PARAÍSO
Canto XVII
O
Canto inicia por uma comparação. Dante afirma que se sentia “Como aquele que buscou Climene” (Qual venne a Climenè,
/.../- v.1) para
esclarecer sua dúvida. Trata-se de Faetonte, filho dela, conforme a mitologia clássica. Assim como Faetonte
procurou sua mãe para esclarecer uma questão que o preocupava (saber se seu pai
era de fato o deus Apolo), Dante também gostaria de ser esclarecido por Beatriz,
ou seu ancestral, a respeito das previsões feitas contra ele anteriormente,
quando percorria o mundo subterrâneo do “Inferno” ou o monte do “Purgatório”. Cacciaguida é referido como “a santa luz/ que antes, na cruz, tinha
mudado de lugar por mim” (/.../ la santa lampa/ che pria per me avea mutato sitio- v.
5-6), pois, como vimos, ele antes, comparado a uma estrela cadente, deslocara-se ao longo da cruz luminosa do céu de Marte para entrar em contato com Dante.
Beatriz estimula o poeta a expressar
ao trisavô seu desejo de esclarecimento. Ela diz que Dante deve (enquanto
estiver no Paraíso, supõe-se) habituar-se “a
falar da tua sede, a fim de que ela seja saciada” (a dir la sete, sì che
l’uom ti mesca- v.12). Não
que isso fará crescer o seu conhecimento, ou de outros bem-aventurados, pois
eles já leem tudo na mente de Deus (1)...
Então, Dante dirige-se a Cacciaguida
(v. 13 a 27), ciente de que ele, por ser também bem-aventurado, conhece o
futuro:
così vedi le cose contingenti
anzi che sieno in sé, mirando il punto
a cui tutti li tempi son presenti; (v.16-18)
assim tu
vês as coisas contingentes/ antes que venham a ser, olhando o ponto/ onde todos
os tempos são presentes;
Cacciaguida, na sua condição excelsa,
vê o futuro com clareza “assim como as
mentes terrenas veem/ não caber em um triângulo dois ângulos obtusos” ( /.../ come veggion le
terrene menti/ non capere in trïangol due ottusi- v.14-15)
(é prazerosa essa atitude generalista de Dante-autor, incorporando no caso uma verdade matemática à poesia!...Ele também faz isso com a
astronomia e outras disciplinas científicas). Foram ditas a Dante-personagem
“palavras preocupantes” (parole gravi- v. 23) sobre sua vida futura quando subia
com Virgílio o “monte que as almas cura”
(Purgatório) ( /.../
per lo monte che l’anime cura- v.20)
ou “descendo no mundo morto”
(Inferno) ( /.../ discendendo nel
mondo defunto- v. 21).
Por isso, afirma: “meu desejo seria
satisfeito/ se eu soubesse que fortuna se aproxima de mim/ pois a seta quando prevista
vem mais lenta” ( /.../ la voglia mia
saria contenta/ d’intender qual fortuna mi s’appressa:/ ché saetta previsa vien
più lenta- v. 25-27).
Assim Dante expressa o que deseja
saber. E “aquele pai amoroso” (quello amor paterno- v.35), Cacciaguida, responde ao trineto “com palavras claras e linguagem precisa”
( /.../
per chiare parole e con preciso/ latin /.../- v. 34-35), não com as “palavras ambíguas” (ambage- v. 31) e enganadoras próprias do paganismo (“/.../
antes que fosse morto/ o Cordeiro de
Deus”: /.../ pria che fosse anciso/ l’Agnel
de Dio /.../-
v.32-33) (2). Ele inicia
sua fala empregando conceitos escolásticos, ao distinguir fatos contingentes
(os que podem ocorrer ou não, os fatos do mundo terreno) dos necessários.
Afirma que os primeiros (os fatos contingentes) “estão
incluídos na Visão Eterna; / porém isso não os torna necessários,/ como os
olhos que refletem o navio/ não determinam sua descida pela corrente”:
tutta è dipinta nel cospetto eterno;
necessità però quindi non prende
se non come dal viso
in che si specchia
nave che per torrente
giù discende. (v. 39-42)
Ou seja, os fatos contingentes estão
incluídos na mente de Deus, mas não decorrem d’Ele (como os necessários), e sim
do livre-arbítrio humano (3). Quer dizer, Deus sabe o que vai acontecer mas não
interfere na ação do ser humano, que é livre. O poeta usa aqui essa imagem
interessante para ilustrar a situação em questão: o observador sabe o que vai
ocorrer com o navio, ele vai prosseguir, descendo a corrente, mas isso
independe de seu olhar.
Na sequência, Cacciaguida, que partilha
da “Visão Eterna” e sabe o que o futuro prepara para Dante, afirma que ele
partirá de Florença como Hipólito de Atenas, “por causa da madrasta pérfida e cruel” (per la spietata e
perfida noverca- v. 47).
Fedra o desejou, mas como foi rejeitada
pelo enteado, ela o acusou de tentar seduzi-la ao seu marido, Teseu, e por isso
Hipólito teve que fugir de Atenas (4). Assim o exílio de Dante de Florença (a
sua madrasta) é comparado ao do inocente Hipólito de Atenas.
Tal exílio já está sendo planejado “lá onde Cristo todo dia é negociado” (là dove Cristo tutto dì si merca- v. 51), i.e. em Roma, na Cúria venal do
papa Bonifácio VIII, que interferiu na política
interna de Florença, favorecendo os Guelfos Negros de Corso Donati e
contribuindo para derrubar os Brancos do poder, inclusive Dante (5).
Bonifácio VIII |
A culpa será atribuída aos vencidos, como
é usual; mas a vingança de Deus “dará
testemunho da verdade” (/.../ fia testimonio al ver /.../- v. 54). Duas amostras disso serão a morte
violenta de Corso Donati e a humilhação de Bonifácio VIII por Felipe o Belo,
que ocorrerão nos anos subsequentes (6).
Cacciaguida prossegue, caracterizando
a vida de Dante no exílio e fazendo uso novamente da imagem da seta e do arco
nessa passagem famosa:
Tu lascerai ogne cosa diletta
più caramente; e questo è quello strale
che l’arco de lo essilio pria saetta.
Tu proverai sì come sa di sale
lo pane altrui, e come è duro calle
lo scendere e ‘l salir per l’altrui
scale. (v.55-60)
Tu
deixarás todas as coisas/ que mais amas; essa é a seta/ que o arco do exílio
primeiro lança.
Tu
provarás como tem gosto amargo/ o pão alheio, e como é duro/ descer e subir
pelas escadas de outrem.
Cacciaguida se referirá ainda, de
forma crítica, à companhia que Dante terá de suportar no exílio, a dos outros Guelfos Brancos, uma “companhia malvada e néscia”
( /.../
la compagnia malvagia e scempia- v. 62)
que se voltará contra o poeta. Mas os rostos dessa gente bruta (traiçoeira) ficarão
rubros (de sangue ou vergonha). E será bom para Dante afastar-se deles, viver
só. Como ele diz: “/.../ e bom será para ti/ fazer de ti mesmo um partido” ( /.../ sì ch’ a te fia
bello/ averti fatta parte per te stesso- v. 68-69). Esses Guelfos Brancos exilados não seguiram as
recomendações de Dante, planejaram mal o confronto com os Guelfos Negros e
foram por estes derrotados em La Lastra no ano de 1304. Seu exército era
formado por 10 mil homens. Do confronto resultou 400 mortos (7).
Amos Nattini. |
Clemente V |
Dante-autor faz ainda Cacciaguida recomendar ao seu descendente que ele confie em Cangrande, após fazer o seu elogio (Cangrande assumirá o poder em Verona no ano de 1311). Depois de se frustrar com Henrique VII, era nele que o poeta passou a depositar suas esperanças para fortalecer o Império, e simultaneamente liberar a Igreja de seu poder temporal. (10) A propósito, este terceiro cântico da “Comédia”, o “Paraíso”, foi dedicado a ele em carta que Dante lhe dirigiu.
Cangrande della Scala |
Cacciaguida conclui essa sua antevisão das “/.../ ciladas/ que se escondem por trás de uns poucos anos” (vindouros) ( /.../ le ‘nsidie/ che dietro a pochi giri son nascose- v. 95-96), expressando seu desejo de que Dante não odeie por isso os vizinhos florentinos, “pois a tua vida (pela sua grande obra, presume-se) se projeta no futuro/ muito além da punição das perfídias deles” (poscia che s’infutura la tua vita/ via più là che ‘l punir di lor perfidie- v.98-99).
Depois que Cacciaguida calou-se --- ou,
como dizem os versos, de modo metafórico, depois que ele revelou “ter acabado de tecer/ aquela tela que eu
urdira” (/.../
di metter la trama/ in quella tela ch’io le porsi ordita- v. 101-102) (ao lhe formular a pergunta sobre
seu futuro, nos v. 25-27) -- Dante manifesta-se, dizendo a seu ancestral que
face ao que ouviu “/.../ de prudência é
bom que eu me arme” (/.../
di provedenza è buon ch’io m’armi- v.
109), cuidando para não
perder outros lares-substitutos (ele que vai perder o seu lar, Florença, ao ser
exilado) por causa de seus versos (v. 111) a serem elaborados, críticos de poderosas famílias de então. Afirma ainda que em sua visita ao Inferno (“ /.../ pelo mundo de amargura sem fim” ( /.../ per lo mondo sanza
fine amaro- v. 112), ao
monte do Purgatório e às esferas celestes, obteve muitas informações que, “se as redigo” ( /.../ s’io ridico- v. 116), ou seja, se as conta em seu poema,
“a muitos terá gosto demasiado ácido”
(a molti
fia sapor di forte agrume- v. 117),
e assim perderá amigos. Mas se ele não disser toda a verdade, “se eu for tímido amigo da verdade” ( e s’io al vero son timido amico- v.118), isso prejudicará sua fama junto aos
pósteros. Esse é o seu dilema, conforme aponta Hollander (11).
Cacciaguida, em sua luz, “primeiro fulgurou / como espelho dourado a raio de Sol” ( /.../ si fé prima
corusca,/ quale a raggio di sole specchio d’oro- v.
122-123). Em seguida,
respondeu a Dante, aconselhando-o a contar a verdade, apesar daqueles que,
tomados pela vergonha, acharão sua palavra desagradável (v. 126). Afirma, prosaicamente:
“deixa quem tem sarna se coçar” (e lascia pur grattar
dov’è la rogna- v. 129).
A voz de Dante será “vital alimento” (vital nodrimento- v.
132) depois, “quando for digerida” (/.../ quando sarà
digesta- v. 132).
Acrescenta por fim esta observação,
incentivando-o a referir-se em seu poema (“teu
grito”- v. 133) aos notáveis (“altos
cumes”- v. 134) que lhe foram mostrados nesses reinos do Além:
Questo tuo grido farà come vento,
che le più alte cime più percuote;
e ciò non fa d’onor poco argomento. (v. 133-135)
Esse
teu grito fará como o vento,/ que mais golpeia os mais altos cumes; / e isso
não será para ti pequeno motivo de honra.
Assim, será honroso para Dante narrar
que viu “nestas esferas,/ no monte e no vale doloroso/ apenas almas
notáveis pela fama” ( /.../ in queste rote,/ nel monte e ne la valle dolorosa/
pur l’anime che son di fama note- v. 136-138). Esse fato, e razões claras (v. 142), contribuirão para
quem o ouvir “pôr fé” (v. 140) no que
ele disser em seus versos.
NOTAS
(1) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated
with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986,
p.207.
(2) HOLLANDER, Robert
& Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert &
Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander. Doubleday, 2007, p.419.
(3) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The
Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi. New American Library, 2003, p.748.
(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony
Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam
Books, 1986- p.371.
(5) Id. ib., p. 371-372.
(6) Id., ib., p. 372. Cf também MANDELBAUM, Allen-
“The Divine Comedy of Dante Alighieri- Purgatorio”. A verse translation by
Allen Mandelbaum. Bantam Books, 1984- p.378 (além da p. XXV- XXVI da Introdução) e
p.367.
(7) HOLLANDER, Robert
& Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 424-425
(8) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of
Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 372.
(9) Id. ib, p.372-373. Cf também MARTINS, Cristiano- “A
Divina Comédia”. Segundo volume. Purgatório. Paraíso. Tradução, introdução e
notas de Cristiano Martins. 5a edição. Belo Horizonte: Ed Itatiaia, 1989, p. 428,
nota.
(10) HOLLANDER, Robert
& Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 425.
(11) Id. ib, p. 405.
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Para ouvir o
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