilou em meu
coração/ foi o supremo cantor do Supremo Senhor.
Assim, a esperança lhe veio de “muitas estrelas” (os autores de textos
sacros), mas o primeiro a influenciá-lo foi o cantor dos Salmos, o rei Davi (9).
Os versos 73-74 transcrevem inclusive
uma passagem deles relativa à esperança (10). Dante diz que está pleno de
esperança (que ele replica em outras almas), instilada pela sua “epístola” (pistola- v. 77), a qual, por sua vez, é instilada
pelo canto do salmista. Conforme os comentaristas, Dante não distingue S.Tiago
Maior (o apóstolo venerado em Santiago de Compostela, irmão de S. João
Evangelista) de S.Tiago Menor (irmão de Jesus), que se acredita ser o autor da
Epístola bíblica (11).
A satisfação de S.Tiago, decorrente da resposta dada por Dante, é revelada, nos vv. 80-82, pelos clarões repentinos, como de relâmpago, no seio daquele "incêndio" (12).
O Santo afirma depois que tal
virtude (a esperança) o acompanhou até a
morte (ele foi decapitado no ano 44 d.C.) ou em suas palavras “até a palma (símbolo do martírio) e minha partida do campo de batalha” (infin la palma e a l’uscir
del campo- v. 84), vale
dizer, quando ele passou da Igreja Militante para a Igreja Triunfante (13). S.Tiago
gostaria que Dante lhe dissesse agora “aquilo
que a esperança te promete” (quello che la speranza ti ‘mpromette- v. 87).
O poeta lhe responde que isso está
contido nas “novas e antigas escrituras”
(/.../
Le nove e le scritture antiche- v.88).
E cita o profeta Isaías (LXI, 7), que menciona a “dupla veste” (doppia vesta- v.92)
que cada alma usará na “doce vida” (dolce vita- v. 93), o Paraíso. Essa vestimenta dupla se
refere às luzes da alma e do corpo dos bem-aventurados, entendendo-se “corpo” a
carne ressurecta após o Dia do Juízo (14). Dante cita também “o teu irmão” (tuo fratello- v.94), a saber, S. João Evangelista, que igualmente
se refere a essas “brancas vestes” (bianche stole- v. 95)
no Apocalipse, VII, 9, 13-17 (15).
Concluído o exame de Dante, ouve-se
no Céu o canto do salmo IX, relativo à esperança, antes referido. Depois, entre essas almas, uma luz se
intensifica tanto “que se em Câncer
houvesse tal cristal/ o mês de inverno seria um só dia” (sì che, se’l Cancro
avesse un tal cristallo,/ l’inverno avrebbe un mese d’un sol dì- v. 101-102) (essa luz, como se verá logo adiante,
é a de S.João). O mês de inverno (do
ponto de vista do hemisfério Norte), no caso, é o que vai de 21 de dezembro a
21 de janeiro, em que a constelação de Câncer está presente à noite. Se
houvesse “tal cristal” ali, ou uma
estrela como o Sol nessa constelação, todo o mês em questão estaria iluminado,
não haveria mais noite, apenas o dia (16).
S.João Evangelista, por El Greco |
Dante então compara o movimento desse
“refulgente esplendor” (schiarato splendore- v.
106), S. João, em direção
aos outros dois apóstolos -- “que
dançavam segundo o ritmo do canto/ adequado ao seu ardente amor” (/.../ si volgieno a
nota/ qual conveniesi al loro ardente amore- v. 107-108) -- a uma alegre donzela entrando na
dança para honrar a noiva, no dia do casamento (lembremo-nos que S. João está
associado ao amor, ou caridade, a terceira virtude teologal). Beatriz observa a
dança e o canto dos três apóstolos “como
a esposa (recém-casada), silenciosa e
imóvel” (pur
come sposa tacita e immota- v.111).
Mantendo o olhar neles, ela assim se refere a S.João, que foi escolhido por
Cristo, do alto da cruz, para cuidar de sua mãe, conforme o evangelho desse
santo:
“Questi è colui che giacque sopra ‘l petto
del nostro pellicano, e questi fue
di su la croce al grande officio eletto.” (v. 112-114)
“Este é aquele que recostou a cabeça no peito/ do nosso pelicano, e foi
escolhido/ para a grande tarefa desde o alto da cruz”.
Acreditava-se que o pelicano bicava
o próprio peito para, com seu sangue, dar vida novamente ao filhote falecido.
Por isso, sua imagem está associada a Cristo, cujo sacrifício, para os
cristãos, redimiu e deu a vida eterna aos homens (17).
Segue-se uma comparação entre a
perda de visão de alguém cujo olhar se fixa num eclipse e o ofuscamento de
Dante que olha atentamente “o último fogo”
(v. 121) para procurar algo que não está ali, ou seja, o corpo de S.João:
Qual è colui ch’adocchia e
s’argomenta
di vedere eclissar lo sole un poco,
che, per veder, non vedente diventa;
tal mi fec’ïo a quell’ ultimo foco
mentre che detto fu: “Perché t’abbagli
per veder cosa che qui
non ha loco? (v. 118-123)
Como
aquele que aguça o olhar e se esforça/ para ver o Sol eclipsar-se um pouco/ e
que por ver fica sem visão,
assim
fiquei eu ao olhar atentamente o último fogo/ até que ele me disse: “Por que te
ofuscas/ para ver coisa que aqui não tem lugar?”
Note-se a sonoridade dos versos
acima, no original, decorrente da ocorrência dos fonemas envolvendo as
consoantes k (ou o c com som equivalente), v e d,
sonoridade essa criada pelo poeta, que mostra aqui sua grande virtuosidade
formal.
S. João conclui sua manifestação
afirmando que seu “corpo agora é terra”
(/.../ è
terra il mio corpo /.../- v.124).
Ele está na terra, juntamente com outros, até que o número deles “se iguale ao propósito divino” (con l’etterno
proposito s’agguagli- v. 126),
ou seja, até que ocorra a ressurreição da carne no Dia do Juízo (18). “Com dupla veste” (Con le due stole
/.../- v.127), i.e., com
corpo e alma, “somente duas luzes subiram”
(son le
due luci sole che saliro- v. 128)
ao “santo claustro” (beato chiostro- v.
127), vale dizer, somente
Cristo e sua mãe subiram ao Céu com corpo e alma. Dante deve relatar isso, ao retornar
ao nosso mundo. E assim desfazer a lenda relativa a S.João.
A essas palavras os três apóstolos
(Pedro, Tiago e João) param sua dança e canto. Isso é comparado por Dante a um
assobio que faz pousar os remos, os quais antes golpeavam a água.
Nos últimos versos do Canto, Dante diz
que ficou admirado com o fato de que, quando se voltou para ver Beatriz, ele
não pôde vê-la, embora estivesse perto dela.
Sandro Botticelli |
Salvador Dalì |
NOTAS
(1) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio.
The Paradiso”. Translated by John Ciardi.
New American Library, 2003, p.821
(2) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony
Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam
Books, 1986- p.398.
(3) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The
Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara
Reynolds. Penguin Books, 1971, p. 278.
(4) MOURA, Vasco Graça—“Dante Alighieri- A
Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. S.Paulo:
Landmark, 2005- p. 813.
(5) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.398-9.
(6) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated
with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986,
p.301.
(7) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of
Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 399.
(8) Id. ib, p. 400.
(9) Id. ib, p. 400.
(10) Salmo IX, 10 (Bíblia traduzida das línguas
orientais) ou IX,11 (Bíblia traduzida da Vulgata): "E em ti esperarão os que conhecem o teu nome, porque tu, Senhor, não desamparaste os que te buscam".
Quase todos os
livros do Velho Testamento foram escritos em hebraico enquanto o Novo
Testamento foi escrito em grego. É conhecida como “Vulgata” a versão latina da Bíblia, feita na
sua quase totalidade por S.Jerônimo (“Bíblia Sagrada”. Ed. Paulinas, 1960, XII
edição, p.612 e Introdução, p. 12-13). S.Jerônimo
viveu de 347 d.C. a 420 d.C.
(11) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The
Divine Comedy 3- Paradise”, op cit, p. 278.
(12) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op
cit, p.303
(13)
MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of
Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 400; CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The Inferno. The
Purgatorio. The Paradiso”, op cit, p. 823.
(14) Id. ib,, p. 823; MOURA, Vasco
Graça—“Dante Alighieri- A Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de
Vasco Graça Moura. S.Paulo: Landmark, 2005- p. 817.
(15) LONGNON, Henri- “La Divine Comédie”.
Traduction, préface, notes et commentaires par Henri Longnon. Paris: Garnier,
1951, p. 682.
(16) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op
cit, p.304.
(17) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy
of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 401-2
(18)
Id. ib., p. 402.
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