PARAÍSO
Canto XV
Nos
versos iniciais do Canto, o poeta refere-se ao silêncio imposto “àquela doce lira” (a quella dolce lira- v.4) -- metáfora do conjunto dos
bem-aventurados que cantavam -- pela “benigna
vontade” (Benigna
volontade- v.1) dessas
almas, expressão do amor pelo qual são tomadas. Elas assim interrompem seu
canto -- ou aquietam “as santas cordas” (le sante corde- v.5) dessa lira, afinadas pela “mão direita do Céu” (destra del cielo- v.
6), i.e. a mão de Deus --
e dedicam amorosamente sua atenção ao recém-chegado, dispondo-se a responder às
suas indagações.
Come saranno a’ giusti preghi sorde
quelle sustanze che, per darmi voglia
ch’ io le pregassi, a tacer fur
concorde? (v. 7-9)
Como
seriam surdas aos justos rogos/ aquelas almas que, para me incentivar/ a lhes
rogar, foram concordes em calar-se?
Segue-se a comparação de um “fogo repentino” (sùbito foco- v.14), que passa, às vezes, “pelos céus tranquilos e puros” (/.../ per li seren
tranquilli e puri- v. 13)
-- ou seja, uma estrela cadente (1) -- com o movimento de uma alma, das inúmeras
formadoras da cruz luminosa que ali existe (cf. Canto antecedente). Ela correu do ramo
direito para o inferior dessa mesma cruz, sem sair dela. Como diz o poeta: “não se afastou a gema do corpo da cruz/ mas
correu pelo braço inferior/ como fogo por trás do alabastro” (né si partì la gemma
dal suo nastro,/ ma per la lista radïal trascorse,/ che parve foco dietro ad
alabastro- v. 22-24), de modo a ficar mais próxima de
Dante. Ela, por trás do alabastro (uma pedra calcária transparente), era uma
luz intensa no meio de uma luz difusa, nas palavras do comentador (2).
Referindo-se indiretamente aos
protagonistas da “Eneida” de Virgílio -- “a
nossa maior musa” (nostra
maggior musa- v. 26) -- a
afeição dessa alma que aqui se singulariza é comparada àquela de Anquises ao
reconhecer seu filho (Eneas) no mundo dos mortos, ou nos Campos Elíseos (esse
sentimento assim tem caráter paternal e
é compatível com a alma em questão, identificada só no v. 135 como Cacciaguida,
trisavô de Dante). É essa alma que se
manifesta a seguir, em latim, no terceto formado pelos vv. 28-30, fazendo a
Dante esta pergunta retórica-- “Ó sangue meu, ó graça profusa de Deus, a
quem como a ti foi aberta duas vezes a porta do Céu?”, de acordo com a
tradução que consta em V. G. Moura (3). A Dante foi dada a graça de visitar o Céu. A
quem mais foi dada essa graça? A São
Paulo, conforme a Bíblia (2 Cor. 12:4). Como a porta do Céu se abrirá duas
vezes para ele, entende-se que Dante entrará de novo no Paraíso (após sua
morte), o que significa que alcançará a salvação eterna... (4).
Salvador Dalí. |
Inicialmente, Dante não entende as
palavras que o espírito pronuncia após aquelas expressas em latim. Mas depois que ele afrouxou “o arco de ardente afeto” ( /.../ l’arco de l’ardente
affetto- v. 43) -- uma
metáfora adicional envolvendo o arco, no caso associada à mente do seu parente que goza da bem-aventurança -- e “o falar
desceu/ ao nível do nosso intelecto” (/.../ ‘l parlar discese/ inver’ lo segno del
nostro intelletto- v. 44-45),
i.e. “ao nível dos mortais” (al segno d’ i mortal
/.../- v. 42), passa a
compreendê-las. A princípio, o espírito louva Deus (o “Trino e Uno”: trino e uno- v. 47)
por ser “tão cortês com minha semente”
(che nel
mio seme se’ tanto cortese- v. 48),
vale dizer, por conceder essa graça ao seu descendente. Depois, chamando Dante
de “filho” (figlio- v. 52), afirma que ele atende com este
encontro -- possibilitado por Beatriz, que lhe “deu asas para o alto voo” (ch’ a l’alto volo ti vestì le piume- v. 54) -- a um antigo desejo do ancestral, “derivado da leitura do grande volume/ do
qual não muda jamais o branco e o preto” (tratto leggendo del magno volume/ du’
non si muta mai bianco né bruno- v. 50-51),
ou seja, derivado da leitura do livro que é, em metáfora, a mente de Deus, conhecedora
do passado, presente e futuro, livro esse que é lido pelos bem-aventurados,
cujo preto das letras e o branco das páginas não são alterados (5).
O espírito do ancestral afirma que Dante está
consciente de que ele conhece
seu pensamento porque lhe vem “daquele
que é o Primeiro” (da
quel ch’è primo,/.../- v.56),
ou seja, Deus, “assim como deriva/ de um,
se for conhecido, o cinco e o seis” (/.../ così come raia/
da l’un, se si conosce, il cinque e ‘l sei- v.56-57), uma imagem poética inspirada, como
se vê, numa relação matemática. Assim como a unidade é a fonte de todos os
números, a fonte dos pensamentos é a mente de Deus (6) (os algarismos 5 e 6, citados logo após o v.56, não devem ser apenas uma coincidência. Acrescentam uma sugestão enigmática, sempre compatível com os sacros mistérios). Mais adiante, surge
outra metáfora associada ao Ser Supremo. Ele é o “espelho/ que antes de pensares o pensamento mostra” (/.../ lo speglio/ in
che, prima che pensi, il pensier pandi;- v.62-63) onde miram os bem-aventurados “pequenos e grandes desta vida”, ou do Paraíso (/.../ i minori e ’
grandi/ di questa vita /.../- v. 61-62).
Assim, por estar ciente de que o ancestral já sabe o que Dante lhe perguntará, este não lhe pergunta nada. Mas para que seu amor “se manifeste melhor” (/.../ s’adempia meglio- v. 66), respondendo às suas questões, ele
quer ouvir a voz de seu descendente formulando-as. Dante então volta-se para
Beatriz, que ouve suas palavras “antes
que eu falasse,” (pria
ch’ io parlassi, /.../- v.71)
(ela, sendo bem-aventurada, também lê na mente divina) e lhe dá um sorriso
encorajador, pois, como diz o poeta, “e seu
sorriso foi um sinal/ que fez crescer as asas do meu querer” (/.../ e arrisemi un
cenno/ che fece crescer l’ ali al voler mio-
v. 71-72).
Dante, então, dirige-se diretamente ao espírito, para agradecer sua benevolência e perguntar seu nome. De início,
destaca a diferença entre “vós” (voi- v.75) -- os bem-aventurados moradores permanentes
do Paraíso, em quem “O afeto e o juízo”
(/.../
L’affetto e ‘l senno,- v.73)
(o sentimento e a razão) são divididos em proporções iguais pela “Igualdade Primeira” (la prima equalità- v.74) (Deus) -- e os “mortais” (mortali-
v.79), como ele próprio,
em quem “vontade e argumento” (voglia e argomento- v.
79) (correspondentes ao “afeto e o juízo” do v. 73) “são asas de plumagem desigual” (diversamente son
pennuti in ali- v. 81),
ou seja, são de proporções diferentes. Por isso, ele agradece “somente com o coração à acolhida paterna”
(/.../ e
però non ringrazio / se non col core a la paterna festa.- v. 83-84), e não com palavras. E conclui assim
sua fala, onde “gema” refere-se ao seu ancestral (como ocorreu antes, cf. v. 22) e “joia
preciosa” à cruz luminosa formada pelos espíritos bem-aventurados do céu de Marte:
Ben supplico io a te, vivo topazio
che questa gioia prezïosa ingemmi,
perché mi facci del tuo nome sazio. (v. 85-87)
Bem
suplico a ti, vivo topázio,/ gema engastada nesta joia preciosa,/ que satisfaça
meu desejo de saber teu nome.
Segundo Mark Musa, topázio é uma
gema amarela que se torna vermelha (a cor do amor) quando exposta a alta
temperatura (7).
A partir do v. 88, e até o fim do
Canto, é o ancestral quem fala. Inicia
afirmando a Dante seu regozijo por estar com ele pois “eu fui a tua raiz” (/.../ io fui la tua radice- v.89). Depois, diz que “Aquele de quem deriva/ teu sobrenome e que
por mais de cem anos/ circula na primeira cornija do monte” ( /.../ Quel da cui si
dice/ tua cognazione e che cent’anni e
piùe/ girato ha ‘l monte in la prima cornice,- v.91-93) é seu filho e bisavô de Dante (o ancestral que fala é então o seu trisavô). Por esses versos, deduz-se que o seu filho, cujo nome era Alighiero (8), está na cornija dos
soberbos no monte do Purgatório. É por isso que o pai dele pede a Dante que “sua longa pena/ tu a abrevies com boas ações”
(/.../
che la lunga fatica/ tu li raccorci con l’opere tue- v.95-96), ou orações, conforme a crença
católica.
A seguir, o trisavô de Dante fala, em
termos elogiosos, da Florença de seu tempo, que é o século XII. Seu elogio é
uma crítica indireta à Florença da época em que transcorre a ação do poema (1300). Florença
então “estava em paz, sóbria e pudica”
(si
stava in pace, sobria e pudica- v. 99)
(as dissenções e desavenças aí só começariam depois de 1177) (9). Não havia
preocupação com o luxo do vestuário. As mulheres não usavam colares nem coroas,
nem “saias bordadas” (gonne contigiate- v.
101), “que atraíssem mais o olhar do que a pessoa”
(che
fosse a veder più che la persona- v. 102).
Nem havia ainda o costume das moças se casarem muito jovens ou de se exigirem
altos dotes no casamento, o que é criticado nestes versos:
Non faceva, nascendo, ancor paura
la figlia al padre, ché ‘l tempo e la dote
non fuggien quinci e quindi la misura. (v. 103-105)
Não
fazia, nascendo, ainda medo/ a filha ao pai, pois a idade e o dote/ não
excediam, de um lado e de outro, a medida.
O trisavô também lembra que “Não havia casas de família vazias” (Non avea case di
famiglia vòte;- v.106) (por
causa das características de sua construção, destinadas mais para ostentar do
que para atender às necessidades da família) (10), “nem chegara ali ainda Sardanapalo/ para mostrar o que se pode fazer
numa alcova” (non
v’era giunto ancor Sardanapalo/ a mostrar ciò che ‘n camera si puote.- v.107-108). Sardanapalo foi um rei da Assíria
(667-626 a.C.), que se destacou pelo luxo, luxúria e efeminação; viveu num
palácio mas não era visto pelos seus serviçais, encerrando-se em seu quarto (11).
Depois, os versos, por meio de
uma sinédoque -- em que duas cidades são
referidas pelos montes nelas existentes -- afirmam que nesse tempo, i.e. no
tempo do trisavô, Uccelatoio (por Florença) ainda não havia vencido
Montemalo (por Roma), como atualmente, i.e no tempo de Dante, dado o esplendor urbano florentino. Porém, assim como
Florença vai superar Roma nesse esplendor, também a superará no ritmo de sua decadência.
A seguir, o ancestral menciona alguns
casais de famílias florentinas famosas que ele conhece, elogiando
implicitamente a simplicidade do vestuário dos homens e da vida de suas
esposas, pois a mulher de Bellincion Berti vem do espelho “sem o rosto pintado” (/.../ sanza ‘l viso dipinto- v.114) e as esposas dei Nerli e del Vecchio estão
contentes “de fiar com a roca” (al fuso e al
pennecchio- v. 117).
O trisavô chama essas esposas de “afortunadas” (Oh fortunate!- v.118) pois “cada uma estava segura/ do local de sua sepultura” (/.../ ciascuna era
certa/ de la sua sepultura,/ .../- v. 118-119), vale dizer, elas não eram obrigadas a acompanhar seus
maridos no exílio e morrer em terra estrangeira, como na conturbada Florença do tempo de Dante. E nenhuma então “era abandonada no leito pela França” (era per Francia nel
letto diserta- v.120), para
onde os interesses comerciais levavam os maridos.
Assim, nessa idílica Florença,
L’una vegghiava a studio de la culla,
e, consolando, usava l’idïoma
che prima i padri e le madri trastulla;
l’altra, traendo a la rocca la chioma,
favoleggiava con la sua famiglia
d’i Troiani, di Fiesole e di Roma. (v. 121-126)
Uma
velava com amor o berço/ e, consolando, usava a linguagem (infantil)/ que
primeiro diverte pais e irmãos;
outra,
puxando o fio da roca,/ contava à sua família as lendas/ dos troianos, de Fiesole
e de Roma.
(os
troianos, segundo a lenda, fundaram Roma, enquanto os romanos fundaram Fiesole
e depois Florença) (12).
Segundo o trisavô do poeta,
Cianghella (v. 128), uma dama que se jactava de sua vida de prazeres, e Lapo
Salterello, um político desonesto, ambos do tempo de Dante, causariam então
tanta admiração naquela época “quanto
agora Cincinnatus e Cornelia” (v.129), duas figuras virtuosas da história
romana, aquele dirigente da República e esta, a mãe dos tribunos Tiberius e Caius Gracchus (13).
Nos versos finais do Canto, o trisavô apresenta um resumo de sua própria vida. Ele foi entregue por Maria
(“invocada em altos gritos”: chiamata in alte
grida- v. 133, no parto,
se deduz) a essa comunidade, esse “doce
abrigo” (dolce
ostello- v.132), ou seja a
Florença, sua cidade natal, que é qualificada aqui como “tranquila” (riposato-
v.130), de “belo viver/ de cidadãos” (bello/ viver di
cittadini- v.130-131) e “fiel” (fida- v.131). Aí foi batizado e recebeu seu nome, Cacciaguida, que enfim declina (v. 135). Teve dois irmãos, Moronto e Eliseu, ou apenas um,
Moronto, que guardou o nome de família, Eliseu ou Elisei (v.136), pois os
comentaristas não estão de acordo nessa questão. Da mulher dele, Cacciaguida,
que pertencia à família Alighieri, “derivou
teu sobrenome” (e
quindi il sopranome tuo si feo- v. 138),
através do nome de um dos filhos do casal, Alighiero. Seguiu o imperador
Conrado em sua cruzada contra os muçulmanos, que então ocupavam a Terra Santa.
E lá morreu, conquistando por isso o Paraíso:
Quivi fu’ io da quella gente turpa
disviluppato dal mondo fallace,
lo cui amor molt’ anime deturpa;
e venni dal martiro a questa pace. (v.145-148)
Lá, por
aquela gente torpe,/ fui libertado do mundo falaz,/ cujo amor corrompe muitas
almas;
e vim
pelo martírio a esta paz.
Segundo
um comentador, Cacciaguida morreu durante a desastrosa Segunda Cruzada
(1147-1149), da qual participou Conrado III da Suábia, imperador de 1138 a 1152
(14).
NOTAS
(1)
SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS,
Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers
and Barbara Reynolds. Penguin Books,
1971, p. 191.
(2) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated
with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986,
p. 183.
(3) MOURA, Vasco Graça- “Dante
Alighieri- A Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco Graça
Moura. S.Paulo: Landmark, 2005, p. 721, nota
(4) ZOLI, M. e ZANOBINI, F.-
“La Divina Commedia: a cura di M.Zoli e F.Zanobini. Inferno. Purgatorio.
Paradiso”. Bulgarini, 2013, p. 860; MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony
Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam
Books, 1986- p.364.
(5) HOLLANDER, Robert
& Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert &
Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander. Doubleday, 2007, p.372.
(6) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri-
Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn
and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.364.
(7) MUSA, Mark-- “Dante-
The Divine Comedy-- Volume 3: Paradise”, op cit, p.185.
(8) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 364.
(9)
HOLLANDER,
Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 375.
(10) Id. ib., p.375.
(11) Id. ib., p.375. Cf também MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of
Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 365.
(12) MUSA, Mark-- “Dante-
The Divine Comedy-- Volume 3: Paradise”, op cit, p. 187.
(13) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 365-366. Cf também SAYERS, Dorothy L. and
REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”, op cit, p.368 e
369.
(14) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.366.
Para ouvir o Canto XV:
https://www.youtube.com/watch?v=3cfbJqoy7_8&t=127s
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