segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

CANTO XIII

PARAÍSO


Canto XIII


Nos primeiros oito tercetos deste Canto, Dante procura passar ao leitor a impressão que lhe causou aquelas duas rodas ou círculos de luzes formados pelos 24 espíritos sapientes que ele, em seu centro, juntamente com Beatriz, contemplava, admirado, comparando-as a uma peculiar constelação (v.19).  

Para ter uma ideia dela, o poeta pede para o leitor imaginar, inicialmente, 15 estrelas, identificadas pelos comentaristas como as de 1ª grandeza, estudadas por Alfragnus e Ptolomeu (1); em seguida, as 7 estrelas de 2ª. grandeza do Carro (v.7) ou Ursa Maior, que estão sempre no “nosso céu” (v. 8), i.e. no céu do hemisfério Norte, e por fim, totalizando 24 luzes, as 2 da boca da cornucópia em que consiste a Ursa Menor:

imagini la bocca de quel corno
che si comincia in punta de lo stelo
a cui la prima rota va dintorno      (v. 10-12)

imagina a boca daquele corno,/ que começa na ponta do eixo/ em torno do qual gira a primeira esfera  

No lado oposto à boca encontra-se a ponta do eixo identificada por sua vez como a Estrela do Norte. Em torno desse eixo gira “a primeira esfera”  (v. 12) ou o “Primum Mobile”, o nono céu, que é o mais elevado deles, e imprime movimento aos outros.

Dante pede ainda para o leitor imaginar que essas estrelas façam de si “dois signos” (due segni- v.13) no céu, ou duas constelações (em que se transformou, conforme a mitologia clássica, a coroa de Ariadne, a filha de Minos, mencionada no v. 14), “ambos a girarem, de modo/ que um vá num sentido e outro, em outro” (e amendue girarsi per maniera/ che l’uno andasse al primo e l’altro al poi-  v. 17-18), vale dizer, aquelas duas rodas de luzes de espíritos sapientes giravam em sentido contrário. Uma estava contida na outra, conforme o modo como seus raios se interpenetravam (v. 16).   

O poeta tenta assim dar uma ideia àquele que “deseja bem compreender” (/.../ chi bene intender cupe- v.1) aquilo que ele viu com essas associações estelares. Faz uma comparação curiosa: o que ele viu é tão distante do que estamos acostumados a ver aqui na Terra como a lentidão do rio Chiana é distante da velocidade do “Primum Mobile” (o Chiana é um afluente do Arno, o rio que banha Florença, e é lento porque atravessa pântanos):

/.../ ch’è tanto di là di nostra usanza,
quanto di là dal mover de la Chiana
si move il ciel che tutti li altri avanza.     (v.22-24)

/.../ é tão distante do que estamos acostumados a ver/ quanto é maior do lento fluir do Chiana/ o movimento do céu que supera todos os outros.


Amos Nattini.

            Os espíritos dos sábios cantavam não a Baco ou a Pean (Apolo) mas às três pessoas da trindade divina, inclusive aquela que tinha, além da divina, também a natureza humana (Cristo).  Concluído seu canto (e dança), voltaram sua atenção para Dante e Beatriz, no centro das rodas, “alegrando--se em passar de um cuidado a outro” (felicitando sé di cura in cura- v. 30), i.e. em passar a atender à curiosidade de  Dante (a segunda das suas dúvidas ainda não foi respondida).

            Então, rompe o silêncio “a luz que me narrara a vida maravilhosa/ do pobrezinho de Deus” (/.../ la luce in che mirabil vita/ del poverel di Dio narrata fumi- v. 32-33), ou seja Tomás de Aquino, que narrou, no Canto XI, a vida de Francisco de Assis. A partir do v. 34, e até o último verso do presente Canto, é Tomás quem fala. 

            Inicia por uma metáfora do meio rural, afirmando que:

/.../ “Quando l’una paglia è trita,
quando la sua semenza è già riposta,
a bater l”altra dolce amor m’invita.     (v.34-36)

/.../ “Quando um feixe é malhado/ quando o seu grão já está armazenado,/ a malhar outro o doce amor me convida.

Ou seja, depois de esclarecer a primeira dúvida de Dante (no Canto X), ele deve concentrar-se agora na segunda dúvida, aquela relativa à sabedoria sem rival de Salomão. A dúvida surgiu em Dante quando Tomás afirmou “que não houve outro/ espírito igual ao que se esconde na quinta luz” (do primeiro círculo) (quando narrai che non ebbe ‘l secondo/ lo ben che ne la quinta luce è chiuso- v. 47-48).

Dante se perguntou então como pôde o dominicano fazer tal afirmação a respeito de Salomão (reiterando aquela do canto X, v. 114-- “não se elevou jamais um segundo com tanta visão”: a veder tanto non surse il secondo) se existiram dois homens especiais, o primeiro, criado diretamente por Deus, Adão, que forneceu a costela “para formar o belo rosto daquela/ cujo paladar foi tão custoso ao mundo” (/.../ per formar la bela guancia/ il cui palato a tutto ‘l mondo costa- v.38-39) (Eva) e o segundo, o Cristo homem, que viria ao mundo para cumprir sua missão redentora, pois “os pecados antigos e posteriores expiou/ mais do que compensando nossa culpa na balança” (da justiça) (e prima e poscia tanto sodisfece,/ che d’ogne colpa vince la bilancia-  v.41-42). Aos dois, toda a luz (inteligência, sabedoria) possível foi atribuída por Deus:

quantunque a la natura umana lece
aver di lume, tutto fosse infuso
da quel valor che l’uno e l’altro fece     (v. 43-45)

tudo quanto a natureza humana pode/ ter de luz, tudo lhes foi infundido/ por aquele Valor que fez um e outro   

            Tomás de Aquino, todavia, pede então que Dante o ouça atentamente, pois não há discrepância nenhuma entre o que este crê e o que ele diz. Dante verá ambos “coincidirem na verdade como no centro de um círculo” (nel vero farsi come centro in tondo- v. 51), vale dizer, verá como essas duas posições, comparadas implicitamente aos pontos ao longo de um círculo, coincidem no seu ponto central, que é comum a todos eles, do qual distam igualmente (2).

            O teólogo prossegue afirmando que “O que não morre e o que morrerá” (Ciò che non more e ciò che può morire- v.52) (“o que não morre” abrange os anjos, os céus, a matéria primeira e a alma humana), ou seja, todas as coisas criadas são reflexos “daquela ideia” (di quella idea- v.53), ou do Verbo (Cristo), “que Deus, por amor (o Espírito Santo), gera” (v. 54); nos versos seguintes ocorre nova menção a essas três pessoas da SS. Trindade quando afirmam que a “viva luz” (viva luce- v.55) (Cristo) deriva de Deus, sua fonte, de quem não se separa, nem do amor (Espírito Santo), que com elas -- a luz e a fonte -- forma a Trindade, permanecendo eternamente una; os raios desta Trindade Santíssima refletem-se, como num espelho, em nove essências (sussistenze- v. 59, literalmente “subsistências”, que subsistem por si mesmas), identificadas como as ordens angélicas. “Delas, a luz refletida desce à última potência,/ de ato em ato /.../” (Quindi discende a l’ultime potenze/ giù d’atto in atto /.../- v.61- 62), vale dizer, a luz do Verbo (cf v. 55), que, conforme Hollander, “combina seu poder criativo com as presenças angélicas em cada esfera celeste” (3), desce, se atenuando, por essas esferas, até chegar ao (nosso) mundo abaixo do céu da Lua (4), criando seres contingentes, “com semente e sem semente” (con seme e sanza seme /.../- v. 66), ou seja, seres orgânicos (animais e vegetais) e inorgânicos (minerais).  Esses seres não são uniformes, variam entre si:

La cera di costoro e chi la duce
non sta d’un modo; e però sotto ‘l segno
idëale poi più e men traluce.

Ond’ elli avvien ch’um medesimo legno,
secondo specie, meglio e peggio frutta;
e voi nascete con diverso ingegno.        (v.67-72)

A cera de tais coisas e o que a modela/ não são imutáveis; por isso, sob o selo da ideia divina/ a luz brilha mais e menos.
Assim sucede que árvores da mesma espécie/ produzam frutos melhores e piores;/ e vós nasceis com diverso engenho.              

A luz do selo divino é distribuída imperfeitamente pela Natureza (termo que abrange “a soma das causas secundárias”) (5), “operando semelhante ao artista/ que conhece sua arte mas a mão lhe treme” (similemente operando a l’artista/ ch’a l’abito de l’arte ha man che trema- v. 77-78). Porém, com a intervenção divina direta, vale dizer, da Trindade (suas três pessoas são agora referidas como “amor”, “visão” e “primeira virtude”, nos vv. 79 e 80), “toda perfeição aqui (na terra) se adquire” (tutta la perfezion quivi s’acquista- v. 81). Foi o que ocorreu quando houve a criação de Adão e quando Deus se fez homem na pessoa de Cristo:

Così fu fatta già la terra degna
di tutta l’animal perfezïone;
così fu fatta la Vergine pregna;    (v.82-84)

Assim, a terra já foi digna/ de toda a perfeição animal; / e assim a Virgem engravidou;   

            Desse modo, Tomás afirma que concorda com a opinião (subentendida) de Dante, “de que a natureza humana jamais foi/ nem será o que foi naquelas duas pessoas” (che l’umana natura mai non fue/ né fia qual fu in quelle due persone- v. 86-87), Adão e Cristo.

            Mas nesse ponto, diz Tomás, Dante poderia lhe perguntar: “Então, como aquele foi sem par?” (‘Dunque, come costui fu sanza pare?’- v. 89), i.e. como Salomão não teve par? (Dante, já se vê, estaria se referindo àquela afirmação de Tomás a propósito de Salomão antes citada-- “não se elevou jamais um segundo com tanta visão” (Canto X, v. 114). Tomás então lembra a Dante que Salomão era um rei, e que, ao ser solicitado, pediu ao Senhor sabedoria para bem desempenhar  tal  função (cf. I Reis 3: 5-12). Não pediu para se aprofundar em questões teológicas, filosóficas ou matemáticas: “não (pediu) para saber o número/ dos motores do alto” (non per sapere il numero in che enno/ li motor di qua sù, /.../- v. 97-98), i.e. o número de anjos, as inteligências motrizes das esferas celestes; nem se depois de uma premissa necessária e de uma contingente segue-se uma conclusão necessária (o significado dos versos 98-99, conforme os comentadores); ou se se pode admitir que haja um primeiro movimento, que antecedeu todos os outros (v.100, em latim no original); “ou se, dentro de um semicírculo, se pode/ inscrever um triângulo sem ângulo reto” (o se del mezzo cerchio far si puote/ trïangol sì ch’un retto non avesse- v. 101-102). Por fim, Tomás esclarece de modo preciso o sentido dos termos que utilizou anteriormente: “aquela visão sem par é a prudência real” (regal prudenza è quel vedere impari- v.104),

e se al “surse” drizzi li occhi chiari,
vedrai aver solamente respetto
ai regi, che son molti, e’ buon son rari.   (v. 106-108)

e se a “elevou-se” diriges os olhos claros/ verás que se refere somente/ a reis, que são muitos mas os bons são raros.

Assim, o que Tomás quis dizer é que Salomão não teve igual na sua condição de rei sábio. Isso não conflita com o fato de que a natureza humana de modo geral atingiu o seu mais elevado grau de perfeição em dois casos: no do “primeiro pai (primo padre- v.111), o de Adão (criado diretamente por Deus) e do “nosso Bem Amado” (nostro Diletto- v. 111), o de Cristo.

 Na sequência, Tomás aconselha a Dante a tirar disso uma lição: não se precipitar em tomar partido rapidamente, quando a questão (filosófica ou teológica) não está clara. Para tanto usa a imagem do chumbo associado aos pés:

E questo ti sia sempre piombo a’ piedi,
per farti mover lento com’ uom lasso
e al sì e al no che tu non vedi:      (v. 112-114)

E que isto te seja sempre chumbo aos pés,/ para que te movas lento, como o homem cansado,/ ao sim e ao não, quando não vês claro:

Depois, por questão de amor próprio, o estulto (v.115) se apega à opinião falsa, porque tomada apressadamente, sem maior exame da matéria, e anula a própria razão: 

perch’ elli ‘ncontra che più volte piega
l’oppinïon corrente in falsa parte,
e poi l’affetto l’intelletto lega.     (v. 118-120)

visto que muitas vezes/ a opinião apressada se volta à falsa parte,/ e depois a paixão bloqueia o intelecto.

            O poeta compara a pessoa que busca a verdade de modo equivocado a um  pescador: “aquele que sai para pescar a verdade mas lhe falta a arte” (chi pesca per lo vero e non ha l’arte- v. 123)  Ilustra esse caso com os antigos filósofos gregos Parmenides, Melisso e Brisso (v.125), refutados por Aristóteles, e com os teólogos heréticos Sabélio e Ário e outros “estultos” (stolti- v. 127).  O primeiro negava a doutrina da Trindade  e o outro, a natureza divina de Cristo (6)

            Os versos 128-129 contêm uma comparação curiosa: os heréticos “/.../ foram como espadas à Escritura/ tornando tortos os rostos direitos” (/.../ furon come spade a le Scritture/ in render torti li diritti volti). Como a lâmina das espadas reflete as imagens distorcidas, assim também os heréticos distorcem as palavras da Escritura.

            Nos versos finais do Canto, Tomás de Aquino usa algumas  imagens em sua crítica aos nossos julgamentos precipitados. Inicialmente, refere-se a “aquele que estima/ no campo a seara antes que ela esteja madura” (/.../ sì come quei che stima/ le biade in campo pria che sien mature;- v.131-132) ou ao que vê por todo o inverno a sarça com mau aspecto “e depois (vê) florescer a rosa no seu cume” (poscia portar la rosa in su la cima;- v. 135). A imagem final é inspirada pelo mar e o navio que por ele navega:

e legno vidi già dritto e veloce
correr lo mar per tutto suo cammino,
perire al fine a l’intrar de la foce.     (v. 136-138)

e lenho já vi direito e veloz/ seguir no mar todo o seu caminho/ e perecer no fim ao entrar no porto.

            A advertência contra o julgamento apressado é reiterado no último terceto do Canto, quando Tomás afirma que não pensem dona Berta e “seu” Marino (nomes populares em Florença) já saberem qual é o juízo divino, “por verem um roubar e outro dar esmola” (per vedere un furare, altro offerere- v. 140), “pois aquele pode salvar-se, e este, perder-se” (ché quel può surgere, e quel può cadere- v. 142).   



NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.357-8.

(2) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p. 319-320.

(3) Id. ib, p. 321  

(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.359;  HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.320.

(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.359.

(6) Id. ib, p. 360.

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Para ouvir o Canto XIII: 


Salvador Dalí. 

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