sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

CANTO VI

PARAÍSO


Canto VI


Justiniano- mosaico em Ravenna (séc. VI)
  
            Neste Canto, do primeiro ao último verso, quem fala é Justiniano, que se identifica no v.10: “César fui e sou Justiniano” (Cesare fui e son Iustinïano), imperador de 527 a 565 da era cristã, cuja grande obra foi a codificação do Direito Romano, compilando e depurando a legislação existente (1) (aliás, ele se  refere a esse feito no v.12: “removi das leis o excessivo e o vão”: d’entro le leggi trassi il tropo e ‘l vano). 

Justiniano inicia referindo-se à transferência “contra o curso do céu” (contr’al corso del ciel- v.2) (i.e., de ocidente para oriente) da sede do Império Romano -- representado pelo seu símbolo, a “águia” (l’aquila- v.1) -- para Bizâncio, efetivada por Constantino no ano 324 (por isso a cidade passará a se chamar Constantinopla). Quando Justiniano assumiu o trono, a sede do Império retornou para a Itália. Mas a “ave de Deus” (l’uccel di Dio- v. 4) permanecera lá por mais de duzentos anos, “perto dos montes de onde primeiro levantou voo” (vicino a’ monti de’ quai prima uscìo- v. 6), vale dizer, próximo a Troia, a região de Eneas e outros fundadores míticos de Roma (esse é o tema da “Eneida” de Virgílio). Depois da derrota na guerra contra os gregos eles emigram para o Lácio, tendo Eneas se casado com Lavínia, filha do rei Latino. Após vários governantes o poder chegou até as mãos dele, diz Justiniano (v.9) (2)  

A imagem da águia, a Águia Imperial -- símbolo, emblema ou signo do Império Romano -- será explorada frequentemente neste Canto e referida sempre em substituição ao Império que representa.

Justiniano menciona o seu abandono da heresia monofisita (para quem Cristo não tinha duas naturezas, mas só uma, a divina) e sua conversão “à fé verdadeira” (la fede sincera- v.17) pelo papa Agapito.  Passa, em consequência, a “caminhar com a Igreja” (/.../ con la Chiesa mossi i piedi- v. 22) e, inspirado por Deus, a dedicar-se integralmente à sua “alta tarefa” (alto lavoro- v. 24), a saber, a codificação da legislação romana, confiando as armas ao seu general Belisário (que venceria vândalos na África e godos na Itália). Após dizer isso, afirma que está respondida a primeira pergunta de Dante (v.28), aquela que pedia a identificação do espírito com quem conversava (cf. final do Canto V) (3).


Amos Nattini

Mas Justiniano acrescenta que sua resposta o induz a ir adiante, e apresenta, nos versos subsequentes, um rápido apanhado da história de Roma (ou melhor, do “sacrossanto símbolo”, sacrossanto segno- v.32 , a águia), desde os seus primórdios, para que Dante-personagem veja “quanta virtude o fez digno de/ reverência” (Vedi quanta virtù l’ha fato degno/ di reverenza; /.../ v.34-35)...   

 Refere-se então, rapidamente, ao sete reinados (de Rômulo a Tarquínio), depois à República e por fim ao Império, quando ocorre, durante a época de Augusto -- após este vencer seus adversários -- e de Tibério, a “pax romana” (“/.../ tempo em que o céu/ quis trazer o mundo ao seu modo sereno: /.../ tempo che tutto ‘l ciel volle/ redur lo mondo a suo modo sereno- v. 55-56),  época, não por acaso, para Dante, do nascimento e morte de Cristo. Conforme as ideias políticas do poeta florentino expostas em “Da Monarquia”, o Império Romano é a forma política desejada por Deus para o mundo relativamente ao aspecto temporal, da mesma forma que o poder espiritual cabe à Igreja Católica.
Justiniano inicialmente refere-se ao reino de Eneas transferido por seu filho para Alba Longa, onde “ele” (o símbolo, a águia romana) “fez sua morada/ por trezentos anos e mais” (“/.../ el fece in Alba sua dimora/ per trecento anni e oltre, /.../- v. 37-38), até que os três Horácios, de Roma, derrotaram os três Curiácios, de Alba (v. 38-39), e afirmaram a supremacia de Roma nessa luta entre dois povos do Lácio descendentes dos troianos. Menciona o mal que “ele” fez, “desde as Sabinas/ até a dor de Lucrécia, durante os sete reinados(/.../ el fé dal mal de le Sabine/ al dolor di Lucrezia in sete regi- v. 40-41), ou seja, desde o rapto das Sabinas, ordenado pelo primeiro rei, Rômulo, para prover de esposas seu povo, até a violação de Lucrécia feita pelo sétimo e último rei, Tarquínio (ou seu filho), o que a levou ao suicídio e motivou a deposição do rei, em 510 a.C., iniciando-se o período da República. Refere-se então às vitórias que “ele” obteve contra o gaulês Breno (390 aC), contra o grego Pirro (280 aC), rei do Epiro, aliado dos tarentinos em guerra com os romanos na Itália, e outros, razão por que certos “egrégios romanos” (egregi/ Romani- v.43-44), citados nominalmente por Justiniano, “ganharam a fama que com prazer incenso” (ebber la fama che volontier mirro-v. 48). Depois, “ele” (o símbolo, a águia) “abateu o orgulho dos árabes” (Esso atterrò l’orgoglio de li Aràbi- v. 49), vale dizer, dos cartagineses liderados por Aníbal (247-183 a.C.) (trata-se de um anacronismo de Dante: na época deste o território cartaginês estava ocupado pelos árabes, mas não na época dos romanos) (4). Nessas lutas e em outras, posteriores, destacaram-se novos heróis, Cipião e Pompeu.  

A seguir, Justiniano sumariza as ações empreendidas por Júlio César, que se apossou daquele símbolo (v. 57). Seus feitos foram vistos por determinados rios, citados nos versos, localizados na região da Gália, uma forma indireta de indicar essa região.  Prossegue, explorando a imagem da águia:

Quel che fé poi ch’elli uscì di Ravenna
e saltò Rubicon, fu di tal volo,
che nol seguiteria língua né penna.      (v. 61-63)

Aquilo que ele (o símbolo, a águia) fez depois quando deixou Ravena/ e saltou o Rubicão foi um tal voo/ que não pode segui-lo língua nem pena.

(o rio Rubicão faz a divisa entre a Gália Cisalpina e a Itália) (5)

Refere-se então “en passant” à luta dos exércitos de Júlio César contra os da República romana na Espanha, e também em Durazzo e em Farsália, onde ocorreu a batalha em que Pompeu foi derrotado no ano 48 a.C., fugindo para o Egito:  “Farsalia golpeou/ tanto que até o quente Nilo sentiu a dor” (/.../ e Farsalia percosse/ sì ch’al Nil caldo si sentì del duolo- v.65-66) (no Egito, Pompeu foi traído por Ptolomeu e aí encontrou a morte). Afirma ainda que César, perseguindo Pompeu,  andou pela região de Tróia, onde visitou “o lugar onde jaz Heitor(/.../ là dov’ Ettore si cuba-  v.68), o herói troiano,  antes de deslocar-se para o norte da África (“e depois partiu para o mal de Ptolomeu”: e mal per Tolomeo poscia si scosse- v. 69), onde  César depôs Ptolomeu, colocando Cleópatra em seu lugar, e “caiu como um raio sobre Juba” (/.../ scese folgorando a Iuba-  v.70), rei da Mauritânia, aliado de Pompeu (6).  

Justiniano dá continuidade ao seu discurso mencionando o destino que o símbolo deu, “com o portador seguinte” (col baiulo seguente- v. 73) (Otaviano, conhecido como Augusto), a Brutus que “no inferno ladra” (ne l’inferno latra- v. 74) juntamente com Cássio, enquanto a cidade de Modena se torna “dolorosa” (dolente- v.75) assim como Perugia, haja vista as derrotas infligidas aí, respectivamente, contra  as forças de Marco Antonio e seu irmão. Anos mais tarde a derrota final de Marco Antonio em Actium leva-o a cometer suicídio, o que também comete Cleópatra (v.76) (7). Augusto, que chegou em seus deslocamentos até a “margem do mar Vermelho” (al lito rubro- v.79), após suas vitórias, coloca o mundo em paz. Por isso, “fechado ficou o templo de Jano” (che fu serrato a Giano il suo delubro-  v. 81), que só abria em tempo de guerra...

Mas tudo o que o símbolo fizera antes torna-se insignificante perto do que fez no período do “terceiro César” (terzo Cesare- v. 86), Tibério, a quem coube “a glória de vingar a sua ira” (gloria di far vendeta a la sua ira- v. 90), i.e. a ira divina, motivada pelo pecado de Adão, pois foi um representante de Tibério, Pôncio Pilatos, quem autorizou a crucificação de Cristo, ocorrida na época daquele imperador. Viabilizou assim o sacrifício de Cristo, por meio do qual Ele quis, segundo a doutrina católica, apagar o pecado original para reabrir as portas do Paraíso à humanidade. O símbolo “com Tito depois apressou-se a vingar/ a vingança do pecado antigo” (poscia con Tito a far vendeta corse/ de la vendeta del peccato antico- v. 92-93). Tito, ao destruir Jerusalém no ano 70 d.C., vingava outra vingança, ou seja, punia o povo judeu que pedira a morte de Cristo, morte essa que representava reparação pelo pecado antigo, o pecado original.

Justiniano então dá um salto de sete séculos referindo-se à vitória de Carlos Magno sobre os longobardos que em 723 d.C. haviam atacado a “Santa Igreja” (Santa Chiesa- v. 95), invadindo o território papal (8).  Estabelece assim uma continuidade entre o antigo Império Romano e o Sacro Império Romano, o que fica evidenciado pela associação a Carlos Magno da expressão “sob suas asas” (sotto le sue ali- v. 95), quer dizer, sob as asas da águia romana.   

Em seguida, Justiniano concentra-se na situação política da Itália de então, caracterizada pela rivalidade entre guelfos e gibelinos. Diz a Dante que as falhas deles “são a causa de todos os vossos males” (che son cagion di tutti vostri mali- v. 99). Já fizera alusão a essas duas correntes políticas  anteriormente (no v. 33), afirmando que uns se apropriam do “sacrossanto símbolo” (sacrosanto segno- v. 32) -- caso dos gibelinos, cujo emblema era a águia romana -- e outros se lhe opõem, caso dos guelfos (9). Este partido “à insígnia universal opõe lírios amarelos” (/.../ al pubblico segno i gigli gialli/ oppone /.../- v. 100-101), ou seja,  à águia romana opõe os lírios dourados da casa real francesa. Dante, pela voz de Justiniano, critica ambos: “é difícil ver quem erra mais” (/.../ è forte a veder chi più si falli- v. 102). Manda os gibelinos adotarem outro signo e afirma que “esse novo Carlos” (esto Carlo novelo- v.106) (Charles II, d’Anjou, rei de Nápoles de 1289 a 1309, que sucedeu ao pai homônimo) com seus guelfos (partido que lidera na Itália) não tente arrebatá-lo dos gibelinos. Devem temer “as garras dele (da águia)/  que de leão maior arrancou a pele” (/.../ tema de li artigli/ ch’ a più alto leon trasser lo vello- v. 107-108), i.e. de leão maior que aquele que Charles representa, uma ameaça a este se tencionava ampliar seus domínios (10). A opção de Dante pelo Império Romano em detrimento da Monarquia Francesa fica evidenciada nos versos 110-111: “não se creia/ que Deus mude de armas pelos seus lírios!(/.../ non si creda/ che Dio trasmuti l’armi per suoi gigli!)

Logo após Justiniano responde à segunda questão levantada antes por Dante, relativa à posição dos espíritos alocados a Mercúrio na hierarquia associada ao sistema planetário. Ele explica que estão ali, nessa “pequena estrela” (picciola stella”- v. 112), “os bons espíritos que agiram/ para obter glória e fama” (/.../ i buoni spirti che son stati attivi/ perché onore e fama succeda- v. 113-114), quer dizer, se voltaram antes para os seus contemporâneos do que para Deus, assim se desviando do fim mais elevado. Mas esses espíritos estão contentes com a recompensa que corresponde ao seu mérito, “não a vemos nem maior nem menor” (/.../ non li vedem minor né maggi- v. 120).  Afirmam mais adiante:  “assim os diversos graus em nossa vida/ criam doce harmonia entre estas esferas” (così diversi scanni in nostra vita/ rendon dolce armonia tra queste rote- v. 125-126).

Nos versos finais, Justiniano individualiza um daqueles espíritos que estão “dentro desta gema luminosa(/.../ dentro a la presente margarita- v. 127), chamando-o apenas de Romeo. Trata-se de Romeo de Villeneuve (1170-1250), que serviu com correção, na condição de ministro, ao conde de Provença Raimundo Berenguer, citado nominalmente no v. 134. Mas sua obra “grande e bela foi mal agradecida” (fu l’ovra grande e bella mal gradita-  v. 129), pois ele foi vítima da intriga dos cortesãos, de suas “palavras caluniosas” (parole biece- v. 136), gente assim censurada por Justiniano:  “toma o mau caminho/ quem julga um dano a si o bem feito por outrem” (/.../ e però mal cammina/ qual si fa danno del ben fare altrui- v. 131-132). Esses comentários maliciosos levaram à perda de confiança de Raimundo no “justo” (giusto- v. 137) Romeo, que por isso parte dali,  “pobre e idoso” (povero e vetusto- v. 139). (11)

O Canto termina com os versos transcritos abaixo, em que os comentaristas assinalam a semelhança da situação de Romeo com a de Dante, no exílio:

e se ‘l mondo sapesse il cor ch’elli ebbe
mendicando sua vita a frusto a frusto,
assai lo loda, e più lo loderebbe.    (v. 140-142)

e se o mundo soubesse a coragem que tinha/ mendigando, bocado por bocado, o seu sustento,/ ele, que assaz o louva agora, mais o louvaria. 
  

NOTAS
   
(1) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.  Penguin Books, 1971, pp.101 e 380

(2) Id. ib,, p. 102-103. Ver também MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.328.

(3) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 329.

(4) Id. ib, p. 330. Ver também HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p. 147-148.

(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 331.

(6) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.149.

(7) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 331.

(8) Id. ib, p. 332

(9) Id. ib, p. 329.

(10) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.153.   

(11) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.332

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Para ouvir o Canto VI:

https://www.youtube.com/watch?v=UFZs5SZyEdg

(acessado em 27.08.20)




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