PARAÍSO
Canto XIII
Nos primeiros oito tercetos deste
Canto, Dante procura passar ao leitor a impressão que lhe causou aquelas duas
rodas ou círculos de luzes formados pelos 24 espíritos sapientes que ele, em
seu centro, juntamente com Beatriz, contemplava, admirado, comparando-as a uma peculiar
constelação (v.19).
Para ter uma ideia dela, o poeta pede
para o leitor imaginar, inicialmente, 15 estrelas, identificadas pelos
comentaristas como as de 1ª grandeza, estudadas por Alfragnus e Ptolomeu (1); em
seguida, as 7 estrelas de 2ª. grandeza do Carro (v.7) ou Ursa Maior, que estão
sempre no “nosso céu” (v. 8), i.e. no
céu do hemisfério Norte, e por fim, totalizando 24 luzes, as 2 da boca da cornucópia
em que consiste a Ursa Menor:
imagini la bocca de quel corno
che si comincia in punta de lo stelo
a cui la prima rota va dintorno (v. 10-12)
imagina
a boca daquele corno,/ que começa na ponta do eixo/ em torno do qual gira a
primeira esfera
No lado oposto à boca encontra-se a
ponta do eixo identificada por sua vez como a Estrela do Norte. Em torno desse
eixo gira “a primeira esfera” (v. 12) ou o “Primum Mobile”, o nono céu, que
é o mais elevado deles, e imprime movimento aos outros.
Dante pede ainda para o leitor
imaginar que essas estrelas façam de si “dois
signos” (due
segni- v.13) no céu, ou
duas constelações (em que se transformou, conforme a mitologia clássica, a
coroa de Ariadne, a filha de Minos, mencionada no v. 14), “ambos a girarem, de modo/ que um vá num sentido e outro, em outro”
(e
amendue girarsi per maniera/ che l’uno andasse al primo e l’altro al poi- v. 17-18),
vale dizer, aquelas duas rodas de luzes de espíritos sapientes giravam em sentido
contrário. Uma estava contida na outra, conforme o modo como seus raios se
interpenetravam (v. 16).
O poeta tenta assim dar uma ideia
àquele que “deseja bem compreender” (/.../ chi bene
intender cupe- v.1)
aquilo que ele viu com essas associações estelares. Faz uma comparação curiosa:
o que ele viu é tão distante do que estamos acostumados a ver aqui na Terra como
a lentidão do rio Chiana é distante da velocidade do “Primum Mobile” (o Chiana
é um afluente do Arno, o rio que banha Florença, e é lento porque atravessa
pântanos):
/.../ ch’è tanto di là di nostra usanza,
quanto di là dal mover de la Chiana
si move il ciel che tutti li altri avanza. (v.22-24)
/.../ é
tão distante do que estamos acostumados a ver/ quanto é maior do lento fluir do
Chiana/ o movimento do céu que supera todos os outros.
Amos Nattini. |
Os espíritos dos sábios cantavam não
a Baco ou a Pean (Apolo) mas às três pessoas da trindade divina, inclusive
aquela que tinha, além da divina, também a natureza humana (Cristo). Concluído seu canto (e dança), voltaram sua
atenção para Dante e Beatriz, no centro das rodas, “alegrando--se em passar de um cuidado a outro” (felicitando sé di
cura in cura- v. 30),
i.e. em passar a atender à curiosidade de Dante (a segunda das
suas dúvidas ainda não foi respondida).
Então, rompe o silêncio “a luz que me narrara a vida maravilhosa/ do
pobrezinho de Deus” (/.../
la luce in che mirabil vita/ del poverel di Dio narrata fumi- v. 32-33), ou seja Tomás de Aquino, que narrou, no Canto XI, a vida de Francisco de Assis. A partir do v. 34, e até o
último verso do presente Canto, é Tomás quem fala.
Inicia por uma metáfora do meio
rural, afirmando que:
/.../ “Quando l’una paglia è trita,
quando la sua semenza è già riposta,
a bater l”altra dolce amor m’invita. (v.34-36)
/.../ “Quando
um feixe é malhado/ quando o seu grão já está armazenado,/ a malhar outro o
doce amor me convida.
Ou seja, depois de esclarecer a
primeira dúvida de Dante (no Canto X), ele deve concentrar-se agora na segunda
dúvida, aquela relativa à sabedoria sem rival de Salomão. A dúvida surgiu em
Dante quando Tomás afirmou “que não houve
outro/ espírito igual ao que se
esconde na quinta luz” (do primeiro círculo) (quando narrai che non
ebbe ‘l secondo/ lo ben che ne la quinta luce è chiuso- v. 47-48).
Dante se perguntou então como pôde o
dominicano fazer tal afirmação a respeito de Salomão (reiterando aquela do canto
X, v. 114-- “não se elevou jamais um
segundo com tanta visão”: a veder tanto non surse il secondo) se existiram dois homens especiais,
o primeiro, criado diretamente por Deus, Adão, que forneceu a costela “para formar o belo rosto daquela/ cujo
paladar foi tão custoso ao mundo” (/.../ per formar la bela guancia/ il cui
palato a tutto ‘l mondo costa- v.38-39)
(Eva) e o segundo, o Cristo homem, que viria ao mundo para cumprir sua missão
redentora, pois “os pecados antigos e
posteriores expiou/ mais do que compensando nossa culpa na balança” (da
justiça) (e
prima e poscia tanto sodisfece,/ che d’ogne colpa vince la bilancia- v.41-42).
Aos dois, toda a luz (inteligência, sabedoria) possível foi atribuída por Deus:
quantunque a la natura umana lece
aver di lume, tutto fosse infuso
da quel valor che l’uno e l’altro fece (v. 43-45)
tudo
quanto a natureza humana pode/ ter de luz, tudo lhes foi infundido/ por aquele
Valor que fez um e outro
Tomás de Aquino, todavia, pede então
que Dante o ouça atentamente, pois não há discrepância nenhuma entre o que este
crê e o que ele diz. Dante verá ambos “coincidirem
na verdade como no centro de um círculo” (nel vero farsi come centro in tondo- v.
51), vale dizer, verá como
essas duas posições, comparadas implicitamente aos pontos ao longo de um
círculo, coincidem no seu ponto central, que é comum a todos eles, do qual
distam igualmente (2).
O teólogo prossegue afirmando que “O que não morre e o que morrerá” (Ciò che non more e
ciò che può morire- v.52)
(“o que não morre” abrange os anjos, os céus, a matéria primeira e a alma
humana), ou seja, todas as coisas criadas são reflexos “daquela ideia” (di quella idea- v.53),
ou do Verbo (Cristo), “que Deus, por amor
(o Espírito Santo), gera” (v. 54);
nos versos seguintes ocorre nova menção a essas três pessoas da SS. Trindade
quando afirmam que a “viva luz” (viva luce- v.55) (Cristo) deriva de Deus, sua fonte, de
quem não se separa, nem do amor (Espírito Santo), que com elas -- a luz e a
fonte -- forma a Trindade, permanecendo eternamente una; os raios desta Trindade
Santíssima refletem-se, como num espelho, em nove essências (sussistenze- v. 59, literalmente “subsistências”,
que subsistem por si mesmas), identificadas como as ordens angélicas. “Delas, a luz refletida desce à última
potência,/ de ato em ato /.../” (Quindi discende a l’ultime potenze/ giù
d’atto in atto /.../- v.61- 62),
vale dizer, a luz do Verbo (cf v. 55), que, conforme Hollander, “combina seu
poder criativo com as presenças angélicas em cada esfera celeste” (3), desce,
se atenuando, por essas esferas, até chegar ao (nosso) mundo abaixo do céu da Lua
(4), criando seres contingentes, “com
semente e sem semente” (con seme e sanza seme /.../- v. 66), ou seja, seres orgânicos (animais e
vegetais) e inorgânicos (minerais). Esses
seres não são uniformes, variam entre si:
La cera di costoro e chi la duce
non sta d’un modo; e però sotto ‘l segno
idëale poi più e men traluce.
Ond’ elli avvien ch’um medesimo legno,
secondo specie, meglio e peggio frutta;
e voi nascete con diverso ingegno. (v.67-72)
A cera
de tais coisas e o que a modela/ não são imutáveis; por isso, sob o selo da
ideia divina/ a luz brilha mais e menos.
Assim
sucede que árvores da mesma espécie/ produzam frutos melhores e piores;/ e vós
nasceis com diverso engenho.
A luz do selo divino é distribuída
imperfeitamente pela Natureza (termo que abrange “a soma das causas
secundárias”) (5), “operando semelhante
ao artista/ que conhece sua arte mas a mão lhe treme” (similemente operando
a l’artista/ ch’a l’abito de l’arte ha man che trema- v. 77-78). Porém, com a intervenção divina
direta, vale dizer, da Trindade (suas três pessoas são agora referidas como “amor”,
“visão” e “primeira virtude”, nos vv. 79 e 80), “toda perfeição aqui (na terra)
se adquire” (tutta
la perfezion quivi s’acquista- v. 81).
Foi o que ocorreu quando houve a criação de Adão e quando Deus se fez homem na pessoa de Cristo:
Così fu fatta già la terra degna
di tutta l’animal perfezïone;
così fu fatta la Vergine pregna; (v.82-84)
Assim, a terra já foi digna/ de toda a perfeição animal;
/ e assim a Virgem engravidou;
Desse modo, Tomás afirma que
concorda com a opinião (subentendida) de Dante, “de que a natureza humana jamais foi/ nem será o que foi naquelas duas
pessoas” (che
l’umana natura mai non fue/ né fia qual fu in quelle due persone- v. 86-87), Adão e Cristo.
Mas nesse ponto, diz Tomás, Dante poderia
lhe perguntar: “Então, como aquele foi
sem par?” (‘Dunque,
come costui fu sanza pare?’- v. 89),
i.e. como Salomão não teve par? (Dante, já se vê, estaria se referindo àquela afirmação
de Tomás a propósito de Salomão antes citada-- “não se elevou jamais um segundo com tanta visão” (Canto X, v. 114).
Tomás então lembra a Dante que Salomão era um rei, e que, ao ser solicitado,
pediu ao Senhor sabedoria para bem desempenhar tal função
(cf. I Reis 3: 5-12). Não pediu para se aprofundar em questões teológicas,
filosóficas ou matemáticas: “não
(pediu) para saber o número/ dos motores
do alto” (non
per sapere il numero in che enno/ li motor di qua sù, /.../- v. 97-98), i.e. o número de anjos, as
inteligências motrizes das esferas celestes; nem se depois de uma premissa
necessária e de uma contingente segue-se uma conclusão necessária (o
significado dos versos 98-99, conforme os comentadores); ou se se pode admitir
que haja um primeiro movimento, que antecedeu todos os outros (v.100, em latim
no original); “ou se, dentro de um semicírculo,
se pode/ inscrever um triângulo sem ângulo reto” (o se del mezzo
cerchio far si puote/ trïangol sì ch’un retto non avesse- v. 101-102). Por fim, Tomás esclarece de modo
preciso o sentido dos termos que utilizou anteriormente: “aquela visão sem par é a prudência real” (regal prudenza è quel
vedere impari- v.104),
e se al “surse” drizzi li occhi chiari,
vedrai aver solamente respetto
ai regi, che son molti, e’ buon son
rari. (v. 106-108)
e se a
“elevou-se” diriges os olhos claros/ verás que se refere somente/ a reis, que
são muitos mas os bons são raros.
Assim, o que Tomás quis dizer é que
Salomão não teve igual na sua condição de rei sábio. Isso não conflita com o
fato de que a natureza humana de modo geral atingiu o seu mais elevado grau de
perfeição em dois casos: no do “primeiro
pai (primo
padre- v.111), o de Adão
(criado diretamente por Deus) e do “nosso Bem Amado” (nostro Diletto- v. 111), o de Cristo.
Na sequência, Tomás aconselha a Dante a tirar
disso uma lição: não se precipitar em tomar partido rapidamente, quando a questão
(filosófica ou teológica) não está clara. Para tanto usa a imagem do chumbo associado
aos pés:
E questo ti sia sempre piombo a’ piedi,
per farti mover lento com’ uom lasso
e al sì e al no che tu non vedi: (v. 112-114)
E que
isto te seja sempre chumbo aos pés,/ para que te movas lento, como o homem
cansado,/ ao sim e ao não, quando não vês claro:
Depois, por questão de amor próprio, o
estulto (v.115) se apega à opinião falsa, porque tomada apressadamente, sem
maior exame da matéria, e anula a própria razão:
perch’ elli ‘ncontra che più volte piega
l’oppinïon corrente in falsa parte,
e poi l’affetto l’intelletto lega. (v. 118-120)
visto
que muitas vezes/ a opinião apressada se volta à falsa parte,/ e depois a
paixão bloqueia o intelecto.
O poeta compara a pessoa que busca a
verdade de modo equivocado a um
pescador: “aquele que sai para
pescar a verdade mas lhe falta a arte” (chi pesca per lo vero e non ha l’arte- v. 123)
Ilustra esse caso com os antigos filósofos gregos Parmenides, Melisso e
Brisso (v.125), refutados por Aristóteles, e com os teólogos heréticos Sabélio
e Ário e outros “estultos” (stolti- v. 127).
O primeiro negava a doutrina da Trindade
e o outro, a natureza divina de Cristo (6)
Os versos 128-129 contêm uma
comparação curiosa: os heréticos “/.../ foram
como espadas à Escritura/ tornando tortos os rostos direitos” (/.../ furon come
spade a le Scritture/ in render torti li diritti volti). Como a lâmina das espadas reflete
as imagens distorcidas, assim também os heréticos distorcem as palavras da
Escritura.
Nos versos finais do Canto, Tomás de
Aquino usa algumas imagens em sua
crítica aos nossos julgamentos precipitados. Inicialmente, refere-se a “aquele que estima/ no campo a seara antes
que ela esteja madura” (/.../ sì come quei che stima/ le biade in campo pria che
sien mature;- v.131-132)
ou ao que vê por todo o inverno a sarça com mau aspecto “e depois (vê) florescer a
rosa no seu cume” (poscia
portar la rosa in su la cima;- v. 135).
A imagem final é inspirada pelo mar e o navio que por ele navega:
e legno vidi già dritto e veloce
correr lo mar per tutto suo cammino,
perire al fine a l’intrar de la foce. (v. 136-138)
e lenho
já vi direito e veloz/ seguir no mar todo o seu caminho/ e perecer no fim ao
entrar no porto.
A advertência contra o julgamento
apressado é reiterado no último terceto do Canto, quando Tomás afirma que não
pensem dona Berta e “seu” Marino (nomes populares em Florença) já saberem qual
é o juízo divino, “por verem um roubar e
outro dar esmola” (per
vedere un furare, altro offerere- v. 140),
“pois aquele pode salvar-se, e este,
perder-se” (ché
quel può surgere, e quel può cadere- v. 142).
NOTAS
(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony
Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam
Books, 1986- p.357-8.
(2) HOLLANDER, Robert
& Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert &
Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander. Doubleday, 2007, p. 319-320.
(3) Id. ib, p. 321
(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”,
op cit, p.359; HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p.320.
(5) MANDELBAUM, Allen-
“The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.359.
(6) Id. ib, p. 360.
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Para ouvir o Canto XIII:
https://www.youtube.com/watch?v=GGbfyCCaG1Q&t=20s]
(acessado em 9.09.20)
Salvador Dalí. |
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