sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

CANTO XXV



PARAÍSO


Canto XXV


            O Canto XXV começa com uma referência ao próprio poema que Dante está compondo. Ele espera que tal “poema sacro” (poema sacro- v. 1) vença a crueldade dos florentinos que o desterraram. Seus inimigos são comparados a “lobos” (lupi- v.6) enquanto ele é um “cordeiro” (agnello- v. 5) e Florença é um “belo aprisco” (bello ovile- v. 5).  Ele tem esperança assim de um dia voltar para  sua cidade natal e ser festejado por ela na igreja onde foi batizado (/.../ e na fonte/ do meu batismo receberei a coroa de louros” (/.../ e in sul fonte/ del mio battesmo prenderò ‘l cappello- v. 8-9). Essa foi, pelo batismo, a sua entrada na fé católica. E S. Pedro, reconhecendo que ele a tem, o homenageia, girando sua luz, à guisa de coroa, em torno de sua fronte (v.12).


Amos Nattini
             Então, uma outra luz se aproxima de Dante e Beatriz. Trata-se do apóstolo, S.Tiago, que sai da mesma esfera de onde saíra “o primeiro/ dos vigários que Cristo tinha deixado na terra” (/.../ la primizia/ che lasciò Cristo d’i vicari suoi- v. 14-15), i.e., S.Pedro.  Essa esfera de luz não é o Céu das Estrelas Fixas, o oitavo céu, onde o poeta e sua dama estão (1). S. Tiago é identificado pelas palavras de Beatriz, quando afirma que ele é o “barão” (barone – v. 17, termo aqui usado como sinônimo de senhor feudal, já empregado no Canto XXIV em relação a S.Pedro) “por quem, lá embaixo, se visita a Galícia” (per cui là giù si vicita Galizia- v. 18). Esta é uma região da Espanha onde está situado o santuário de Santiago de Compostela e onde, acreditava-se,  fora sepultado o santo. Era o segundo local de peregrinação mais importante (depois de Roma) na Idade Média (2).

S.Tiago por Peter Paul Rubens
             O poeta, na sequência, compara o encontro entre Pedro e Tiago ao de pombos. Enquanto um destes pousa perto do outro, demonstrando afeição, também aqueles santos se acolhem assim, reciprocamente, “louvando o alimento que lá em cima os nutre” (laudando il cibo che là sù li prande- v. 24), ou seja, a alegria da contemplação de Deus (3).  Depois, eles param diante de Dante (“coram me” = diante de mim- v. 26) (4), “tão fulgurantes” (ignito sì- v. 27) que o ofuscam. Então, Beatriz pede a Tiago fazer “ressoar a esperança nestas alturas/ tu que tantas vezes a figuras / quantas Jesus aos três (apóstolos) mostrou mais benevolência” (fa rissonar la spene in questa altezza:/ tu sai, che tante fiate la figuri,/ quante Iesù ai tre fé più carezza-  v.31-33). S. Tiago está associado à esperança, enquanto S. Pedro, como se viu, à . Mais adiante, os versos indicarão que a caridade (ou o amor) vincula-se a S.João. Os três apóstolos assim representam as três virtudes teologais. A maior benevolência de Cristo por eles se revela no fato de que foram os únicos discípulos que testemunharam certos eventos importantes como a ressureição da filha de Jairo (Luc. 8: 40-56), a transfiguração (Mat.17:1-8) e a oração no horto de Getsêmani, ou das Oliveiras (Mat. 26: 36-46) (5). Quanto ao ofuscamento, Tiago tranquiliza Dante, dizendo que quem vem do “mortal mundo” (mortal mondo- v. 35) “deve em nossos raios amadurecer (sua vista)” (convien che’ai nostri raggi si maturi- v. 36), ou seja, se familiarizar com os raios de luz emanados pelos bem-aventurados. E isso de fato ocorre.

            Uma vez que a Dante, diz S.Tiago, foi concedida, pelo “nosso Imperador” (lo nostro Imperadore- v. 41) (cf a terminologia feudal, também na sequência), a graça dele “antes da morte” (anzi la morte- v.41) se encontrar “com seus condes na sala mais reservada” (ne l’aula più secreta co’ suoi conti- v. 42) – ou seja, encontrar-se com os santos no Empíreo (6) – a fim de que sua esperança, e a de outros (os que ouvirão/ lerão seu poema), seja reforçada, ele deve agora responder às três questões seguintes sobre a esperança que S. Tiago lhe formula: “diz o que ela é, como floresce/ na mente tua, e de onde ela vem para ti” (dì quel ch’ell’ è, dì come se n’nfiora/ la mente tua, e dì onde a te venne - v. 46-47).  

            É Beatriz então, em vez de Dante, quem fala. Ela se antecipa a ele, respondendo à segunda questão. Diz que está escrito no Sol (ou seja, na mente de Deus) que “Nenhum filho da Igreja Militante/ tem mais esperança /.../” (La Chiesa militante alcun figliuolo/ non há con più speranza / ../.- v. 52-53) do que Dante, e que por isso lhe foi concedido “vir do Egito/ a Jerusalém (/.../ che d’Egitto/ vegna in Ierusalemme- v.55-56), “antes que termine seu período de militância” (anzi che ‘l militar li sia prescritto- v. 57), i.e. enquanto está vivo ainda.  Egito -- que é a terra do exílio e cativeiro dos hebreus, conforme a Bíblia --simboliza a vida terrena enquanto Jerusalém, a vida no Céu (7).        

            As outras duas questões Beatriz deixa para Dante responder. A segunda ela respondeu para que ele não elogie a si mesmo, não seja causa de “jactância” (iattanza- v. 62).

            Como discípulo ansioso para mostrar seu conhecimento ao mestre, Dante responde a primeira questão. Ele diz que a esperança “é a expectativa certa/ da glória futura” (è uno attender certo/ de la gloria futura /.../- v. 67-68), ou da “futura beatitude” (8), que resulta da “graça divina e do mérito adquirido” (grazia divina e precedente merto- v. 69).

            Quanto à terceira questão, de onde veio a esperança de Dante, ele afirma:  

Da molte stelle mi vien questa luce;
ma quei la distillò nel mio cor pria
che fu sommo cantor del sommo duce.   (v. 70-72)

Essa luz veio a mim de muitas estrelas;/ mas quem primeiro a instilou em meu coração/ foi o supremo cantor do Supremo Senhor.

            Assim, a esperança lhe veio de “muitas estrelas” (os autores de textos sacros), mas o primeiro a influenciá-lo foi o cantor dos Salmos, o rei Davi (9).  Os versos 73-74 transcrevem inclusive uma passagem deles relativa à esperança (10). Dante diz que está pleno de esperança (que ele replica em outras almas), instilada pela sua “epístola” (pistola- v. 77), a qual, por sua vez, é instilada pelo canto do salmista. Conforme os comentaristas, Dante não distingue S.Tiago Maior (o apóstolo venerado em Santiago de Compostela, irmão de S. João Evangelista) de S.Tiago Menor (irmão de Jesus), que se acredita ser o autor da Epístola bíblica (11).  

            A satisfação de S.Tiago, decorrente da resposta dada por Dante, é revelada, nos vv. 80-82, pelos clarões repentinos, como de relâmpago, no seio daquele "incêndio" (12).
 
          O Santo afirma depois que tal virtude (a esperança) o acompanhou  até a morte (ele foi decapitado no ano 44 d.C.) ou em suas palavras “até a palma (símbolo do martírio) e minha partida do campo de batalha” (infin la palma e a l’uscir del campo- v. 84), vale dizer, quando ele passou da Igreja Militante para a Igreja Triunfante (13). S.Tiago gostaria que Dante lhe dissesse agora “aquilo que a esperança te promete” (quello che la speranza ti ‘mpromette- v. 87).

            O poeta lhe responde que isso está contido nas “novas e antigas escrituras” (/.../ Le nove e le scritture antiche- v.88). E cita o profeta Isaías (LXI, 7), que menciona a “dupla veste” (doppia vesta- v.92) que cada alma usará na “doce vida” (dolce vita- v. 93), o Paraíso. Essa vestimenta dupla se refere às luzes da alma e do corpo dos bem-aventurados, entendendo-se “corpo” a carne ressurecta após o Dia do Juízo (14). Dante cita também “o teu irmão” (tuo fratello- v.94), a saber, S. João Evangelista, que igualmente se refere a essas  brancas vestes” (bianche stole- v. 95) no Apocalipse, VII, 9, 13-17 (15).  

            Concluído o exame de Dante, ouve-se no Céu o canto do salmo IX, relativo à esperança, antes referido.  Depois, entre essas almas, uma luz se intensifica tanto “que se em Câncer houvesse tal cristal/ o mês de inverno seria um só dia” (sì che, se’l Cancro avesse un tal cristallo,/ l’inverno avrebbe un mese d’un sol dì- v. 101-102) (essa luz, como se verá logo adiante, é a de S.João).  O mês de inverno (do ponto de vista do hemisfério Norte), no caso, é o que vai de 21 de dezembro a 21 de janeiro, em que a constelação de Câncer está presente à noite. Se houvesse “tal cristal” ali, ou uma estrela como o Sol nessa constelação, todo o mês em questão estaria iluminado, não haveria mais noite, apenas o dia (16).

S.João Evangelista, por El Greco

            Dante então compara o movimento desse “refulgente esplendor” (schiarato splendore- v. 106), S. João, em direção aos outros dois apóstolos -- “que dançavam segundo o ritmo do canto/ adequado ao seu ardente amor” (/.../ si volgieno a nota/ qual conveniesi al loro ardente amore- v. 107-108) -- a uma alegre donzela entrando na dança para honrar a noiva, no dia do casamento (lembremo-nos que S. João está associado ao amor, ou caridade, a terceira virtude teologal). Beatriz observa a dança e o canto dos três apóstolos “como a esposa (recém-casada), silenciosa e imóvel” (pur come sposa tacita e immota- v.111). Mantendo o olhar neles, ela assim se refere a S.João, que foi escolhido por Cristo, do alto da cruz, para cuidar de sua mãe, conforme o evangelho desse santo:

“Questi è colui che giacque sopra ‘l petto
del nostro pellicano, e questi fue
di su la croce al grande officio eletto.”    (v. 112-114)     
Este é aquele que recostou a cabeça no peito/ do nosso pelicano, e foi escolhido/ para a grande tarefa desde o alto da cruz”.
            Acreditava-se que o pelicano bicava o próprio peito para, com seu sangue, dar vida novamente ao filhote falecido. Por isso, sua imagem está associada a Cristo, cujo sacrifício, para os cristãos, redimiu e deu a vida eterna aos homens (17).   

            Segue-se uma comparação entre a perda de visão de alguém cujo olhar se fixa num eclipse e o ofuscamento de Dante que olha atentamente “o último fogo” (v. 121) para procurar algo que não está ali, ou seja, o corpo de S.João:

Qual è colui ch’adocchia e s’argomenta
di vedere eclissar lo sole un poco,
che, per veder, non vedente diventa;

tal mi fec’ïo a quell’ ultimo foco
mentre che detto fu:  “Perché t’abbagli
per veder cosa che qui non ha loco?     (v. 118-123)

Como aquele que aguça o olhar e se esforça/ para ver o Sol eclipsar-se um pouco/ e que por ver fica sem visão,
assim fiquei eu ao olhar atentamente o último fogo/ até que ele me disse: “Por que te ofuscas/ para ver coisa que aqui não tem lugar?”

            Note-se a sonoridade dos versos acima, no original, decorrente da ocorrência dos fonemas envolvendo as consoantes k (ou o c com som equivalente), v e d, sonoridade essa criada pelo poeta, que mostra aqui sua grande virtuosidade formal.  

            S. João conclui sua manifestação afirmando que seu “corpo agora é terra” (/.../ è terra il mio corpo /.../- v.124). Ele está na terra, juntamente com outros, até que o número deles “se iguale ao propósito divino” (con l’etterno proposito s’agguagli- v. 126), ou seja, até que ocorra a ressurreição da carne no Dia do Juízo (18). “Com dupla veste” (Con le due stole /.../- v.127), i.e., com corpo e alma, “somente duas luzes subiram” (son le due luci sole che saliro- v. 128) ao “santo claustro” (beato chiostro- v. 127), vale dizer, somente Cristo e sua mãe subiram ao Céu com corpo e alma. Dante deve relatar isso, ao retornar ao nosso mundo. E assim desfazer a lenda relativa a S.João.  

            A essas palavras os três apóstolos (Pedro, Tiago e João) param sua dança e canto. Isso é comparado por Dante a um assobio que faz pousar os remos, os quais antes golpeavam a água.

            Nos últimos versos do Canto, Dante diz que ficou admirado com o fato de que, quando se voltou para ver Beatriz, ele não pôde vê-la, embora estivesse perto dela.   

Sandro Botticelli

Salvador Dalì 
  
NOTAS


(1) CIARDI, John-  “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi.  New American Library, 2003, p.821
(2) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.398. 

(3) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.  Penguin Books, 1971, p. 278.

(4) MOURA, Vasco Graça—“Dante Alighieri- A Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. S.Paulo: Landmark, 2005- p. 813.

(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.398-9.

(6) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p.301.

(7) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 399.

(8) Id. ib, p. 400.

(9) Id. ib, p. 400.

(10) Salmo IX, 10 (Bíblia traduzida das línguas orientais) ou IX,11 (Bíblia traduzida da Vulgata): "E em ti esperarão os que conhecem o teu nome, porque tu, Senhor, não desamparaste os que te buscam".
 Quase todos os livros do Velho Testamento foram escritos em hebraico enquanto o Novo Testamento foi escrito em grego. É conhecida como  “Vulgata” a versão latina da Bíblia, feita na sua quase totalidade por S.Jerônimo (“Bíblia Sagrada”. Ed. Paulinas, 1960, XII edição, p.612 e Introdução, p. 12-13). S.Jerônimo viveu de 347 d.C. a  420 d.C.     

(11) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”, op cit, p. 278.  

(12) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p.303

(13) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 400;  CIARDI, John-  “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”, op cit, p. 823.

(14) Id. ib,, p. 823; MOURA, Vasco Graça—“Dante Alighieri- A Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. S.Paulo: Landmark, 2005- p. 817.

(15) LONGNON, Henri- “La Divine Comédie”. Traduction, préface, notes et commentaires par Henri Longnon. Paris: Garnier, 1951, p. 682.

(16) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p.304.

(17) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 401-2

(18) Id. ib., p. 402.
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-Para ouvir o Canto XXV:

 

https://www.youtube.com/watch?v=vmIfQ-ebZLc

 

(acessado em 7.10.20)

  



segunda-feira, 4 de novembro de 2019

CANTO XXIV


PARAÍSO


Canto XXIV


            Nos primeiros nove versos deste Canto é Beatriz quem fala. Ela se dirige aos eleitos, ou à “companhia de eleitos à grande ceia/ do bendito Cordeiro” (O solalizio eletto a la gran cena/ del benedetto Agnello, /.../- v. 1-2), para interceder por Dante, a fim de que ele desfrute, com antecedência (ele que está ali antes de sua morte), "aquilo que cai de vossa mesa" (di quel che cade de la vostra mensa- v. 5) e sacie um pouco sua sede (“orvalhai-o um pouco”: roratelo alquanto- v. 8), seu imenso desejo de conhecer Deus, de beber da mesma fonte em que os eleitos bebem sempre (v.8-9).  (1)

Tais versos apoiam-se em referências bíblicas, ou em suas imagens. Além do Cordeiro, que representa Cristo, há essa menção à ceia, que indica, no caso, a beatitude daquelas almas eleitas que no Paraíso desfrutam da visão de Deus. Não só a fome é saciada por essa ceia, mas também a sede o é, pela “fonte” referida no v. 9.

Após as palavras de Beatriz, aquelas almas alegremente flamejam enquanto giram como esferas de luz em torno de polos fixos.

Segue-se uma comparação desses círculos dançantes, cada qual em um ritmo diferente (v. 16-17), com o mecanismo de um relógio em que a primeira roda parece parada e a última, que voa, de tão veloz. Há aqui uma hierarquia. Dante as avalia em função do seu grau de “riqueza”  (ricchezza- v. 18) espiritual. Do círculo que ele julgou “mais precioso” (più carezza- v. 19) viu sair uma chama não superada pelas outras em claridade. Ela girou "três vezes" (tre fïate- v.22) em torno de Beatriz, entoando um canto tão divino que Dante não tem capacidade de repeti-lo, uma vez que “nossa imaginação, e a fala,/ tem cores vivas demais para representar as dobras do tecido celeste” (chè l’imagine nostra a cotai pieghe,/ non che ‘l parlare, è tropo color vivo- v. 26-27). Ele não pode representar o canto divino “assim como o pintor não pode representar as pregas do tecido”, conforme um comentarista (2). Outro se refere à limitação tecnológica da época relativamente às características dos pigmentos, muito brilhantes para tal representação (3).   

Amos Nattini

Essa “chama bendita” (il foco benedetto- v. 31) é S. Pedro, como se verá a seguir. Ele para de cantar e diz a Beatriz (sua “santa irmã”: santa suora- v. 28) que se separou daquele círculo “mais precioso” (o dos apóstolos) por causa de seu “ardente afeto” (ardente affetto- v.29) expresso no apelo que ela faz aos eleitos em favor de Dante.

Na sequência, Beatriz lhe responde, reiterando esse apelo, agora de forma mais específica e dirigindo-se a S.Pedro -- enfim identificado, pois aqui ela se dirige à “luz eterna do grande homem/ a quem Nosso Senhor deixou as chaves” ( /.../ O luce etterna del gran viro/ a cui Nostro Segnor lasciò le chiavi- v. 34-35) (do Reino, o Paraíso) – pedindo-lhe que ele teste Dante “acerca da fé” (intorno de la fede- v. 38), “pela qual tu andaste sobre o mar” (per la qual tu su per lo mare andavi- v.39), outra referência bíblica que ajuda a identificar o santo (cf. Mateus, XVI, 19 e XIV, 29, como informam as notas das obras citadas abaixo) (4).

S.Pedro Apóstolo por A.Vanni- 1390


S.Pedro Apóstolo por Rubens

Beatriz pede que a Dante “seja dada a ocasião de falar” (di lei parlare è ben ch’a lui arrivi- v. 45) para que ele possa glorificar a fé, meio pelo qual se conquista o Paraíso. Afirma ainda que como Pedro vê a mente de Deus (“aquele lugar em que estão pintadas todas as coisas”: dov’ ogne cosa dipinta si vede- v. 42) (5), ele sabe se Dante “bem ama,  e bem espera e crê” (S’elli ama bene e bene spera e crede- v.40), ou seja, se possui as três virtudes teologais. Assim, sobre a fé, ele será examinado por S.Pedro e, mais adiante por S.Tiago e S.João quanto à esperança e amor (caridade), respectivamente.


G.di Paolo- O exame de Dante

Dante então se compara a um bacharel (sendo submetido, na universidade, ao exame de doutorado) que aguarda a questão a debater proposta pelo examinador. Este (ou melhor,  a luz identificada como S.Pedro) lhe pede para responder à pergunta-- “que é a fé?” (fede che è?- v. 53). Dante responde a Pedro citando o seu “caro irmão” (tuo caro frate-v.62), i.e. S.Paulo, que com ele “colocou Roma no bom caminho” (v. 63), vale dizer, a evangelizou:  

fede è sustanza di cose sperate
e argomento de le non parventi;
e questa pare a me sua quiditate    (v. 64-66)

fé é a substância das coisas esperadas/ e evidência das invisíveis;/ penso ser essa a sua essência”.

A citação está contida em sua Carta aos Hebreus 11:1. Por outro lado, “essência”, como já vimos, é sinônimo do termo “quididade”, da filosofia escolástica (6).

            Logo adiante, nos versos 70 a 78, Dante fornece uma explicação para essa definição de fé. Ele chama “substância” aos “mistérios profundos” (Le profonde cose- v.70)  que lhe foram revelados no Paraíso e que “estão tão ocultos aos olhos dos de baixo” (a li occhi di là giù son sì ascose- v. 72), ou seja, dos habitantes da Terra. Tais mistérios, dada a sua natureza, só existem na crença destes, “sobre a qual se funda a alta esperança” (sopra la qual si fonda l’alta spene- v. 74), quer dizer, sua esperança de alcançar a “eterna beatitude” (7).

           Por outro lado, a fé é também “evidência”, porque daquela crença se podem “deduzir silogismos, por não haver provas sensíveis” (silogizzar, sanz’avere altra vista- v. 77)

            Mais adiante, Pedro indaga sobre a fé de Dante, considerada como uma moeda, na metáfora aí presente:

/.../ “Assai bene è trascorsa
d’esta moneta già la lega e ‘l peso:
ma dimmi se tu l’hai ne la tua borsa”.    (v. 83-85)

/.../ “Bem examinada/ já foi a liga e o peso dessa moeda;/ mas diz-me se tu a tens na tua bolsa”.

            À resposta afirmativa de Dante, Pedro então pergunta de onde lhe proveio “Essa joia preciosa/ sobre a qual toda virtude se funda” (Questa cara gioia/ sopra la quale ogne virtù si fonda- v. 89-90), afirmando implicitamente que sobre a fé se baseia a esperança, a caridade etc (8).

Dante lhe responde que sua fé proveio das revelações divinas contidas na Bíblia, ou no Novo e Velho Testamento. Essa é a fonte de sua fé:

/.../ La larga ploia
de lo Spirito Santo, ch’è diffusa
 in su le vecchie e ‘n sul e nuove cuoia      (v.91-93)

/.../ A chuva abundante/ do Espírito Santo que é difusa/ sobre o velho e o novo   pergaminho
           
            Pedro na sequência quer saber por que Dante as considera como “fala de Deus” (divina favella- v. 99). Por causa dos milagres ali relatados, afirma Dante, pois para as “obras ocorridas” (l’opere seguite- v. 101) “a natureza não tem ferro para esquentar nem bigorna para bater” (v. 102). Quer dizer, a natureza, comparada a um ferreiro, não as explica (9).

Pedro então quer saber o que lhe assegura que aqueles milagres de fato ocorreram. E questiona a validade de seu raciocínio, pois Dante usa como prova aquilo que deve ser provado (“ /.../ Aquilo mesmo/ que precisa provar-se é o que te atesta”: /.../ Quel medesmo/ che vuol provarsi, non altri, il ti giura - v. 104-105). A isso, Dante replica que é o fato de que o Cristianismo expandiu-se no mundo, independentemente dos milagres, só pela fé (10), enaltecendo a seguir o trabalho de Pedro para que isso acontecesse. Dante aproveita também a ocasião para fazer mais uma crítica à Igreja de sua época:  

ché tu intrasti povero e digiuno
in campo, a seminar la buona pianta
che fu già vite e ora è fatta pruno    (v. 109-111) 

pois tu entraste pobre e em jejum/ no campo, a semear a boa planta/ que já foi videira e hoje é espinheiro

            Findo o exame,

/.../ l’alta corte santa
risonò per le spere un “Dio laudamo”
ne la melode che là sù si canta    (v. 112-114)

/.../ a alta e santa corte/ fez ressoar pelas esferas um “Deus louvamos”/ na melodia que lá em cima se canta

demonstrando assim a sua satisfação pelas respostas do examinando (11), o que é confirmado pela afirmação explícita de Pedro de que aprova o que Dante disse (v. 121).
Atendendo o pedido de Pedro, Dante passa a expressar mais detalhadamente no que acredita e a origem de sua fé.  
Declara ao “santo pai” (santo padre- v.124) que crê “num Deus/ único e eterno, que imoto move todos os céus/ com seu amor e o amor deles” ( /.../ Io credo in uno Dio/ solo ed etterno, che tutto ‘l ciel move,/ non moto, con amore e con disio- v. 130-2). Segundo um comentarista, essa ideia do “primeiro motor” vem de Aristóteles (12). Dante prossegue afirmando que sua crença tem por base não só “provas/ físicas e metafísicas” (prove/ ficise e metafisice- v. 133-4) mas também “a verdade que daqui chove” (/.../ la verità che quinci piove- v. 135) “por meio de Moisés, dos profetas e dos salmos” (per Moïsè, per profeti e per salmi- v.136)  (i.e. o Velho Testamento) e “pelos Evangelhos e por vós /.../” (per l’Evangelio e per voi /.../-v.137), ou seja, pelos escritos dos Apóstolos (i.e. o Novo Testamento).
Continuando sua profissão de fé, Dante diz que crê na trindade divina, i.e. ele crê que Deus é um e três pessoas simultaneamente, conforme a doutrina evangélica da condição divina e o dogma católico:

e credo in tre persone etterne, e queste
credo una essenza sì una e sì trina,
che soffera congiunto “sono” ed “este”     (v. 139-141)

e creio em três pessoas eternas/ e em uma essência delas tão una e tão trina/ que admite ao mesmo tempo “são” e “é”

            Nessa “profunda condição divina” (profonda condizion divina- v. 142), a natureza una e trina de Deus, reside a origem de sua fé, sintetiza Dante.
O Canto conclui com uma comparação entre um senhor e S.Pedro. O senhor, alegrando-se com a notícia trazida pelo servo, o abraça. Também Pedro, chamado aqui de “lume apostólico” (l’appostolico lume- v. 153), manifesta seu contentamento com as palavras ditas por Dante cingindo-o "três vezes" (tre volte- v.152) e bendizendo-o enquanto  canta.
Note-se a dupla menção do número três neste canto (v.152 e antes, v. 22), associada a Pedro, que segundo os Evangelhos negou Cristo três vezes (13). O número três, como se sabe, tem um papel importante no poema.

NOTAS

  
(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.392.

(2) MOURA, Vasco Graça—“Dante Alighieri- A Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco da Graça Moura. S.Paulo: Landmark, 2005- p. 803.

(3) SINCLAIR, John D.- “The Divine Comedy of Dante Alighieri with translation and commet by John D. Sinclair”. Oxford University Press, New York, 1961, p. 354

(4) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p. 597;  SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.  Penguin Books, 1971, p. 271; .

(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 394.

(6) Id. ib, p. 394.

(7) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p.291.

(8) Id. ib, p. 291.

(9) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 395;
HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 599. 

(10) MARTINS, Cristiano- “A Divina Comédia”. Segundo volume. Purgatório. Paraíso. Tradução, introdução e notas de Cristiano Martins. 5a edição. Belo Horizonte: Ed Itatiaia, 1989, p. 487, nota. 

(11) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”, op cit, p. 272. 

(12) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p. 293. 

(13) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 596. 

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-Para ouvir o Canto XXIV:

Salvador Dalí 




terça-feira, 17 de setembro de 2019

CANTO XXIII



PARAÍSO


Canto XXIII


            Nos primeiros doze versos desse Canto, Dante compara Beatriz -- que olha para um ponto no alto do 8º céu, o céu das Estrelas Fixas, onde eles estão, correspondente ao zênite do universo (1) -- com uma ave que aguarda o alvorecer e, se antecipando a este, vai buscar alimentos para seus filhotes. Dante, em situação equivalente à deles, também aguarda ser alimentado espiritualmente.

            Então, esse céu se torna cada vez mais claro. E Beatriz mostra as almas dos habitantes do Paraíso, que Dante encontrou nos diversos céus inferiores por que passou, dizendo a ele:

/.../ “Ecco le schiere
del trïunfo di Cristo e tutto ‘l frutto
ricolto del girar di queste spere!”    (v. 19-21)

/.../ “Eis as fileiras/ do triunfo de Cristo, e todo o fruto/ colhido do girar dessas esferas”.

Dante nota que o rosto dela se enche de alegria ao constatar isso.

            Segue-se uma nova comparação, a de um sol sobre mil luzes” (/.../ sopra migliaia di lucerne/ un sol /.../- v. 28-29com Trívia (outro nome de Diana, a Lua), nas noites de plenilúnio, sorrindo entre as ninfas (as estrelas).  Esse sol é Cristo, e as luzes mencionadas, acesas por ele, são as almas que descem ao 8º céu (as almas bem-aventuradas residem permanentemente acima, junto a Deus, mas se apresentaram temporariamente, conforme suas características terrenas, nas esferas inferiores à oitava, visitadas por Dante). O sol “todas elas acendia/ como faz o nosso com as estrelas” (un sol che tutte quante l’accendea,/ come fa ‘l nostro le viste superne- v. 29-30) (de acordo com a ciência medieval, o Sol era responsável pela luz das estrelas) (2). O poeta não consegue contemplar  esse sol:

e per la viva luce trasparea
la lucente sustanza tanto chiara
nel viso mio, che non la sostenea     (v.31-33)

e pela viva luz transparecia/ a fulgurante Substância tão intensa/ que minha vista não podia suportá-la.

            Dante usa aqui a categoria “substância”, da filosofia escolástica, que se contrapõe à “acidente”, a primeira denotando aquilo que tem existência separada e a outra referindo-se à qualidade existente numa substância (3).  

            O poeta então transcreve as palavras que lhe dirige Beatriz a respeito dessa Substância que o ofusca. Trata-se de Cristo, que não é citado nominalmente, mas identificado por seus atributos. Diz Beatriz: :

/.../ “Quel che ti sobranza
è virtu da cui nulla si ripara.

Quivi è la sapïenza e la possanza
ch’apri le strade tra ‘l cielo e la terra,
onde fu già sì lunga disïanza.”       (v. 35-39)

O que te ofusca/ é virtude a que ninguém resiste.
 Ali estão a sabedoria e a potência/ que abriram as estradas entre o céu e a terra,/ desejadas há tanto tempo”.    

            Na sequência, ocorre mais uma comparação, a do fogo (raio) -- que cai do céu depois de dilatar-se muito e não poder ser contido em sua nuvem -- com a mente de Dante, que após ser nutrida por “aquele alimento espiritual” (quelle dape- v. 43), também se expande muito, “saindo de si mesma” (di sé stessa uscìo- v. 44), de modo que ele “não consegue recordar o que se fez” (e che si fesse rimembrar non sape- v. 45).   


Cristo- mosaico bizantino do séc.XII 

            Beatriz também diz a Dante que, após o sucedido (“o triunfo de Cristo”) (4), seus olhos poderão ver agora como ela é; poderão sustentar a visão de seu sorriso (o que não foi possível antes, no céu de Saturno- cf. Canto XXI, v.4-12).

            Dante, ouvindo essa oferta, afirma que sua gratidão “jamais há de apagar-se/ do livro que registra o pretérito” ( /.../ che mai non si stingue/ del libro che ‘l preterito rassegna- v. 53-54), metáfora da sua memória (5). Porém, um pouco antes ele se comparou a uma pessoa que sonhou, esqueceu da visão sonhada (= a visão de Cristo) (6) , “e se esforça/ em vão para trazê-la de volta à mente” ( /.../ e che s’ingegna/ indarno di ridurlasi a la mente- v.50-51).  

            A seguir, Dante menciona “aquelas línguas” (quelle lingue- v.55) que as musas Polimnia e suas irmãs “fizeram/ com seu leite dulcíssimo as mais ricas (/.../ fero/ del latte lor dolcissimo più pingue- v. 56-57), ou seja, os grandes poetas. Mesmo que estes o ajudassem “no canto do santo riso” (cantando il santo riso-v. 59), ele afirma que não se alcançaria nem a “milésima parte da verdade (millesmo del vero- v. 58), na descrição dele (o riso de Beatriz, segundo um comentarista, é uma alegoria da revelação) (7).

            O poeta então refere-se ao seu próprio “sacro poema” (sacrato poema- v.62) e ao “pesado tema” (ponderoso tema- v. 64) dele, sustentado pelo seu “ombro mortal” (omero mortal- v. 65), passível de tremer com a tarefa.  Tal tema

non è pareggio da picciola barca
quel che fendendo va l’ardita prora,
né da nocchier ch’ a sé medesmo parca    (v. 67-69)

não é viagem para pequena barca—/ o mar que minha audaciosa proa fende--/ nem para um timoneiro que se poupa a si mesmo.

            Nos versos seguintes, Beatriz pergunta a Dante -- que  só se dedica a contemplá-la -- por que ele não se volta para o “belo jardim/ que floresce debaixo dos raios de Cristo?” (/.../ al bel giardino/ che sotto i raggi di Cristo s’infiora?- v. 71-72). Para Sayers et al., Beatriz, com essa observação, quer enfatizar aqui a Dante que a verdade de Deus não é encontrada só na verdade abstrata (8). Aquele jardim é uma metáfora da comunidade dos bem-aventurados, i.e dos membros da “Igreja Triunfante” (9). E ela prossegue:

“Quivi è la rosa in che ‘l verbo divino
carne si fece; quivi son li gigli
al cui odor si prese il buon caminho”.     (v. 73-75)

  “Ali está a rosa em que o verbo divino/ se fez carne; ali estão os lírios/ cujo odor conduz ao bom caminho”.

            A imagem da rosa está associada a Maria (chamada de “Rosa Mística” na ladainha romana) e a dos lírios aos apóstolos. O sol, cujos raios favorecem esse jardim, é metáfora de Cristo, como já se disse.

            Na sequência, Dante faz mais uma comparação. Assim como seus olhos já viram um raio de sol atravessar a nuvem e iluminar “campo de flores” (prato di fiori- v.80), também agora eles veem “hostes de esplendores” (turbe di splendori- v. 82) “acesos de cima por ardentes raios” (folgorate di sù da raggi ardenti- v.83), cuja origem ele não pode ver, uma referência à ascensão de Cristo, explicitada na apóstrofe dos versos seguintes (v.85-87), em que o poeta dirige-se diretamente ao “benigno poder” (Cristo) (benigna vertù- v. 85).

            Nessas hostes, após a ascensão de Cristo, é “a maior chama” (lo maggior foco- v. 90), Maria, que lhe atrai a atenção. Dante afirma que invoca duas vezes ao dia “o nome dessa bela flor” (Il nome del bel fior /.../- v. 88). Depois, Maria é referida por outro nome, o de “estrela” (stella- v. 92) (na liturgia católica, ela é chamada “estrela da manhã” e “estrela do mar” (10), ou “stella matutina” e “stella maris”).  Os  olhos do poeta a refletiam quando desceu do céu uma tocha, interpretada como o arcanjo Gabriel (o da Anunciação), ou outro anjo, que forma um círculo em torno dela,  como uma coroa” (a guisa di corona- v. 95).

            A “melodia que mais doce soe/ aqui embaixo” (Qualunque melodia più dolce suona/ qua giù /.../- v.97-98), i.e. na Terra, seria desagradável (como o som do trovão) “comparada ao som daquela lira” (comparata ao sonar di quella lira-  v. 100), vale dizer, o canto do anjo (11). No verso seguinte, é usada uma outra metáfora para designar Maria. Ela é chamada de “bela safira” (bel zaffiro- v. 101) que é assim coroada no “céu mais luminoso” (il ciel più chiaro- v. 102), o céu das Estrelas Fixas, onde estão agora. Na sequência, esse anjo diz a Maria que ele continuará a girar em torno dela até que ela, seguindo seu filho, alcance a “esfera suprema” (la spera suppremma- v. 108), i.e. o Empíreo, morada de Deus e dos bem-aventurados, situado acima do 9º céu, o Primum Mobile, este o mais alto dos céus em movimento, e que move todos os outros, abaixo dele (12). 

Maria, por Dante Gabriel Rossetti

Ao encerrar o canto ou a “melodia circulante” (circulata melodia- v. 109) do anjo, “todos os outros lumes” (tutti li altri lumi- v. 110) -- ou os membros da Igreja Triunfante (13) – fizeram soar o nome de Maria” (facean sonare il nome di Maria-  v.111).

O Primum Mobile, chamado aqui de “real manto de todas as esferas” (Lo real manto di tutti i volumi/ del mondo, /.../- v. 112-113), envolvia o céu onde Dante está, mas ainda estava distante para ele, permanecia, “lá onde eu estava, fora da vista” (là dove io era, ancor non appariva- v. 117).  Por isso Dante não pôde ver a ascensão de Maria (“a coroada chama”), que seguiu a de Cristo, seu filho (aquela “semente” que se desenvolveu em seu ventre):

però non ebber li occhi miei potenza
di seguitar la coronata fiamma
che si levò appresso sua semenza    (v. 118-120)

por isso, meus olhos não puderam/ seguir a coroada chama/ que ascendeu depois de sua semente.

            Segue-se uma última comparação desse Canto, a de uma “criancinha que para a mãe/ estende os braços depois de mamar” ( /.../ fantolin che’ nver’ la mamma/ tende le braccia, poi che ‘l latte prese,- v. 121-122) com  cada uma daquelas luzes (que) se estendeu para o alto” ( ciascun di quei candori in sù si stese- v.124). Estes são os bem-aventurados. Tanto num caso como no outro, o gesto expressa amor pela mãe, diz o poeta.  As luzes permanecem ali, “cantando ‘Regina celi’ tão docemente” (“Regina celi” cantando sì dolce- v. 128), que tal “deleite” (diletto- v.129) de ouvir esse hino pascoal à Mãe de Cristo (14) jamais há de separar-se de Dante, como este afirma.  

            Em seguida, Dante dirige-se  aos bem-aventurados, saudando aquelas “arcas riquíssimas” (arche ricchissime- v.132), ricas de graça (15), pois “foram/ bons semeadores aqui embaixo” (/.../ fuoro/ a seminar qua giù buone bolboce!- v.131-132), ou seja, semeando a palavra de Deus.   

Os dois tercetos finais contêm uma anáfora, em seu verso inicial. Ambos mencionam “aqui”, para se referir ao Paraíso.

No primeiro, afirma-se que desfrutam ali aqueles que estiveram “chorando no exílio da Babilônia” ( /.../ piangendo ne lo essilio/ di  Babillon, /.../.-  v. 133-134), referindo-se aos hebreus que na Terra sofreram tal exílio, conforme a Bíblia.  Tal exílio consiste numa metáfora da vida terrena. O choro deles também sugere “vale de lágrimas”, outra metáfora usada com o mesmo sentido (16).

No segundo, menciona-se indiretamente S.Pedro, ao se dizer que ali, no Paraíso, triunfa “aquele que guarda as chaves desse reino de glória” (colui che tien le chiavi di tal gloria- v. 139). Com ele está “o antigo e o novo concílio” ( /.../ l’antico e col novo concilio- v. 138), interpretado como os santos do Antigo e do Novo Testamento, ou os hebreus libertos do Limbo e os cristãos (17). 

S.Pedro apóstolo- Monastério de Santa Catarina- Monte Sinai, Egito

Amos Nattini
 NOTAS


(1) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p. 567.

(2) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.390.

(3) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 569. 

(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 390.

(5) Id. ib, p. 390.

(6) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.  Penguin Books, 1971, p. 262.

(7) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi.  New American Library, 2003, p.804.

(8) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”, op cit, p. 263.

(9) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.575.  

(10) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.391.

(11) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.554.

(12) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.387.

(13) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.577.

(14) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.392.

(15) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p.281.   

(16) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.392.

(17) MOURA, Vasco Graça—“Dante Alighieri- A Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco da Graça Moura. S.Paulo: Landmark, 2005- p. 801; MAGUGLIANI, Lodovico- notas a “Dante Alighieri- La Divina Commedia- Paradiso”. Introduzione di Bianca Garaveli. Note di Lodovico Magugliani. Biblioteca Universale Rizzoli Superclassici, 2ª ed. 1996. 
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-Para ouvir o Canto XXIII:


(acessado em 2.10.20)

Salvador Dali