PARAÍSO
Canto XXIII
Nos
primeiros doze versos desse Canto, Dante compara Beatriz -- que olha para um
ponto no alto do 8º céu, o céu das Estrelas Fixas, onde eles estão, correspondente ao
zênite do universo (1) -- com uma ave que aguarda o alvorecer e, se antecipando
a este, vai buscar alimentos para seus filhotes. Dante, em situação equivalente
à deles, também aguarda ser alimentado espiritualmente.
Então, esse céu se torna cada vez
mais claro. E Beatriz mostra as almas dos habitantes do Paraíso, que Dante
encontrou nos diversos céus inferiores por que passou, dizendo a ele:
/.../ “Ecco le schiere
del trïunfo di Cristo e tutto ‘l frutto
ricolto del girar di queste spere!” (v. 19-21)
/.../ “Eis
as fileiras/ do triunfo de Cristo, e todo o fruto/ colhido do girar dessas
esferas”.
Dante nota que o rosto dela se enche
de alegria ao constatar isso.
Segue-se uma nova comparação, a de “um sol sobre mil luzes” (/.../ sopra migliaia di lucerne/ un sol /.../- v. 28-29) com Trívia (outro nome de Diana, a Lua), nas noites de plenilúnio, sorrindo entre as ninfas (as estrelas). Esse sol é
Cristo, e as luzes mencionadas, acesas por ele, são as almas que descem ao 8º
céu (as almas bem-aventuradas residem permanentemente acima, junto a Deus, mas
se apresentaram temporariamente, conforme suas características terrenas, nas
esferas inferiores à oitava, visitadas por Dante). O sol “todas elas acendia/ como faz o nosso com as estrelas” (un sol che tutte
quante l’accendea,/ come fa ‘l nostro le viste superne- v. 29-30) (de acordo com a ciência medieval, o Sol era responsável pela luz das estrelas) (2). O poeta não consegue
contemplar esse sol:
e per la viva luce trasparea
la lucente sustanza tanto chiara
nel viso mio, che non la sostenea (v.31-33)
e pela
viva luz transparecia/ a fulgurante Substância tão intensa/ que minha vista não
podia suportá-la.
Dante usa aqui a categoria
“substância”, da filosofia escolástica, que se contrapõe à “acidente”, a
primeira denotando aquilo que tem existência separada e a outra referindo-se à
qualidade existente numa substância (3).
O poeta então transcreve as palavras
que lhe dirige Beatriz a respeito dessa Substância que o ofusca. Trata-se de
Cristo, que não é citado nominalmente, mas identificado por seus atributos. Diz
Beatriz: :
/.../ “Quel che ti sobranza
è virtu da cui nulla si ripara.
Quivi è la sapïenza e la possanza
ch’apri le strade tra ‘l cielo e la terra,
onde fu già sì lunga disïanza.” (v. 35-39)
“O que
te ofusca/ é virtude a que ninguém resiste.
Ali estão a sabedoria e a potência/ que
abriram as estradas entre o céu e a terra,/ desejadas há tanto tempo”.
Na sequência, ocorre mais uma
comparação, a do fogo (raio) -- que cai do céu depois de dilatar-se muito e não
poder ser contido em sua nuvem -- com a mente de Dante, que após ser nutrida
por “aquele alimento espiritual” (quelle dape- v. 43), também se expande muito, “saindo de si mesma” (di sé stessa uscìo- v.
44), de modo que ele “não consegue recordar o que se fez” (e che si fesse
rimembrar non sape- v. 45).
Cristo- mosaico bizantino do séc.XII |
Beatriz também diz a Dante que, após
o sucedido (“o triunfo de Cristo”) (4), seus olhos poderão ver agora como ela
é; poderão sustentar a visão de seu sorriso (o que não foi possível antes, no
céu de Saturno- cf. Canto XXI, v.4-12).
Dante, ouvindo essa oferta, afirma
que sua gratidão “jamais há de apagar-se/
do livro que registra o pretérito” ( /.../ che mai non si stingue/ del libro che
‘l preterito rassegna- v. 53-54),
metáfora da sua memória (5). Porém, um pouco antes ele se comparou a uma pessoa
que sonhou, esqueceu da visão sonhada (= a visão de Cristo) (6) , “e se esforça/ em vão para trazê-la de volta
à mente” ( /.../
e che s’ingegna/ indarno di ridurlasi a la mente- v.50-51).
A seguir, Dante menciona “aquelas línguas” (quelle lingue- v.55) que as musas Polimnia e suas irmãs “fizeram/ com seu leite dulcíssimo as mais
ricas” (/.../ fero/ del latte
lor dolcissimo più pingue- v. 56-57),
ou seja, os grandes poetas. Mesmo que estes o ajudassem “no canto do santo riso” (cantando il santo riso-v. 59), ele afirma que não se alcançaria
nem a “milésima parte da verdade” (millesmo del vero- v. 58), na descrição dele (o riso de
Beatriz, segundo um comentarista, é uma alegoria da revelação) (7).
O poeta então refere-se ao seu
próprio “sacro poema” (sacrato poema- v.62) e ao “pesado tema” (ponderoso tema- v. 64) dele, sustentado pelo seu “ombro mortal” (omero mortal- v. 65),
passível de tremer com a tarefa. Tal
tema
non è pareggio da picciola barca
quel che fendendo va l’ardita prora,
né da nocchier ch’ a sé medesmo parca (v. 67-69)
não é
viagem para pequena barca—/ o mar que minha audaciosa proa fende--/ nem para um
timoneiro que se poupa a si mesmo.
Nos
versos seguintes, Beatriz pergunta a
Dante -- que só se dedica a contemplá-la
-- por que ele não se volta para o “belo
jardim/ que floresce debaixo dos raios de Cristo?” (/.../ al bel
giardino/ che sotto i raggi di Cristo s’infiora?- v. 71-72). Para Sayers et al., Beatriz, com
essa observação, quer enfatizar aqui a Dante que a verdade de Deus não é
encontrada só na verdade abstrata (8). Aquele jardim é uma metáfora da
comunidade dos bem-aventurados, i.e dos membros da “Igreja Triunfante” (9). E
ela prossegue:
“Quivi è la rosa in che ‘l verbo divino
carne si fece; quivi son li gigli
al cui odor si prese il buon caminho”. (v. 73-75)
“Ali está a rosa em que o verbo divino/ se
fez carne; ali estão os lírios/ cujo odor conduz ao bom caminho”.
A imagem da rosa está associada a
Maria (chamada de “Rosa Mística” na ladainha romana) e a dos lírios aos
apóstolos. O sol, cujos raios favorecem esse jardim, é metáfora de Cristo, como
já se disse.
Na sequência, Dante faz mais uma
comparação. Assim como seus olhos já viram um raio de sol atravessar a nuvem e iluminar
“campo de flores” (prato di fiori- v.80), também agora eles veem “hostes de esplendores” (turbe di splendori- v.
82) “acesos de cima por ardentes raios” (folgorate di sù da raggi ardenti- v.83), cuja origem ele não pode ver, uma
referência à ascensão de Cristo, explicitada na apóstrofe dos versos seguintes
(v.85-87), em que o poeta dirige-se diretamente ao “benigno poder” (Cristo) (benigna vertù- v. 85).
Nessas hostes, após a ascensão de
Cristo, é “a maior chama” (lo maggior foco- v.
90), Maria, que lhe atrai
a atenção. Dante afirma que invoca duas vezes ao dia “o nome dessa bela flor” (Il nome del bel fior /.../- v. 88). Depois, Maria é referida por outro
nome, o de “estrela” (stella- v. 92) (na liturgia católica, ela é chamada
“estrela da manhã” e “estrela do mar” (10), ou “stella matutina” e “stella maris”).
Os olhos do poeta a refletiam quando desceu do
céu uma tocha, interpretada como o arcanjo Gabriel (o da Anunciação), ou outro
anjo, que forma um círculo em torno dela, “como
uma coroa” (a
guisa di corona- v. 95).
A “melodia que mais doce soe/ aqui embaixo” (Qualunque melodia più
dolce suona/ qua giù /.../- v.97-98),
i.e. na Terra, seria desagradável (como o som do trovão) “comparada ao som daquela lira” (comparata ao sonar di quella lira- v. 100),
vale dizer, o canto do anjo (11). No verso seguinte, é usada uma outra metáfora
para designar Maria. Ela é chamada de “bela
safira” (bel
zaffiro- v. 101) que é
assim coroada no “céu mais luminoso”
(il ciel
più chiaro- v. 102), o
céu das Estrelas Fixas, onde estão agora. Na sequência, esse anjo diz a Maria
que ele continuará a girar em torno dela até que ela, seguindo seu filho,
alcance a “esfera suprema” (la spera suppremma- v.
108), i.e. o Empíreo,
morada de Deus e dos bem-aventurados, situado acima do 9º céu, o Primum Mobile,
este o mais alto dos céus em movimento, e que move todos os outros, abaixo dele
(12).
Maria, por Dante Gabriel Rossetti |
Ao encerrar o canto ou a “melodia circulante” (circulata melodia- v.
109) do anjo, “todos os outros lumes” (tutti li altri lumi- v.
110) -- ou os membros da
Igreja Triunfante (13) – “fizeram soar o nome de Maria” (facean sonare il nome
di Maria- v.111).
O Primum Mobile, chamado aqui de “real manto de todas as esferas” (Lo real manto di
tutti i volumi/ del mondo, /.../- v. 112-113), envolvia o céu onde Dante está, mas ainda estava
distante para ele, permanecia, “lá onde
eu estava, fora da vista” (là dove io era, ancor non appariva- v. 117).
Por isso Dante não pôde ver a ascensão de Maria (“a coroada chama”), que
seguiu a de Cristo, seu filho (aquela “semente” que se desenvolveu em seu
ventre):
però non ebber li occhi miei potenza
di seguitar la coronata fiamma
che si levò appresso sua semenza (v. 118-120)
por
isso, meus olhos não puderam/ seguir a coroada chama/ que ascendeu depois de
sua semente.
Segue-se uma última comparação desse
Canto, a de uma “criancinha que para a
mãe/ estende os braços depois de mamar” ( /.../ fantolin che’ nver’ la mamma/
tende le braccia, poi che ‘l latte prese,- v. 121-122) com
“cada uma daquelas luzes (que) se estendeu para o alto” ( ciascun di quei
candori in sù si stese- v.124).
Estes são os bem-aventurados. Tanto num caso como no outro, o gesto expressa
amor pela mãe, diz o poeta. As luzes permanecem
ali, “cantando ‘Regina celi’ tão
docemente” (“Regina
celi” cantando sì dolce- v. 128),
que tal “deleite” (diletto-
v.129) de ouvir esse hino
pascoal à Mãe de Cristo (14) jamais há de separar-se de Dante, como este afirma.
Em seguida, Dante dirige-se aos bem-aventurados, saudando aquelas “arcas riquíssimas” (arche ricchissime- v.132), ricas de graça (15), pois “foram/ bons semeadores aqui embaixo” (/.../ fuoro/ a seminar qua giù buone
bolboce!- v.131-132), ou seja,
semeando a palavra de Deus.
Os dois tercetos finais contêm uma
anáfora, em seu verso inicial. Ambos mencionam “aqui”, para se referir ao
Paraíso.
No primeiro, afirma-se que desfrutam
ali aqueles que estiveram “chorando no exílio
da Babilônia” ( /.../
piangendo ne lo essilio/ di Babillon,
/.../.- v. 133-134), referindo-se aos hebreus que na
Terra sofreram tal exílio, conforme a Bíblia. Tal exílio consiste numa metáfora da vida terrena.
O choro deles também sugere “vale de lágrimas”, outra metáfora usada com o
mesmo sentido (16).
No segundo, menciona-se indiretamente
S.Pedro, ao se dizer que ali, no Paraíso, triunfa “aquele que guarda as chaves desse reino de glória” (colui che tien le
chiavi di tal gloria- v. 139).
Com ele está “o antigo e o novo concílio”
( /.../
l’antico e col novo concilio- v. 138),
interpretado como os santos do Antigo e do Novo Testamento, ou os hebreus
libertos do Limbo e os cristãos (17).
S.Pedro apóstolo- Monastério de Santa Catarina- Monte Sinai, Egito |
Amos Nattini |
(1) HOLLANDER, Robert
& Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert &
Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander. Doubleday, 2007, p. 567.
(2) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony
Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam
Books, 1986- p.390.
(3) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 569.
(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of
Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 390.
(5) Id. ib, p. 390.
(6) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The
Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara
Reynolds. Penguin Books, 1971, p. 262.
(7) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The
Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi. New American Library, 2003, p.804.
(8) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The
Divine Comedy 3- Paradise”, op cit, p. 263.
(9) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p.575.
(10) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy
of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.391.
(11)
HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.554.
(12) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy
of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.387.
(13)
HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.577.
(14) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy
of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.392.
(15) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated
with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986,
p.281.
(16) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy
of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.392.
(17) MOURA, Vasco Graça—“Dante Alighieri- A
Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco da Graça Moura. S.Paulo:
Landmark, 2005- p. 801; MAGUGLIANI, Lodovico- notas a “Dante Alighieri- La
Divina Commedia- Paradiso”. Introduzione di Bianca Garaveli. Note di Lodovico Magugliani.
Biblioteca Universale Rizzoli Superclassici, 2ª ed. 1996.
------------------------------
-Para ouvir o Canto XXIII:
(acessado em 2.10.20)
Salvador Dali |
Nenhum comentário:
Postar um comentário