terça-feira, 25 de setembro de 2018

CANTO XVII


PARAÍSO


Canto XVII


            O Canto inicia por uma comparação. Dante afirma que se sentia “Como aquele que buscou Climene” (Qual venne a Climenè, /.../- v.1) para esclarecer sua dúvida. Trata-se de Faetonte, filho dela, conforme a mitologia clássica. Assim como Faetonte procurou sua mãe para esclarecer uma questão que o preocupava (saber se seu pai era de fato o deus Apolo), Dante também gostaria de ser esclarecido por Beatriz, ou seu ancestral, a respeito das previsões feitas contra ele anteriormente, quando percorria o mundo subterrâneo do “Inferno” ou o monte do  “Purgatório”. Cacciaguida é referido como “a santa luz/ que antes, na cruz, tinha mudado de lugar por mim” (/.../ la santa lampa/ che pria per me avea mutato sitio- v. 5-6), pois, como vimos, ele antes, comparado a uma estrela cadente, deslocara-se ao longo da cruz luminosa do céu de Marte para entrar em contato com Dante. 

            Beatriz estimula o poeta a expressar ao trisavô seu desejo de esclarecimento. Ela diz que Dante deve (enquanto estiver no Paraíso, supõe-se) habituar-se “a falar da tua sede, a fim de que ela seja saciada” (a dir la sete, sì che l’uom ti mesca- v.12). Não que isso fará crescer o seu conhecimento, ou de outros bem-aventurados, pois eles já leem tudo na mente de Deus (1)... 

            Então, Dante dirige-se a Cacciaguida (v. 13 a 27), ciente de que ele, por ser também bem-aventurado, conhece o futuro:  

così vedi le cose contingenti
anzi che sieno in sé, mirando il punto
a cui tutti li tempi son presenti;      (v.16-18)

assim tu vês as coisas contingentes/ antes que venham a ser, olhando o ponto/ onde todos os tempos são presentes;

Cacciaguida, na sua condição excelsa, vê o futuro com clareza “assim como as mentes terrenas veem/ não caber em um triângulo dois ângulos obtusos” ( /.../ come veggion le terrene menti/ non capere in trïangol due ottusi-  v.14-15) (é prazerosa essa atitude generalista de Dante-autor, incorporando no caso uma verdade matemática à poesia!...Ele também faz isso com a astronomia e outras disciplinas científicas).  Foram ditas a Dante-personagem “palavras preocupantes” (parole gravi- v. 23) sobre sua vida futura quando subia com Virgílio o “monte que as almas cura” (Purgatório) ( /.../ per lo monte che l’anime cura- v.20) ou “descendo no mundo morto” (Inferno)   ( /.../ discendendo nel mondo defunto- v. 21). Por isso, afirma: “meu desejo seria satisfeito/ se eu soubesse que fortuna se aproxima de mim/ pois a seta quando prevista vem mais lenta”  ( /.../ la voglia mia saria contenta/ d’intender qual fortuna mi s’appressa:/ ché saetta previsa vien più lenta-  v. 25-27).

Assim Dante expressa o que deseja saber. E “aquele pai amoroso (quello amor paterno- v.35), Cacciaguida, responde ao trineto “com palavras claras e linguagem precisa” ( /.../ per chiare parole e con preciso/ latin /.../- v. 34-35), não com as “palavras ambíguas” (ambage- v. 31) e enganadoras próprias do paganismo     (“/.../ antes que fosse morto/ o Cordeiro de Deus”: /.../ pria che fosse anciso/ l’Agnel de Dio /.../- v.32-33) (2). Ele inicia sua fala empregando conceitos escolásticos, ao distinguir fatos contingentes (os que podem ocorrer ou não, os fatos do mundo terreno) dos necessários. Afirma que os primeiros (os fatos contingentes) “estão incluídos na Visão Eterna; / porém isso não os torna necessários,/ como os olhos que refletem o navio/ não determinam sua descida pela corrente”:

 tutta è dipinta nel cospetto eterno;

necessità  però quindi non prende
se non come dal viso in che si specchia
nave che per torrente giù discende.    (v. 39-42)

Ou seja, os fatos contingentes estão incluídos na mente de Deus, mas não decorrem d’Ele (como os necessários), e sim do livre-arbítrio humano (3). Quer dizer, Deus sabe o que vai acontecer mas não interfere na ação do ser humano, que é livre. O poeta usa aqui essa imagem interessante para ilustrar a situação em questão: o observador sabe o que vai ocorrer com o navio, ele vai prosseguir, descendo a corrente, mas isso independe de seu olhar.

Na sequência, Cacciaguida, que partilha da “Visão Eterna” e sabe o que o futuro prepara para Dante, afirma que ele partirá de Florença como Hipólito de Atenas, “por causa da madrasta pérfida e cruel” (per la spietata e perfida noverca- v. 47). Fedra o desejou,  mas como foi rejeitada pelo enteado, ela o acusou de tentar seduzi-la ao seu marido, Teseu, e por isso Hipólito teve que fugir de Atenas (4). Assim o exílio de Dante de Florença (a sua madrasta) é comparado ao do inocente Hipólito de Atenas.

Tal exílio já está sendo planejado “lá onde Cristo todo dia é negociado  (là dove Cristo tutto dì si merca- v. 51), i.e. em Roma, na Cúria venal do papa Bonifácio VIII,  que interferiu na política interna de Florença, favorecendo os Guelfos Negros de Corso Donati e contribuindo para derrubar os Brancos do poder, inclusive Dante (5).


Bonifácio VIII

A culpa será atribuída aos vencidos, como é usual; mas a vingança de Deus “dará testemunho da verdade” (/.../ fia testimonio al ver /.../- v. 54). Duas amostras disso serão a morte violenta de Corso Donati e a humilhação de Bonifácio VIII por Felipe o Belo, que ocorrerão nos anos subsequentes (6).

Cacciaguida prossegue, caracterizando a vida de Dante no exílio e fazendo uso novamente da imagem da seta e do arco nessa passagem famosa:

Tu lascerai ogne cosa diletta
più caramente; e questo è quello strale
che l’arco de lo essilio pria saetta.

Tu proverai sì come sa di sale
lo pane altrui, e come è duro calle
lo scendere e ‘l salir per l’altrui scale.    (v.55-60)


Tu deixarás todas as coisas/ que mais amas; essa é a seta/ que o arco do exílio primeiro lança.
Tu provarás como tem gosto amargo/ o pão alheio, e como é duro/ descer e subir pelas escadas de outrem.  

Cacciaguida se referirá ainda, de forma crítica, à companhia que Dante terá de suportar no exílio, a dos outros Guelfos Brancos, uma “companhia malvada e néscia” ( /.../ la compagnia malvagia e scempia- v. 62) que se voltará contra o poeta. Mas os rostos dessa gente bruta (traiçoeira) ficarão rubros (de sangue ou vergonha). E será bom para Dante afastar-se deles, viver só. Como ele diz:  “/.../ e bom será para ti/ fazer de ti mesmo um partido” ( /.../ sì ch’ a te fia bello/ averti fatta parte per te stesso- v. 68-69). Esses Guelfos Brancos exilados não seguiram as recomendações de Dante, planejaram mal o confronto com os Guelfos Negros e foram por estes derrotados em La Lastra no ano de 1304. Seu exército era formado por 10 mil homens. Do confronto resultou 400 mortos (7).

Amos Nattini. 

           Depois, Cacciaguida refere-se ao primeiro nobre que hospedará Dante no exílio, que lhe dará “benigna atenção” (benigno riguardo- v. 73). Trata-se do “grande Lombardo/ que sobre a escada porta a santa ave” (/.../ gran Lombardo/ che ‘n su la scala porta il santo uccello- v.71-72). Este é identificado como Bartolommeo della Scala, senhor de Verona, e a menção ao seu brasão ajuda a identificá-lo, pois lembra o nome da família (escada= scala) e a águia do Império (8). A fala do trisavô se estende até o v. 99. (Dante-autor põe em sua boca palavras de elogio e da esperança que tinha em Cangrande della Scala, irmão mais novo de Bartolommeo, então com nove anos apenas (v. 80) (quando se passa a ação do poema, em 1300). Afirma que a “estrela forte” (stella forte- v. 77) de Marte (em cujo céu estão) o assinalara, ao nascer, “para que notável seja a obra sua” (che notabili fier l’opere sue- v. 78). Ainda não o notaram pela sua pouca idade; mas ele “cintilará sua virtude/ na indiferença pela prata e a fadiga   (parran faville de la sua virtute/ in non curar d’argento né d’affanni-  v. 83-84) e também pela generosidade (v.85), “ /.../ antes que o Gascão engane o nobre Henrique” ( / .../ pria che ‘l Guasco l’ alto Arrigo inganni- v. 82), ou antes que o papa Clemente V (da Gasconha, na França) iludisse o imperador Henrique VII, primeiro reconhecendo-o como titular do Sacro Império Romano Germânico e depois recuando dessa posição, quando Henrique desceu à Itália em 1312 (9).

Clemente V

        Dante-autor faz ainda Cacciaguida recomendar ao seu descendente que  ele confie em Cangrande, após fazer o seu elogio (Cangrande assumirá o poder em Verona no ano de 1311). Depois de se frustrar com Henrique VII, era nele que o poeta passou a depositar suas esperanças para fortalecer o Império, e simultaneamente liberar a Igreja de seu poder temporal. (10) A propósito, este terceiro cântico da “Comédia”, o “Paraíso”, foi dedicado a ele em carta que Dante lhe dirigiu.  


Cangrande della Scala

          Cacciaguida conclui essa sua antevisão das “/.../ ciladas/ que se escondem por trás de uns poucos anos” (vindouros) ( /.../ le ‘nsidie/ che dietro a pochi giri son nascose- v. 95-96), expressando seu desejo de que Dante não odeie por isso os vizinhos florentinos, “pois a tua vida (pela sua grande obra, presume-se) se projeta no futuro/ muito além da punição das perfídias deles   (poscia che s’infutura la tua vita/ via più là che ‘l punir di lor perfidie- v.98-99).

Depois que Cacciaguida calou-se --- ou, como dizem os versos, de modo metafórico, depois que ele revelou “ter acabado de tecer/ aquela tela que eu urdira” (/.../ di metter la trama/ in quella tela ch’io le porsi ordita- v. 101-102) (ao lhe formular a pergunta sobre seu futuro, nos v. 25-27) -- Dante manifesta-se, dizendo a seu ancestral que face ao que ouviu “/.../ de prudência é bom que eu me arme” (/.../ di provedenza è buon ch’io m’armi-  v. 109), cuidando para não perder outros lares-substitutos (ele que vai perder o seu lar, Florença, ao ser exilado) por causa de seus versos (v. 111) a serem elaborados, críticos de poderosas famílias de então. Afirma ainda que em sua visita ao Inferno (“ /.../ pelo mundo de amargura sem fim”   ( /.../ per lo mondo sanza fine amaro- v. 112), ao monte do Purgatório e às esferas celestes, obteve muitas informações que, “se as redigo” ( /.../  s’io ridico- v. 116), ou seja, se as conta em seu poema, “a muitos terá gosto demasiado ácido” (a molti fia sapor di forte agrume- v. 117), e assim perderá amigos. Mas se ele não disser toda a verdade, “se eu for tímido amigo da verdade” ( e s’io al vero son timido amico- v.118), isso prejudicará sua fama junto aos pósteros. Esse é o seu dilema, conforme aponta Hollander (11).

Cacciaguida, em sua luz, “primeiro fulgurou / como espelho dourado a raio de Sol”    ( /.../ si fé prima corusca,/ quale a raggio di sole specchio d’oro-   v. 122-123). Em seguida, respondeu a Dante, aconselhando-o a contar a verdade, apesar daqueles que, tomados pela vergonha, acharão sua palavra desagradável (v. 126). Afirma, prosaicamente: “deixa quem tem sarna se coçar” (e lascia pur grattar dov’è la rogna- v. 129). A voz de Dante será “vital alimento” (vital nodrimento- v. 132) depois, “quando for digerida” (/.../ quando sarà digesta- v. 132).

Acrescenta por fim esta observação, incentivando-o a referir-se em seu poema (“teu grito”- v. 133) aos notáveis (“altos cumes”- v. 134) que lhe foram mostrados nesses reinos do Além:   

Questo tuo grido farà come vento,
che le più alte cime più percuote;
e ciò non fa d’onor poco argomento.    (v. 133-135)

Esse teu grito fará como o vento,/ que mais golpeia os mais altos cumes; / e isso não será para ti pequeno motivo de honra.  

            Assim, será honroso para Dante narrar que viu “nestas esferas,/ no monte e no vale doloroso/ apenas almas notáveis pela fama” ( /.../ in queste rote,/ nel monte e ne la valle dolorosa/ pur l’anime che son di fama note- v. 136-138). Esse fato, e razões claras (v. 142), contribuirão para quem o ouvir “pôr fé” (v. 140) no que ele disser em seus versos.



NOTAS


(1) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p.207.   

(2) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p.419.

(3) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi.  New American Library, 2003, p.748.

(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.371.

(5) Id. ib., p. 371-372.

(6) Id., ib., p. 372.  Cf também  MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Bantam Books, 1984-  p.378 (além da p. XXV- XXVI da Introdução) e p.367. 

(7) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 424-425

(8) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 372.

(9) Id. ib, p.372-373. Cf também MARTINS, Cristiano- “A Divina Comédia”. Segundo volume. Purgatório. Paraíso. Tradução, introdução e notas de Cristiano Martins. 5a edição. Belo Horizonte: Ed Itatiaia, 1989, p. 428, nota. 

(10) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 425.

(11) Id. ib, p. 405.

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Para ouvir o Canto XVII:





  







































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