quarta-feira, 9 de maio de 2018

CANTO XV


PARAÍSO 


Canto XV


            Nos versos iniciais do Canto, o poeta refere-se ao silêncio imposto “àquela doce lira” (a quella dolce lira- v.4) -- metáfora do conjunto dos bem-aventurados que cantavam -- pela “benigna vontade” (Benigna volontade- v.1) dessas almas, expressão do amor pelo qual são tomadas. Elas assim interrompem seu canto  -- ou aquietam “as santas cordas” (le sante corde- v.5) dessa lira, afinadas pela “mão direita do Céu” (destra del cielo- v. 6), i.e. a mão de Deus -- e dedicam amorosamente sua atenção ao recém-chegado, dispondo-se a responder às suas indagações.    

Come saranno a’ giusti preghi sorde
quelle sustanze che, per darmi voglia
ch’ io le pregassi, a tacer fur concorde?     (v. 7-9)

Como seriam surdas aos justos rogos/ aquelas almas que, para me incentivar/ a lhes rogar, foram concordes em calar-se? 

            Segue-se a comparação de um “fogo repentino” (sùbito foco- v.14), que passa, às vezes, “pelos céus tranquilos e puros” (/.../ per li seren tranquilli e puri- v. 13) -- ou seja, uma estrela cadente (1) -- com o movimento de uma alma, das inúmeras formadoras da cruz luminosa que ali existe (cf. Canto antecedente). Ela correu do ramo direito para o inferior dessa mesma cruz, sem sair dela. Como diz o poeta: “não se afastou a gema do corpo da cruz/ mas correu pelo braço inferior/ como fogo por trás do alabastro” (né si partì la gemma dal suo nastro,/ ma per la lista radïal trascorse,/ che parve foco dietro ad alabastro-  v. 22-24), de modo a ficar mais próxima de Dante. Ela, por trás do alabastro (uma pedra calcária transparente), era uma luz intensa no meio de uma luz difusa, nas palavras do comentador  (2). 

            Referindo-se indiretamente aos protagonistas da “Eneida” de Virgílio -- “a nossa maior musa” (nostra maggior musa- v. 26) -- a afeição dessa alma que aqui se singulariza é comparada àquela de Anquises ao reconhecer seu filho (Eneas) no mundo dos mortos, ou nos Campos Elíseos (esse sentimento  assim tem caráter paternal e é compatível com a alma em questão, identificada só no v. 135 como Cacciaguida, trisavô de Dante).  É essa alma que se manifesta a seguir, em latim, no terceto formado pelos vv. 28-30, fazendo a Dante esta pergunta retórica--  Ó sangue meu, ó graça profusa de Deus, a quem como a ti foi aberta duas vezes a porta do Céu?”, de acordo com a tradução que consta em V. G. Moura (3).   A Dante foi dada a graça de visitar o Céu. A quem mais foi dada essa graça?  A São Paulo, conforme a Bíblia (2 Cor. 12:4). Como a porta do Céu se abrirá duas vezes para ele, entende-se que Dante entrará de novo no Paraíso (após sua morte), o que significa que alcançará a salvação eterna... (4).   

Salvador Dalí. 

            Dante ouve essas palavras daquele espírito (do mesmo sangue dele) e depois volta sua vista para Beatriz, admirando-se tanto de um lado como de outro, uma vez que ela também o surpreende, “pois dentro de seus olhos ardia um sorriso” (ché dentro a li occhi suoi ardeva un riso- v.34) tal, que ele pensa tocar com os seus o máximo da glória e da felicidade, ou “o fundo da minha graça e do meu paraíso” (/.../ lo fondo/ de la mia gloria e del mio paradiso- v.35-36). 

Inicialmente, Dante não entende as palavras que o espírito pronuncia após aquelas expressas em latim.  Mas depois que ele afrouxou “o arco de ardente afeto” ( /.../ l’arco de l’ardente affetto- v. 43) -- uma metáfora adicional envolvendo o arco, no caso associada à mente do seu parente que goza da bem-aventurança --  e  o falar desceu/ ao nível do nosso intelecto” (/.../ ‘l parlar discese/ inver’ lo segno del nostro intelletto- v. 44-45), i.e. “ao nível dos mortais” (al segno d’ i mortal /.../- v. 42), passa a compreendê-las. A princípio, o espírito louva Deus (o “Trino e Uno”: trino e uno- v. 47) por ser “tão cortês com minha semente” (che nel mio seme se’ tanto cortese- v. 48), vale dizer, por conceder essa graça ao seu descendente. Depois, chamando Dante de “filho” (figlio- v. 52), afirma que ele atende com este encontro -- possibilitado por Beatriz, que lhe “deu asas para o alto voo” (ch’ a l’alto volo ti vestì le piume- v. 54) -- a um antigo desejo do ancestral, “derivado da leitura do grande volume/ do qual não muda jamais o branco e o preto” (tratto leggendo del magno volume/ du’ non si muta mai bianco né bruno- v. 50-51), ou seja, derivado da leitura do livro que é, em metáfora, a mente de Deus, conhecedora do passado, presente e futuro, livro esse que é lido pelos bem-aventurados, cujo preto das letras e o branco das páginas não são alterados (5). 

            O espírito do ancestral afirma que Dante está consciente de que ele conhece seu pensamento porque lhe vem “daquele que é o Primeiro” (da quel ch’è primo,/.../- v.56), ou seja, Deus, “assim como deriva/ de um, se for conhecido, o  cinco e o seis” (/.../ così come raia/ da l’un, se si conosce, il cinque e ‘l sei- v.56-57), uma imagem poética inspirada, como se vê, numa relação matemática. Assim como a unidade é a fonte de todos os números, a fonte dos pensamentos é a mente de Deus (6) (os algarismos 5 e 6, citados logo após o v.56, não devem ser apenas uma coincidência. Acrescentam uma sugestão enigmática, sempre compatível com os sacros mistérios). Mais adiante, surge outra metáfora associada ao Ser Supremo. Ele é o “espelho/ que antes de pensares o pensamento mostra” (/.../ lo speglio/ in che, prima che pensi, il pensier pandi;- v.62-63) onde miram os bem-aventurados “pequenos e grandes desta vida”, ou do Paraíso (/.../ i minori e ’ grandi/ di questa vita /.../- v. 61-62).

Assim, por estar ciente de que o ancestral já sabe o que Dante lhe perguntará, este não lhe pergunta nada.  Mas para que seu amor “se manifeste melhor” (/.../ s’adempia meglio- v. 66), respondendo às suas questões, ele quer ouvir a voz de seu descendente formulando-as. Dante então volta-se para Beatriz, que ouve suas palavras “antes que eu falasse,” (pria ch’ io parlassi, /.../- v.71) (ela, sendo bem-aventurada, também lê na mente divina) e lhe dá um sorriso encorajador, pois, como diz o poeta, “e seu sorriso foi um sinal/ que fez crescer as asas do meu querer(/.../ e arrisemi un cenno/ che fece crescer l’ ali al voler mio-  v. 71-72). 

Dante, então, dirige-se diretamente ao espírito, para agradecer sua benevolência e perguntar seu nome. De início, destaca a diferença entre “vós” (voi- v.75) -- os bem-aventurados moradores permanentes do Paraíso, em quem “O afeto e o juízo(/.../ L’affetto e ‘l senno,- v.73) (o sentimento e a razão) são divididos em proporções iguais pela “Igualdade Primeira” (la prima equalità- v.74) (Deus) -- e os “mortais” (mortali- v.79), como ele próprio, em quem “vontade e argumento” (voglia e argomento- v. 79) (correspondentes ao “afeto e o juízo” do v. 73) “são asas de plumagem desigual” (diversamente son pennuti in ali- v. 81), ou seja, são de proporções diferentes. Por isso, ele agradece “somente com o coração à acolhida paterna” (/.../ e però non ringrazio / se non col core a la paterna festa.- v. 83-84), e não com palavras. E conclui assim sua fala, onde “gema” refere-se ao seu ancestral (como ocorreu antes, cf. v. 22) e “joia preciosa” à cruz luminosa formada pelos espíritos bem-aventurados do céu de Marte: 

Ben supplico io a te, vivo topazio
che questa gioia prezïosa ingemmi,
perché mi facci del tuo nome sazio.     (v. 85-87)

Bem suplico a ti, vivo topázio,/ gema engastada nesta joia preciosa,/ que satisfaça meu desejo de saber teu nome. 

            Segundo Mark Musa, topázio é uma gema amarela que se torna vermelha (a cor do amor) quando exposta a alta temperatura (7).

            A partir do v. 88, e até o fim do Canto, é o ancestral quem fala.  Inicia afirmando a Dante seu regozijo por estar com ele pois “eu fui a tua raiz” (/.../ io fui la tua radice- v.89). Depois, diz que “Aquele de quem deriva/ teu sobrenome e que por mais de cem anos/ circula na primeira cornija do monte” ( /.../ Quel da cui si dice/ tua cognazione  e che cent’anni e piùe/ girato ha ‘l monte in la prima cornice,- v.91-93) é seu filho e bisavô de Dante (o ancestral que fala é então o seu trisavô). Por esses versos, deduz-se que o seu filho,  cujo nome era Alighiero (8), está na cornija dos soberbos no monte do Purgatório. É por isso que o pai dele pede a Dante que “sua longa pena/ tu a abrevies com boas ações” (/.../ che la lunga fatica/ tu li raccorci con l’opere tue- v.95-96), ou orações, conforme a crença católica.   

            A seguir, o trisavô de Dante fala, em termos elogiosos, da Florença de seu tempo, que é o século XII. Seu elogio é uma crítica indireta à Florença da época em que transcorre a ação do poema (1300).  Florença então “estava em paz, sóbria e pudica” (si stava in pace, sobria e pudica- v. 99) (as dissenções e desavenças aí só começariam depois de 1177) (9). Não havia preocupação com o luxo do vestuário. As mulheres não usavam colares nem coroas, nem “saias bordadas” (gonne contigiate- v. 101), “que atraíssem mais o olhar do que a pessoa” (che fosse a veder più che la persona- v. 102). Nem havia ainda o costume das moças se casarem muito jovens ou de se exigirem altos dotes no casamento, o que é criticado nestes versos: 

Non faceva, nascendo, ancor paura
la figlia al padre, ché  ‘l tempo e la dote
non fuggien quinci e quindi la misura.      (v. 103-105)

Não fazia, nascendo, ainda medo/ a filha ao pai, pois a idade e o dote/ não excediam, de um lado e de outro, a medida.          

            O trisavô também lembra que “Não havia casas de família vazias” (Non avea case di famiglia vòte;- v.106) (por causa das características de sua construção, destinadas mais para ostentar do que para atender às necessidades da família) (10), “nem chegara ali ainda Sardanapalo/ para mostrar o que se pode fazer numa alcova” (non v’era giunto ancor Sardanapalo/ a mostrar ciò che ‘n camera si puote.- v.107-108). Sardanapalo foi um rei da Assíria (667-626 a.C.), que se destacou pelo luxo, luxúria e efeminação; viveu num palácio mas não era visto pelos seus serviçais, encerrando-se em seu quarto (11).  

Depois, os versos, por meio de uma  sinédoque -- em que duas cidades são referidas pelos montes nelas existentes -- afirmam que nesse tempo, i.e. no tempo do trisavô, Uccelatoio (por Florença) ainda não havia vencido Montemalo (por Roma), como atualmente, i.e no tempo de Dante, dado o  esplendor urbano florentino. Porém, assim como Florença vai superar Roma nesse esplendor, também a superará no ritmo de sua decadência. 

            A seguir, o ancestral menciona alguns casais de famílias florentinas famosas que ele conhece, elogiando implicitamente a simplicidade do vestuário dos homens e da vida de suas esposas, pois a mulher de Bellincion Berti vem do espelho “sem o rosto pintado” (/.../ sanza ‘l viso dipinto- v.114) e as esposas dei Nerli e del Vecchio estão contentes “de fiar com a roca” (al fuso e al pennecchio- v. 117).  

            O trisavô chama essas esposas de “afortunadas” (Oh fortunate!- v.118) pois “cada uma estava segura/ do local de sua sepultura” (/.../ ciascuna era certa/ de la sua sepultura,/ .../- v. 118-119), vale dizer, elas não eram obrigadas a acompanhar seus maridos no exílio e morrer em terra estrangeira, como na conturbada  Florença do tempo de Dante. E nenhuma então “era abandonada no leito pela França” (era per Francia nel letto diserta- v.120), para onde os interesses comerciais levavam os maridos.   

            Assim, nessa idílica Florença,

L’una vegghiava a studio de la culla,
e, consolando, usava l’idïoma
che prima i padri e le madri trastulla;

l’altra, traendo a la rocca la chioma,
favoleggiava con la sua famiglia
d’i Troiani, di Fiesole e di Roma.      (v. 121-126)

Uma velava com amor o berço/ e, consolando, usava a linguagem (infantil)/ que primeiro diverte pais e irmãos;
outra, puxando o fio da roca,/ contava à sua família as lendas/ dos troianos, de Fiesole e de Roma.  

(os troianos, segundo a lenda, fundaram Roma, enquanto os romanos fundaram Fiesole e depois Florença) (12). 

            Segundo o trisavô do poeta, Cianghella (v. 128), uma dama que se jactava de sua vida de prazeres, e Lapo Salterello, um político desonesto, ambos do tempo de Dante, causariam então tanta admiração naquela época “quanto agora Cincinnatus e Cornelia” (v.129), duas figuras virtuosas da história romana, aquele dirigente da República e esta, a mãe dos  tribunos Tiberius e Caius Gracchus (13).    

            Nos versos finais do Canto, o trisavô apresenta um resumo de sua própria vida. Ele foi entregue por Maria (“invocada em altos gritos”: chiamata in alte grida- v. 133, no parto, se deduz) a essa comunidade, esse “doce abrigo” (dolce ostello- v.132), ou seja a Florença, sua cidade natal, que é qualificada aqui como “tranquila” (riposato- v.130), de “belo viver/ de cidadãos” (bello/ viver di cittadini- v.130-131) e “fiel” (fida- v.131). Aí foi batizado e recebeu seu nome, Cacciaguida, que enfim declina (v. 135). Teve dois irmãos, Moronto e Eliseu, ou apenas um, Moronto, que guardou o nome de família, Eliseu ou Elisei (v.136), pois os comentaristas não estão de acordo nessa questão. Da mulher dele, Cacciaguida, que pertencia à família Alighieri, “derivou teu sobrenome” (e quindi il sopranome tuo si feo- v. 138), através do nome de um dos filhos do casal, Alighiero. Seguiu o imperador Conrado em sua cruzada contra os muçulmanos, que então ocupavam a Terra Santa. E lá morreu, conquistando por isso o Paraíso:

Quivi fu’ io da quella gente turpa
disviluppato dal mondo fallace,
lo cui amor molt’ anime deturpa;

e venni dal martiro a questa pace.     (v.145-148)

Lá, por aquela gente torpe,/ fui libertado do mundo falaz,/ cujo amor corrompe muitas almas;
e vim pelo martírio a esta paz

            Segundo um comentador, Cacciaguida morreu durante a desastrosa Segunda Cruzada (1147-1149), da qual participou Conrado III da Suábia, imperador de 1138 a 1152 (14).  

NOTAS


(1) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.  Penguin Books, 1971, p. 191. 

(2) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p. 183.

(3) MOURA, Vasco Graça-  “Dante Alighieri- A Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. S.Paulo: Landmark, 2005, p. 721, nota  

(4) ZOLI, M. e ZANOBINI, F.- “La Divina Commedia: a cura di M.Zoli e F.Zanobini. Inferno. Purgatorio. Paradiso”. Bulgarini, 2013, p. 860;  MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.364. 

(5) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p.372. 

(6) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.364.

(7) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy-- Volume 3: Paradise”, op cit, p.185. 

(8) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 364. 

(9) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 375. 

(10) Id. ib., p.375.

(11) Id. ib., p.375. Cf também MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 365.   

(12) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy-- Volume 3: Paradise”, op cit, p. 187. 

(13) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 365-366. Cf também SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”, op cit, p.368 e 369.

(14) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.366.

-----------------------------

Para ouvir o Canto XV:

https://www.youtube.com/watch?v=3cfbJqoy7_8&t=127s

(acessado em 15.09.20)




Amos Nattini. 














Nenhum comentário:

Postar um comentário