PARAÍSO
Canto II
Nos
versos iniciais deste Canto, Dante explora a metáfora do barco não só em
relação a si mesmo -- quando sua jornada é comparada a um navio (cf. “lenho”:
legno-
v.3, uma metonímia)
avançando em água que “jamais foi
navegada” (L’acqua
ch’io prendo già mai non si corse- v. 7)
-- mas também em relação aos seus seguidores. Aqueles que navegam “em pequenina barca” (/.../ in piccioletta
barca- v.1) são
desestimulados a prosseguir, pois se extraviarão. Só serão bem sucedidos nesse “alto mar” (alto sale- v. 13) os seguidores que se alimentaram a
tempo do “pão dos anjos” (pan de li angeli- v.
11), interpretado como a
“sabedoria divina” (que se obtém nos estudos teológicos e filosóficos) (1), “do qual/ vive-se aqui, mas sem se saciar”
(/.../
del quale/ vivesi qui ma non sen vien satollo- v.11-12). Tais seguidores se admirarão mais
com o que verão do que os Argonautas, ao verem Jasão -- aquele que, segundo a
lenda, buscava o velocino de ouro (2) -- transformado em lavrador, uma
referência mitológica que nestes versos preliminares já foi antecedida por outra, pois nos versos 8 e 9 o
poeta menciona Minerva (deusa da sabedoria), Apolo, que o conduz, e as nove Musas,
que o orientam.
Amos Nattini |
Na sequência, Dante afirma que ele e
Beatriz são elevados velozmente pela
sede do reino divino, ela olhando para o alto, e ele, para ela. Logo depois
afirma que eles se encontram num lugar estranho, peculiar, identificado no v.
30 como o da “primeira estrela” (prima stella), conforme Beatriz informa a Dante, antes que este lhe
pergunte a respeito. Eles já estão assim
no 1º céu, o da Lua. O poeta, para expressar esse rapidíssimo movimento para o
alto, usa a imagem (frequente) da seta/ arco e uma figura de retórica chamada
“hysteron proteron” (3), em que o movimento (da seta, no caso) é invertido,
partindo-se do resultado final e retrocedendo-se à sua origem (o arco):
Beatrice in suso, e io in lei guardava;
e forse in tanto in quanto un quadrel posa
e vola e da la noce si dischiava,
giunto mi vidi ove mirabil cosa
mi torse il viso a sé; /.../ (v. 22-26)
Beatriz
para o alto, e eu para ela olhava; / e talvez tão rápido quanto uma seta se
fixa/ e voa e se desprende do arco,/
me
encontrei num lugar onde coisa admirável/ atraiu meu olhar para si; /.../
Os dois estavam assim dentro da Lua,
que os “recebeu como água recebe/ raio de luz permanecendo unida” (ne ricevette, com’
acqua recepe/ raggio di luce permanendo unita- v. 35-36), vale dizer, ao
penetrarem na “estrela” não alteram as condições desta, diferentemente do que
ocorreria na Terra (v. 37) se recebesse outros corpos. Isso aumenta o desejo do poeta de ver “aquela Essência” (quella essenza- v. 41), Cristo, em que, similarmente, estão
unidas, embora distintas, duas naturezas, a humana e a divina (v. 42).
Dante tem curiosidade de saber qual é
a explicação para as manchas escuras da Lua (que para uma crença popular da
época eram Caim carregando um arbusto de espinhos, castigo que lhe foi imposto
por ter matado seu irmão Abel) (4). E pergunta a Beatriz sobre isso. Mas esta, antes
de responder, indaga o que ele pensa a respeito. E ele lhe diz: “O que nos parece diverso aqui/ decorre, creio, das partes raras e
densas”. (E
io: “Ciò che n’appar qua sù diverso/ credo che fanno i corpi rari e densi”.- v.
59-60). Na visão de
Dante, assim, a diferença de luminosidade da “estrela” deve ser atribuída à
irregularidade do corpo lunar, com partes raras e densas. Desse modo, ele
atribui aquelas manchas à diferença de
densidade na superfície da Lua, em que há partes menos densas (“raras”) e
outras mais. Enquanto as partes raras refletem menos os raios solares, as
partes densas refletem mais esses raios (5).
Beatriz, em sua longa resposta, que
inicia no v. 61 e só finaliza no último verso do Canto (v. 148), contradiz essa
explicação. Ela começa por referir-se à
“esfera oitava” (La spera ottava- v.64), i.e, ao oitavo céu (o das estrelas
fixas), cujas “luzes” diferem em qualidade e quantidade (v.65) e apresentam “virtudes diversas” (Virtù diverse- v.70) (ou diversas capacidades de influenciar)
(6), fruto de diferentes “princípios
formais” (princìpi
formali- v. 71). Dante
empresta esse conceito da Filosofia Escolástica a qual, conforme Longnon (7), distingue
nos corpos o princípio material (a matéria), que lhes é comum, e o princípio
formal (forma substancial) que determina a sua espécie e natureza própria e,
portanto, sua virtude particular. Se a explicação de Dante fosse válida, só haveria
um princípio formal determinante, o da maior ou menor densidade dos corpos, e
uma só virtude nas estrelas (v. 68).
Depois, ela dá uma ideia rápida da
configuração do Universo, onde se insere o primeiro céu. Afirma que “Dentro do céu da divina paz” (Dentro dal ciel de la
divina pace- v.112) (o
Empíreo imóvel, a morada de Deus) gira um outro (o Primum Mobile), seguido do
céu “com tantas estrelas” (/.../ c’ha tante
vedute- v.115) (o oitavo
céu, das estrelas fixas) e “Os outros
céus” (Li
altri giron /.../- v.118)
(os sete céus inferiores), com “distintas
virtudes” (le
distinzion che dentro da sé hanno- v.119),
todos “recebendo de cima e agindo em
baixo” (che
di sù prendono e di sotto fanno- v. 123),
intervindo nesse processo os “motores
beatos” (beati
motor- v.129), i.e.
Inteligências Celestiais ou anjos (8).
Salvador Dalí |
Beatriz conclui, retornando para a
questão que Dante formulara, e resumindo sua explicação das manchas lunares. Reporta-se
ao oitavo céu para mostrar que a Inteligência que lhe move distribui sua influência
entre as estrelas fixas, a qual é modificada pelo caráter dos corpos de cada
uma, daí decorrendo a diferença no brilho delas; o mesmo ocorre com a Lua: (9)
E comme l’alma dentro a vostra polve
per differenti membra e conformate
a diverse potenze si risolve,
così l’intelligenza sua bontate
multiplicata per le stelle spiega,
girando sé sovra sua unitate.
Virtù diverso fa diversa lega
col prezïoso corpo ch’ella aviva,
nel qual, sì come vita in voi, si lega.
Per la natura lieta onde deriva,
la virtù mista per lo corpo luce
come letizia per pupilla viva.
Da essa vien ciò che da luce a luce
par differente, non da denso e raro;
essa è formal principio che produce,
conforme a sua bontà, lo turbo e ‘l
chiaro.” (v.133- 148)
E como
a alma dentro do vosso pó/ por diferentes membros se estende,/ conformados a
diversas faculdades (dos
sentidos),/
assim a
inteligência angélica manifesta/ a sua virtude multiplicada nas estrelas,/ girando sobre sua unidade.
A
virtude diversificada forma uma unidade diversa/ com o precioso corpo (estelar) que ela aviva/ e à qual se liga, assim
como a vida em vós.
Pela
natureza alegre de sua fonte (Deus)/
a virtude misturada ao corpo brilha/ como a alegria pela pupila viva.
Dela
provém as diferenças de luz a luz (de estrela a estrela)/ e não da densidade e raridade;/ ela é o princípio formal que
produz,/
conforme
sua qualidade, o escuro e o claro.
NOTAS
(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine
Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum.
Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam
Books, 1986- p. 315
(2) Id, ib, p. 315
(3) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The Inferno. The
Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi. New American Library, 2003, p. 612.
(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of
Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 317.
(5) Id, ib, p.317
(6) ZOLI, M. e ZANOBINI, F.- “La Divina
Commedia: a cura di M.Zoli e F.Zanobini. Inferno. Purgatorio. Paradiso”.
Bulgarini, 2013, p. 724.
(7) LONGNON, Henri- “La Divine Comédie”.
Traduction, préface, notes et commentaires par Henri Longnon. Paris: Garnier, 1951,
p. 636
(8) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri-
Paradiso”, op cit, p. 319
(9) BINYON, Laurence- “The Divine Comedy”,
complete, translated by Laurence Binyon, with notes from C.H. Grandgent in “The
Portable Dante”. The Vicking Press, New York, 1976, p. 372
---------------------------
Para ouvir o Canto II:
(acessado em 21.08.20)