segunda-feira, 30 de março de 2020

CANTO XXVIII



PARAÍSO


Canto XXVIII


            Concluída a fala de Beatriz, Dante, que olhou os “belos olhos” (belli occhi- v. 11) dela, “onde Amor fez o laço que me prendeu” (onde a pigliarmi fece Amor la corda- v. 12), faz esta comparação: “como vê no espelho a chama de uma tocha/ aquele que por ela é iluminado por trás” (come in lo specchio fiamma di doppiero/ vede colui che se n’alluma retro- v. 4-5), “e se volta para ver se o espelho/ lhe diz a verdade” (e sé rivolge per veder se ‘l vetro/ li dice il vero, /.../- v.7-8), ele também se voltou para ver o que os olhos de Beatriz refletiam. E ele vê “um ponto de luz tão penetrante  (un punto vidi che raggiava lume/ acuto sì, /.../- v.16-7) que os olhos de quem o contempla “teriam de se fechar pelo fulgor intenso” (chiuder  conviensi per lo forte acume- v. 18). Prossegue, afirmando que “qualquer estrela, que da Terra parece a menor,/ pareceria (do tamanho de) a Lua, comparada àquele ponto” (e quale stella par quinci più poca/ parebbe luna, locata con esso- v. 19-20).  Esse ponto simboliza Deus, segundo os comentadores. Um deles (Sapegno) assim escreve a respeito: “O ponto matemático, que se concebe privado de dimensões, indivisível e material, é símbolo apropriado de Deus” (1).

Gelrev Ongibco 

            Dante observa que em torno daquele ponto minúsculo de intensa  luminosidade girava um “círculo de fogo” (un cerchio d’ igne- v. 25), mais rápido do que “o movimento que mais velozmente o universo cinge” (quel moto che più tosto il mondo cigne- v. 27), i.e. o do Primum Mobile. A proximidade desse círculo é expressa pelo poeta comparando-a com a da distância de um halo em relação à fonte de luz que o origina “quando o vapor que o forma é mais espesso” (quando ‘l vapor che ‘l porta più è spesso- v. 24), o que indica essa maior proximidade. Assim, tal “círculo de fogo” é o mais próximo do ponto que simboliza a divindade. Ele “tinha a chama mais resplandecente” (e quello avea la fiamma più sincera-v.37), pois, crê Dante, “mais penetra na verdade desse ponto” (/.../ però che più di lei s’invera- v. 39) (como se verá adiante, esse é o círculo dos Serafins, que estão no topo da hierarquia angélica). Outros oito círculos se sucedem (o segundo envolvendo o primeiro, o terceiro envolvendo o segundo e assim por diante) cada vez mais distantes do ponto luminoso e cada um menos rápido que o anterior (a velocidade, como se vê, é um indicador da distância de cada um em relação a Deus). Ao referir-se ao sétimo círculo, Dante faz referência à mitologia clássica (à esposa de Júpiter), dizendo que ele é tão amplo que “o mensageiro de Juno” (‘l messo di Iuno- v. 32), Íris, ou o arco-íris, “seria estreito demais para contê-lo” (v. 33).  

O Primeiro Motor-  Rafael Sanzio

            Beatriz, ao ver Dante “absorto pelo desejo de saber” (/.../ che mi vedëa in cura/ forte sospeso, /.../ v. 40-41), então se manifesta. Afirma que “Daquele ponto/ depende o céu e toda a natureza” (/.../ Da quel punto/ depende il cielo e tutta la natura.- v.41-2). Esse ponto é associado pelos comentaristas à ideia do “primeiro motor” de Aristóteles, desenvolvida por Tomás de Aquino (2). Beatriz afirma também que a velocidade do círculo mais próximo do ponto é causada “pelo ardente amor que o estimula” (per l’affocato amore ond’ elli è punto.- v.45), vale dizer, o amor dos Serafins por Deus.

Serafins (séc. XIV)

            Dante está intrigado com a disparidade entre o mundo espiritual dos círculos de fogo que ele vê, ali no Primum Mobile, em torno do ponto – “uma manifestação visual das nove ordens das Inteligências Angélicas”, conforme nota à tradução de Mandelbaum (3) -- e o mundo material das nove esferas físicas do universo em torno da Terra. Neste último caso, os céus são “tanto mais divinos” (/.../ tanto più divine,- v. 50) (mais rápidos, com mais amor a Deus) “quanto mais distantes do centro eles estão” (quant’elle son dal centro più remote- v. 51), o inverso do que ocorre, no primeiro caso, quanto aos círculos de fogo em relação ao ponto.  Assim, Dante quer saber porque há essa disparidade entre o “modelo” (l’essemplare- v.56) (o mundo espiritual) e a “cópia” (l’essemplo- v.55) (o mundo material). Antes, ele se referiu ao Primum Mobile (onde está, nesse momento de seu relato) assim: “neste admirável e angélico templo/ que só amor e luz tem por fronteiras” (in questo miro e angelico templo/ che solo amore e luce ha per confine,-  v. 53-54), amor e luz proveniente do Empíreo, a morada de Deus, do qual está mais próximo, dentre as esferas do mundo material.   

            Beatriz volta então a falar. Ela tranquiliza Dante nestes termos:

“Se li tuoi diti non sono a tal nodo
sufficïenti, non è maraviglia:
tanto, per non tentare, è fato sodo!”    (v. 58-60).    

“Se teus dedos não são capazes / de desfazer tal nó, não te admires:/ por não o tentarem, esse nó ficou tão apertado”.

            A metáfora do nó relaciona-se à correspondência entre o mundo espiritual e o material (4).  Beatriz, na sequência, procura esclarecer Dante a respeito dessa questão. 

            As esferas corpóreas (ou materiais), diz ela, são mais amplas ou menos em função da sua maior ou menor força. A esfera que tem maior força produz maior bem; a de maior corpo contém um bem maior. 

Dunque costui che tutto quanto rape
l’altro universo seco , corrisponde
al cerchio che più ama e che più sape:   (v.70-72)

E assim esta esfera, que arrebata/ todo o restante do universo, corresponde/ ao círculo que mais ama e mais sabe: 

            Em outros termos, a esfera (mais ampla) em que estão, i.e. o Primum Mobile, que move as outras esferas, corresponde ao círculo de fogo (menos amplo) mais próximo do ponto. Aí se concentra maior amor e conhecimento.

            Beatriz diz a Dante que seu “metro” (la tua misura- v. 73) deve ser a força e não a aparência (a amplitude da esfera e círculo, por exemplo). Só assim “tu verás a maravilhosa concordância” (tu vederai mirabil consequenza- v. 76) “entre cada esfera e sua inteligência” (in ciascun cielo, a süa intelligenza- v.78), vale dizer, existe uma correspondência entre as nove esferas (ou céus) materiais e as nove ordens (ou inteligências) angelicais arroladas abaixo (o Primum Mobile corresponde aos Serafins, o oitavo céu aos Querubins etc).  

            Referindo-se a Bóreas -- a mítica personificação dos três ventos do Norte (5) – Dante compara a sua situação emocional com a nossa “atmosfera  (l’emisperio de l’aere- v.80) depois que tal personagem soprou sobre a Terra, pela sua bochecha mais suave, limpando o céu, tornando a atmosfera “esplendorosa e serena” (splendido e sereno- v. 79), o modo como ele então se sente, depois de ouvir a explicação que Beatriz acaba de fazer.  

            Na sequência, os membros de cada uma das ordens angelicais, em seus círculos próprios, são comparados a faíscas, que dessa forma se mostram para expressar o seu regozijo pela correta explicação de Beatriz (6). E o número de faíscas (anjos) é imenso. Sua magnitude é ilustrada por Dante com a menção a uma antiga lenda relativa ao jogo de xadrez. O rei da Pérsia, agradecido, pediu ao inventor do jogo que formulasse um desejo. O inventor então lhe disse que ele poderia retribuir em grãos de milho, da maneira seguinte: 1 grão de milho na primeira casa do tabuleiro, 2 na segunda, 4 na terceira e assim sucessivamente, até a 64ª. casa. A soma dos termos dessa progressão geométrica  resultava em um número elevadíssimo de grãos, que não podia ser atendido nem com toda a produção de milho do reino. Esse número, todavia, era inferior ao número de faíscas presentes nesses círculos (7). Como dizem os versos:  

E poi che le parole sue restaro,
non altrimenti ferro disfavilla
che bolle, come i cerchi sfavillaro.

L’incendio suo seguiva ogne scintilla;
ed eran tante, che ‘l numero loro
più che ‘l doppiar de li scacchi s’inmilla.   (v. 88-93)

E após cessarem suas palavras/ como ferro incandescente que lança faíscas/ assim aqueles círculos faiscaram;
e todas as faíscas giravam com seu círculo flamejante;/ eram tantas que o seu número/ superava a soma obtida ao dobrarem-se sucessivamente as casas do tabuleiro de xadrez.  

            Dante prossegue dizendo que todos os coros angélicos presentes nos círculos de fogo cantavam “Hosana” (v.94) ao ponto fixo em torno do qual giravam.

Gustave Doré

            Do v. 97 em diante, até o final do Canto, é Beatriz quem fala. Ela, “que via os pensamentos cheios de dúvidas”  (E quella che vedëa i pensier dubi- v. 97) de Dante (refletidos na mente de Deus), explica para ele como se compõe a hierarquia dos anjos.    

            O primeiro nível dessa hierarquia é formado por três ordens angelicais: Serafins, Querubins e Tronos. Os Serafins e Querubins, a “corte mais próxima de Deus” (8), são tomados pelo desejo “de assemelhar-se ao ponto tanto quanto possam/ e tanto podem, quanto mais elevada seja sua visão” ( per somigliarsi al punto quanto ponno; / e posson quanto a veder son soblimi.- v. 101-2). Os Tronos (v.104), que estão na base dessa corte, circulando em volta das duas primeiras ordens, completam o primeira tríade.   

            Beatriz afirma que “todas” (tutti- v. 106) as ordens angélicas  (são nove ao todo, divididas em três tríades) que movimentam as nove esferas do universo (havendo uma correspondência entre aquelas e estas) (9) “se deleitam” (hanno diletto- v. 106) ali, no Primum Mobile, “na medida em que se aprofunda sua visão/ na verdade que sacia todo intelecto” (quanto la sua veduta si profonda/ nel vero in che si queta ogne intelletto- v. 107-8). Conforme um comentarista, “A beatitude das Inteligências Angélicas é proporcional à profundidade de sua visão de Deus”  Segundo a mesma fonte (10), Dante opta por S. Tomás d’Aquino e os dominicanos na disputa desta concepção com a agostiniana-franciscana, ao afirmar que “a beatitude se funda no ato de ver,/ não no ato de amar, que vem depois” (/.../ come si fonda/ l’esser beato ne l’atto che vede,/ non inquel ch’ ama, che poscia seconda;- v.109-111). Quer dizer, ele prioriza o ato de conhecer Deus, um ato do intelecto, que depois é seguido pelo ato de amá-Lo, um ato de vontade, decorrente do primeiro. Em suma, para amar é preciso primeiro conhecer.  
           
            Na sequência, Beatriz diz que a visão de Deus depende do “mérito” (mercede- v.112), “que a graça e o desejo do bem geram” (che grazia partorisce e buona voglia:- v.113).  

            Ela trata, a seguir, da “segunda tríade” (l’altro ternaro- v. 115), “que floresce/ nesta primavera eterna/ que Áries noturno não desfolha” (/.../ che  così germoglia/ in questa primavera sempiterna/ che notturno Arïete non dispoglia,-  v.115-7). Assim, essa tríade, como as outras duas, integram a “primavera eterna” ou o Primum Mobile. Além disso, deve-se notar nessa passagem a menção a duas estações do ano, uma, direta, a primavera, e outra, indireta, o outono, que substitui “Áries noturno”. Nessa estação do ano, quando as folhas aqui caem, a constelação de Áries só aparece no céu à noite, depois que o Sol se põe (11).    Beatriz prossegue dizendo que a segunda tríade -- formada pelas ordens angélicas denominadas Dominações, Virtudes e Potestades (v. 122-3) -- perpetuamente canta “Hosana” com três melodias.

            Beatriz menciona, por fim, as ordens que compõem a terceira tríade: Principados, Arcanjos e Anjos (v. 125-6).

            Todas as nove ordens angélicas voltam-se para o alto, em êxtase. “Todas são atraídas e todas atraem para Deus” (/.../ verso Dio/ tutti tirati sono e tutti tirano- v. 128-9).   

            Nos últimos versos do Canto, Beatriz afirma que a hierarquia de anjos por ela exposta é a de Dionísio (v.130-132). Segundo informam os comentaristas (12), trata-se de Dionísio, o Areopagita, convertido por S. Paulo e martirizado em Atenas no ano 95. Mas a obra famosa sobre a hierarquia angélica atribuída a ele é, na realidade, dos séculos V e VI. Dante, porém, o considera como a mesma pessoa. Também se menciona, nesses versos, Gregório (v. 133), ou seja, S. Gregório Magno, que divergiu de Dionísio nessa questão da hierarquia dos anjos. No entanto, depois que morreu, ou como dizem os versos, “mas tão logo abriu os olhos/ neste céu (por esse erro) de si mesmo riu” (onde, sì tosto come li occhi aperse/ in questo ciel, di sé medesmo rise- v. 134-5). 

            Finalmente, os versos dizem que não devemos nos admirar se um mortal (Dionísio) divulgou essa verdade na Terra, “pois quem a viu aqui em cima a revelou para ele” (ché chi ‘l vide qua sù gliel discoperse- v. 138), uma menção indireta a S. Paulo, que segundo a Bíblia foi arrebatado uma vez ao Paraíso (2 Cor.12:2-4) (13).     


NOTAS



(1) Apud MOURA, Vasco Graça—“Dante Alighieri- A Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. S.Paulo: Landmark, 2005- p. 839, nota.

(2) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.  Penguin Books, 1971, p. 306;  HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p. 696.    

(3) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.412.   

(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 412. 

(5) Id. ib., p. 412-3.

(6) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p.337.

(7) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 413. 

(8) Id. ib., p. 414.

(9) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 699.  

(10) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.414.

(11) Id. ib., p. 414.

(12) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”, op cit, p. 308.   Sobre o autor de “De Coelesti Hierarchia” ver também

(13) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 415.  
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-Para ouvir o Canto XXVIII:


(acessado em 14.10.20)


sexta-feira, 6 de março de 2020

CANTO XXVII



 PARAÍSO


Canto XXVII


  
            O Canto inicia por uma cena de regozijo geral, em que todo o Paraíso canta um hino em louvor “Ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo” (Al Padre, al Figlio, a lo Spirito Santo- v. 1). Dante se inebria com esse “doce canto” (dolce canto- v. 3) e considera o que vê como um “sorriso do universo” (un riso/ de l’universo- v. 4-5). Afirma que então sua “embriaguez” (ebbrezza- v.5) “entrava pelo ouvido e pela vista” (intrava per l’udire e per lo viso- v.6). 


Gustave Doré

            Refere-se, em seguida, às “quatro tochas” (le quattro face- v. 10) acesas que ali estavam, i.e. os lumes de S. Pedro, S. Tiago, S. João e Adão. Aquele que veio primeiro, ou seja, S. Pedro, “começou a brilhar mais intensamente” (incominciò a farsi più vivace- v.12). Dante compara essa mudança à da cor de dois planetas-- como se Júpiter (de brancura prateada) se transformasse em Marte (de ígnea vermelhidão) (1). Acrescenta ainda esta  comparação: os planetas eram como se “fossem pássaros que intercambiassem as plumagens” (fossero augelli e cambiassersi penne- v. 15).

            Esse brilho mais intenso reflete a sua revolta pela situação da Igreja naquela época. Depois da Providência impor silêncio aos “santos coros” (beato coro- v.17), Pedro passa a se manifestar. Inicia dizendo que assim como ele muda de cor, todos ali também vão mudar enquanto ele fala. Critica então violentamente o papa de então (em 1300) nestes termos: “Aquele que usurpa na terra o meu lugar” (Quelli ch’usurpa in terra il luogo mio- v.22) (Bonifácio VIII)

fatt’ha del cimitero mio cloaca
del sangue e de la puzza; ond’l perverso
che cadde di qua sù, là giù si placa   (v. 25-27)

fez de minha tumba uma cloaca/ de sangue e de fedor, onde o perverso (Lúcifer) que caiu daqui lá embaixo se compraz 

            (S. Pedro foi morto e sepultado em Roma, segundo os comentaristas) (2).

            Todo o céu se cobre então da cor (avermelhada) com que o sol “pinta as nuvens na aurora e no ocaso” (nube dipigne da sera e da mane- v.29). Também Beatriz muda de aparência, é comparada à dama honesta que ruboriza, ou “se envergonha, apenas escutando sobre a falha de outra” (/.../ e per l’altrui fallanza,/ pur ascoltando, timida si fane- v. 32-33). Dante associa tal mudança geral de coloração ao eclipse que ocorreu no céu quando Cristo foi crucificado, mencionado no evangelho de S. Mateus (27:45) (3).    

            Os versos seguintes (v.40-66) contêm uma crítica contundente de S. Pedro, o primeiro papa, à Igreja (“a esposa de Cristo”: sposa di Cristo- v. 40) em 1300. Menciona diversos papas que o sucederam (Lino, Cleto, Sixto, Pio, Calixto e Urbano), todos martirizados, como ele próprio. Afirma que eles não verteram seu sangue para a  Igreja  “conquistar ouro/  mas esta vida de deleite”  (per essere ad acquisto d’oro usata;/ ma per acquisto d’esto viver lieto- v. 42-43), a do Paraíso.   

            A divisão entre os fiéis da Igreja por motivo político também é criticada. Com relação aos dois grupos rivais, Guelfos e Gibelinos, o papa de então, Bonifácio VIII, tomava partido, apoiando aqueles e perseguindo estes (4). Por isso, S.Pedro diz que eles -- os papas citados da Igreja primitiva -- não queriam a divisão do “povo cristão” (popol cristiano- v.48). Também não queriam, continua, “que as chaves que me foram confiadas” (/.../ le chiavi che mi fuor concesse- v.49) -- as chaves do reino dos céus a ele conferidas por Cristo, conforme o evangelho de S. Mateus (16:19) (5) – “se tornassem símbolo na bandeira/ que combatesse contra batizados” (divenisser signaculo in vessilo/ che contra battezzati combattesse- v. 50-51), ou cristãos. Os comentaristas referem-se aqui à guerra empreendida por Bonifácio VIII contra a família Colonna, que contestou a legitimidade de sua posse (já no “Inferno” XXVII, v.85-90, Bonifácio -- esse “príncipe dos modernos fariseus” (Lo principe d’i novi Farisei)-- é criticado por considerar inimigos cristãos e não judeus ou muçulmanos). (6)   

            S.Pedro diz que se envergonha e se revolta contra o uso de sua “imagem nos sinetes/ de privilégios vendidos e falsos” (/.../ figura di sigillo/ a privilegi venduti e mendaci- v. 52-53).  E continua em sua crítica à Igreja, pedindo a intervenção divina:

In vesta di pastor lupi rapaci
si veggion di qua sù per tutti i paschi:
o difesa di Dio, perché pur giaci?    (v. 55-57)

Em vestes de pastor lobos vorazes/ se veem daqui de cima por todos os pastos:/ ó socorro divino, por que não ages?

L. Veneziano-  Martírio de S.Pedro
            S. Pedro, falando ainda em nome dos martirizados papas da Igreja primitiva (do “bom começo” da Igreja (buon principio- v.59), que decaiu a um “fim ignóbil” (vil fine- v.60), afirma que “Do nosso sangue Caorsinos e Gascões/ se preparam para beber” (Del sangue nostro Caorsini e Guaschi/ s’apparecchian di bere /.../- v.58-59), uma alusão aos papas futuros (com relação a 1300, mas já conhecidos por Dante na época da elaboração do “Paraíso”). Esses sucessores de Bonifácio VIII estavam sediados em Avignon, na França, um era natural da Gasconha (Clemente V)  e outro, de Cahors (João XXII).  S.Pedro confia na iminente intervenção da Providência, “que com Cipião/ assegurou a Roma a glória do mundo” (che con Scipio/ difese a Roma la gloria del mondo- v. 61-62). Essa menção a Cipião Africano, vencedor de Aníbal, o cartaginês, na II Guerra Púnica (7), tem por objetivo naturalmente lembrar a importância histórica de Roma, enaltecendo-a como sede do Império e principalmente do papado, em detrimento de Avignon. Por fim, S.Pedro conclui sua fala recomendando a Dante, que “ainda retornarás lá para baixo” (ancor giù tornerai /…/- v.65), dizer tudo o que lhe declarou.   
            Na sequência, Dante informa que as almas que ali estavam, no 8º céu, retornam para o Empíreo, passando pelo Primum Mobile (8). Isso ele diz utilizando esta comparação (em que a sonoridade dos versos originais se apoia na repetição de certos fonemas): como caem os flocos de neve “quando o corno/ da Cabra toca o Sol” (/.../ quando ‘l corno/ de la capra del ciel col sol si tocca-  v. 68-69), i.e, quando o Sol está na casa de Capricórnio entre 21 de dezembro e  21 de janeiro (inverno, no hemisfério Norte) (9), assim ele vê flocos que subiam,  em vez de descerem, “depois de estarem aqui conosco” (che fatto avien con noi quivi soggiorno- v.72). 
           
            Dante segue a ascensão de tais almas do 8º céu enquanto pode, após o que Beatriz lhe pede para baixar os olhos e ver quantos céus  ele já percorreu. Desde quando olhara para baixo a primeira vez (cf. Canto XXII), Dante vê “que atravessara todo o arco/ que faz do meio ao fim o primeiro clima” ( i’ vidi mosso me per tutto l’arco/ che fa dal mezzo al fine il primo clima- v. 80-81). “Clima” corresponde a um setor da  superfície do hemisfério Norte, a Terra então habitável, dividida pelos antigos geógrafos em sete setores horizontais, a partir do equador. O “arco” referido corresponde a 90º, um quarto da circunferência terrestre, metade da extensão de um clima. O primeiro clima, o mais próximo do equador, começava no meridiano do Ganges, tinha seu centro em Jerusalém e terminava no meridiano de Cádiz. Dante percebe que foi  transportado do meridiano de Jerusalém ao de Cádiz (10). Ele diz:

/.../ io vedea di là da Gade il varco
folle d’Ulisse, e di qua presso il lito
nel qual si fece Europa dolce carco  (v. 82-84)

/.../ eu via, além de Cádiz, a rota/ insensata de Ulisses, e de outro lado, quase via a praia/ na qual Europa tornou-se doce carga

ou seja, ele via, de um lado, o extremo-oeste do mundo então conhecido, onde Ulisses naufragou (conforme o episódio relatado no canto XXVI do “Inferno”), e de outro, quase podia ver o litoral da Fenícia, no extremo-leste do mar Mediterrâneo, onde Júpiter, de acordo com a mitologia clássica, transformou-se  em touro e carregou para Creta a ninfa Europa, por quem se apaixonara (11).  Mais dessa faixa de terra Dante teria visto, diz ele, “se o Sol não avançasse/ sob meus pés mais de um signo zodiacal” ( /.../ ma ‘l sol procedea/ sotto i mie’ piedi un segno e più partito- v. 86-87). Ou seja, o Sol está adiante de Dante, em Áries. O poeta está em Gêmeos. Entre os dois signos, situa-se Touro (12). 

            Dante retorna os olhos para Beatriz, para a sua “beleza divina que refulgiu/ quando me voltei para o rosto sorridente dela” ( ver’ lo piacer divin che mi refulse,/ quando mi volsi al suo viso ridente-  v. 95-96). Perto dessa beleza, diz o poeta, não é nada a da natureza (corpo humano) e da arte (pintura). 

E la virtù che lo sguardo m’indulse,
del bel nido di Leda mi divelse
e nel ciel velocissimo m’impulse.   (v. 97-99)

E o poder que seu olhar me concedeu/ me afastou do belo ninho de Leda/ e me lançou no céu mais veloz.

            Assim, pela força do olhar de Beatriz, Dante é elevado do 8º céu, o das Estrelas Fixas -- ou da constelação de Gêmeos -- para o “céu mais veloz”, o Primum Mobile, que impulsiona todos os outros. Dante chama a constelação de Gêmeos de “o belo ninho de Leda” porque, conforme a mitologia, Leda é mãe dos gêmeos Castor e Pólux, nascidos de um ovo, pois ela foi fecundada por Júpiter, transformado em cisne (13). 

            Dante não sabe dizer por onde entrou nesse 9º céu, pois suas partes, “vivíssimas e altíssimas” (vivissime ed eccelse- v. 100), são todas uniformes. Beatriz, percebendo o “desejo” (disire- v. 103) dele de saber mais sobre o lugar onde está, começa sua fala, que se estende do v. 106 até o 148, o último do Canto.

            Beatriz inicia referindo-se à “natureza do universo” (La natura del mondo, /.../- v. 106), “que mantém/ o centro parado e move todo o restante em torno”  (/.../ che quïeta/ il mezzo e tutto l’altro intorno move- v. 106-107). Tal movimento principia aqui, neste novo céu. Sua concepção assim é a ptolomaica, da ciência da época, em que a Terra ocupava o centro do universo e os astros giravam em torno dela.

            O Primum Mobile deriva da “mente divina na qual se acende/ tanto o amor que o faz girar quanto a força que ele chove” (/.../ la mente divina, in che s’accende/ l’amor che ‘l volge e la virtù ch’ei piove- v.110-111). Está contido no Empíreo, a residência de Deus: “Luz e amor o contêm/ assim como ele contém os outros céus” (Luce e amor d’un cerchio  lui compreende,/ sì come questo li altri; /.../- v.112-113).

            O poeta, curiosamente, ilustra essa determinação com a de uma operação matemática (5 x 2 = 10), como se vê na comparação abaixo:

Non è suo moto per altro distinto,
ma li altri son mensurati da questo,
sì come diece da mezzo e da quinto;  (v. 115-117)

Seu movimento não é determinado por outro céu,/ mas os outros o são por este,/ assim como a metade e o quinto determinam dez.

            Beatriz afirma ainda que “o tempo tem neste vaso/ suas raízes e nos outros, as folhas” (e come il tempo tegna  in cotal testo/ le sue radici e ne li altri le fronde- v. 118-119). Ou seja, o tempo, como a raiz de uma árvore, tem sua origem oculta neste céu (no Primum Mobile), enquanto os outros céus carregam suas “folhas”, i.e. os planetas e estrelas, observados por nós (14). Como sabemos, o tempo é função do movimento dos astros (15).

      Prosseguindo, Beatriz faz uma crítica violenta à cobiça dos seres humanos. Inicia identificando-a com o mar, nesta metáfora: 

Oh cupidigia, che i mortali affonde
sì sotto te, che nessuno ha podere
di trarre li occhi fuor de le tue onde!   (v. 121-123)

Ó cupidez, que os mortais tanto afundas/ em suas águas profundas de modo que nenhum tem o poder/ de erguer os olhos para fora das tuas ondas! 

            No início da vida, a vontade humana “bem floresce” (Ben fiorisce /.../- v. 124). “Mas a chuva constante (i.e. a influência perniciosa do meio) transforma/ em frutas estragadas as ameixas boas” (ma la pioggia continüa converte/ in bozzacchioni le sosine vere- v.125-126). Ocorre aqui, como se vê, uma nova incidência de imagens inspiradas pela flora. Em seguida, ela afirma: enquanto são meninos, possuem ”fidelidade e inocência” (Fede e innocenza -v. 127), mas depois, quando suas faces se cobrem de barba, essas características fogem deles. Cita ainda estes exemplos: no início, jejuam, depois devoram “qualquer alimento em qualquer lua” (poi divora /.../ qualunque  cibo per qualunque luna- v. 132-133), i.e. em qualquer época do ano, inclusive na Quaresma e outros dias de jejum (16).  No início, amam e escutam sua mãe, depois querem vê-la morta.
            Beatriz pede para Dante considerar “que na terra falta quem governe/ pelo que a família humana se extravia” (pensa che ’n terra non è chi governi;/ onde si svïa l’umana famiglia- v.140-141). O poeta reafirma aqui, pela voz de Beatriz, sua convicção de que esse mal decorre da vacância do papado, aos olhos de Cristo, e da falta de um imperador, quanto aos assuntos temporais (17).
            Beatriz conclui sua fala (e o Canto) utilizando um recurso de retórica. Ela expressa a esperança na intervenção divina “antes que janeiro desinverne” (Ma prima che gennaio tutto si sverni- v. 142), i.e. antes que janeiro (no hemisfério Norte) deixe a estação do inverno e passe para a primavera, a persistir o erro do calendário juliano então em vigor, estimado na centésima parte de um dia (“pela centésima parte do dia negligenciada lá embaixo”: per la centesma ch’ è là giù negletta- v. 143) (esse erro seria corrigido mais tarde, em 1582, pelo calendário gregoriano) (18).
            Assim, “antes que janeiro desinverne”, diz ela, virá uma “tempestade” (fortuna- v. 145; essa tradução, segundo Hollander, está de acordo com o   sentido medieval da palavra) (19) “que voltará as popas para onde estão as proas/ de modo que a frota correrá na direção correta;/ e o bom fruto virá depois da flor” (le poppe volgerà u’ son le prore,/ sì che la classe correrà diretta;/ e vero frutto verrà dopo ‘l fiore- v. 146-148).  Desse modo, com a intervenção divina suprindo aquela necessidade de um bom governo, a “frota” (classe- v.147) -- metáfora da humanidade ou da “família humana” mencionada no v. 141 -- avançará na boa direção.  


NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.408. 

(2) Id. ib, p. 408. 

(3) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p.324.

(4) LONGNON, Henri- “La Divine Comédie”. Traduction, préface, notes et commentaires par Henri Longnon. Paris: Garnier, 1951, p. 684.

(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 409.   

(6) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum, Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books, 1982- p. 383; SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.  Penguin Books, 1971, p.298.   

(7) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p 325.

(8) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”, op cit, p. 298. .

(9) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 409.

(10) LONGNON, Henri- “La Divine Comédie”. Traduction, préface, notes et commentaires par Henri Longnon. Paris: Garnier, 1951, p. 685.

(11) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p 326.

(12) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi.  New American Library, 2003, p. 629.  Para a identificação de Beatriz com a Verdade Revelada, p. 840.

(13) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 410.   

(14) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”, op cit, p. 840-841.

(15) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 410.   

(16) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”, op cit, p. 841.

(17) LONGNON, Henri- “La Divine Comédie”. Traduction, préface, notes et commentaires par Henri Longnon. Paris: Garnier, 1951, p. 686.

(18) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 410.  

(19) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p. 678. MANDELBAUM, op cit, p. 249, traduz “fortuna” por “Providência”.
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-Para ouvir o Canto XXVII:

https://www.youtube.com/watch?v=FMqSjGkUSjY

(acessado em 13.10.20)