PARAÍSO
Canto XXVIII
Concluída a fala de Beatriz, Dante,
que olhou os “belos olhos” (belli occhi- v. 11) dela, “onde Amor fez o laço que me prendeu” (onde a pigliarmi fece
Amor la corda- v. 12), faz esta comparação: “como vê no espelho a chama
de uma tocha/ aquele que por ela é iluminado por trás” (come in lo specchio
fiamma di doppiero/ vede colui che se n’alluma retro- v. 4-5), “e se volta para ver se o espelho/ lhe diz a verdade” (e sé rivolge per
veder se ‘l vetro/ li dice il vero, /.../- v.7-8), ele também se voltou para ver o que os olhos de
Beatriz refletiam. E ele vê “um ponto
de luz tão penetrante” (un punto vidi che raggiava lume/ acuto sì,
/.../- v.16-7) que os
olhos de quem o contempla “teriam de se
fechar pelo fulgor intenso” (chiuder conviensi per lo forte acume- v. 18). Prossegue, afirmando que “qualquer estrela, que da Terra parece a
menor,/ pareceria (do tamanho de) a
Lua, comparada àquele ponto” (e quale stella par quinci più poca/ parebbe
luna, locata con esso- v. 19-20). Esse ponto simboliza Deus, segundo os
comentadores. Um deles (Sapegno) assim escreve a respeito: “O ponto matemático,
que se concebe privado de dimensões, indivisível e material, é símbolo
apropriado de Deus” (1).
Gelrev Ongibco |
Dante observa que em torno daquele ponto minúsculo de intensa luminosidade girava um “círculo de fogo” (un cerchio d’ igne- v. 25), mais rápido do que “o movimento que mais velozmente o universo cinge” (quel moto che più
tosto il mondo cigne- v. 27),
i.e. o do Primum Mobile. A proximidade desse círculo é expressa pelo poeta
comparando-a com a da distância de um halo em relação à fonte de luz que o origina
“quando o vapor que o forma é mais
espesso” (quando ‘l vapor che
‘l porta più è spesso- v. 24),
o que indica essa maior proximidade. Assim, tal “círculo de fogo” é o mais próximo do ponto que simboliza a
divindade. Ele “tinha a chama mais
resplandecente” (e
quello avea la fiamma più sincera-v.37),
pois, crê Dante, “mais penetra na verdade
desse ponto” (/.../
però che più di lei s’invera- v. 39)
(como se verá adiante, esse é o círculo dos Serafins, que estão no topo da
hierarquia angélica). Outros oito círculos se sucedem (o segundo envolvendo o
primeiro, o terceiro envolvendo o segundo e assim por diante) cada vez mais
distantes do ponto luminoso e cada um menos rápido que o anterior (a
velocidade, como se vê, é um indicador da distância de cada um em relação a
Deus). Ao referir-se ao sétimo círculo, Dante faz referência à mitologia
clássica (à esposa de Júpiter), dizendo que ele é tão amplo que “o mensageiro de Juno” (‘l messo di Iuno- v.
32), Íris, ou o
arco-íris, “seria estreito demais para
contê-lo” (v. 33).
O Primeiro Motor- Rafael Sanzio |
Beatriz, ao ver Dante “absorto pelo desejo de saber” (/.../ che mi vedëa in
cura/ forte sospeso, /.../ v. 40-41),
então se manifesta. Afirma que “Daquele
ponto/ depende o céu e toda a natureza” (/.../ Da quel punto/ depende il cielo
e tutta la natura.- v.41-2).
Esse ponto é associado pelos comentaristas à ideia do “primeiro motor” de
Aristóteles, desenvolvida por Tomás de Aquino (2). Beatriz afirma também que a velocidade
do círculo mais próximo do ponto é causada “pelo
ardente amor que o estimula” (per l’affocato amore ond’ elli è punto.- v.45), vale dizer, o amor dos Serafins por
Deus.
Serafins (séc. XIV) |
Dante está intrigado com a disparidade
entre o mundo espiritual dos círculos de fogo que ele vê, ali no Primum Mobile,
em torno do ponto – “uma manifestação visual das nove ordens das Inteligências Angélicas”,
conforme nota à tradução de Mandelbaum (3) -- e o mundo material das nove
esferas físicas do universo em torno da Terra. Neste último caso, os céus são “tanto mais divinos” (/.../ tanto più
divine,- v. 50) (mais
rápidos, com mais amor a Deus) “quanto
mais distantes do centro eles estão” (quant’elle son dal centro più remote- v. 51), o inverso do que ocorre, no
primeiro caso, quanto aos círculos de fogo em relação ao ponto. Assim, Dante quer saber porque há essa
disparidade entre o “modelo” (l’essemplare- v.56) (o mundo espiritual) e a “cópia” (l’essemplo- v.55) (o mundo material). Antes, ele se
referiu ao Primum Mobile (onde está, nesse momento de seu relato) assim: “neste
admirável e angélico templo/ que só amor
e luz tem por fronteiras” (in questo miro e angelico templo/ che solo amore e luce ha
per confine,- v. 53-54), amor e luz proveniente do Empíreo, a
morada de Deus, do qual está mais próximo, dentre as esferas do mundo material.
Beatriz volta então a falar. Ela
tranquiliza Dante nestes termos:
“Se li tuoi diti non sono a tal nodo
sufficïenti, non è maraviglia:
tanto, per non tentare, è fato sodo!” (v. 58-60).
“Se
teus dedos não são capazes / de desfazer tal nó, não te admires:/ por não o
tentarem, esse nó ficou tão apertado”.
A metáfora do nó relaciona-se à
correspondência entre o mundo espiritual e o material (4). Beatriz, na sequência, procura esclarecer
Dante a respeito dessa questão.
As esferas corpóreas (ou materiais),
diz ela, são mais amplas ou menos em função da sua maior ou menor força. A
esfera que tem maior força produz maior bem; a de maior corpo contém um bem
maior.
Dunque costui che tutto quanto rape
l’altro universo seco , corrisponde
al cerchio che più ama e che più sape: (v.70-72)
E assim
esta esfera, que arrebata/ todo o restante do universo, corresponde/ ao círculo
que mais ama e mais sabe:
Em outros termos, a esfera (mais
ampla) em que estão, i.e. o Primum Mobile, que move as outras esferas,
corresponde ao círculo de fogo (menos amplo) mais próximo do ponto. Aí se
concentra maior amor e conhecimento.
Beatriz diz a Dante que seu “metro” (la tua misura- v. 73) deve ser a força e não a aparência
(a amplitude da esfera e círculo, por exemplo). Só assim “tu verás a maravilhosa concordância” (tu vederai mirabil
consequenza- v. 76) “entre cada esfera e sua inteligência” (in ciascun cielo, a
süa intelligenza- v.78),
vale dizer, existe uma correspondência entre as nove esferas (ou céus)
materiais e as nove ordens (ou inteligências) angelicais arroladas abaixo (o
Primum Mobile corresponde aos Serafins, o oitavo céu aos Querubins etc).
Referindo-se a Bóreas -- a mítica
personificação dos três ventos do Norte (5) – Dante compara a sua situação
emocional com a nossa “atmosfera” (l’emisperio de l’aere- v.80) depois que tal personagem soprou
sobre a Terra, pela sua bochecha mais suave, limpando o céu, tornando a
atmosfera “esplendorosa e serena” (splendido e sereno- v.
79), o modo como ele
então se sente, depois de ouvir a explicação que Beatriz acaba de fazer.
Na sequência, os membros de cada uma
das ordens angelicais, em seus círculos próprios, são comparados a faíscas, que
dessa forma se mostram para expressar o seu regozijo pela correta explicação
de Beatriz (6). E o número de faíscas (anjos) é imenso. Sua magnitude é
ilustrada por Dante com a menção a uma antiga lenda relativa ao jogo de xadrez.
O rei da Pérsia, agradecido, pediu ao inventor do jogo que formulasse um desejo.
O inventor então lhe disse que ele poderia retribuir em grãos de milho, da
maneira seguinte: 1 grão de milho na primeira casa do tabuleiro, 2 na segunda,
4 na terceira e assim sucessivamente, até a 64ª. casa. A soma dos termos dessa
progressão geométrica resultava em um
número elevadíssimo de grãos, que não podia ser atendido nem com toda a
produção de milho do reino. Esse número, todavia, era inferior ao número de
faíscas presentes nesses círculos (7). Como dizem os versos:
E poi che le parole sue restaro,
non altrimenti ferro disfavilla
che bolle, come i cerchi sfavillaro.
L’incendio suo seguiva ogne scintilla;
ed eran tante, che ‘l numero loro
più che ‘l doppiar de li scacchi s’inmilla. (v. 88-93)
E após
cessarem suas palavras/ como ferro incandescente que lança faíscas/ assim
aqueles círculos faiscaram;
e todas
as faíscas giravam com seu círculo flamejante;/ eram tantas que o seu número/
superava a soma obtida ao dobrarem-se sucessivamente as casas do tabuleiro de
xadrez.
Dante prossegue dizendo que todos os
coros angélicos presentes nos círculos de fogo cantavam “Hosana” (v.94) ao ponto
fixo em torno do qual giravam.
Gustave Doré |
Do v. 97 em diante, até o final do
Canto, é Beatriz quem fala. Ela, “que via
os pensamentos cheios de dúvidas” (E quella che vedëa i
pensier dubi- v. 97) de
Dante (refletidos na mente de Deus), explica para ele como se compõe a
hierarquia dos anjos.
O primeiro nível dessa hierarquia é
formado por três ordens angelicais: Serafins, Querubins e Tronos. Os Serafins e
Querubins, a “corte mais próxima de Deus” (8), são tomados pelo desejo “de assemelhar-se ao ponto tanto quanto
possam/ e tanto podem, quanto mais elevada seja sua visão” ( per somigliarsi al
punto quanto ponno; / e posson quanto a veder son soblimi.- v. 101-2). Os Tronos (v.104), que estão na
base dessa corte, circulando em volta das duas primeiras ordens, completam o primeira
tríade.
Beatriz afirma que “todas” (tutti- v. 106)
as ordens angélicas (são nove ao todo, divididas em três tríades)
que movimentam as nove esferas do universo (havendo uma correspondência entre
aquelas e estas) (9) “se deleitam” (hanno diletto- v. 106) ali, no Primum Mobile, “na medida em que se aprofunda sua visão/ na
verdade que sacia todo intelecto” (quanto la sua veduta si profonda/ nel vero in
che si queta ogne intelletto- v. 107-8).
Conforme um comentarista, “A beatitude das Inteligências Angélicas é
proporcional à profundidade de sua visão de Deus” Segundo a mesma fonte (10), Dante opta por S. Tomás
d’Aquino e os dominicanos na disputa desta concepção com a
agostiniana-franciscana, ao afirmar que “a
beatitude se funda no ato de ver,/ não no ato de amar, que vem depois” (/.../ come si fonda/
l’esser beato ne l’atto che vede,/ non inquel ch’ ama, che poscia seconda;- v.109-111). Quer dizer, ele prioriza o ato de
conhecer Deus, um ato do intelecto, que depois é seguido pelo ato de amá-Lo, um
ato de vontade, decorrente do primeiro. Em suma, para amar é preciso primeiro
conhecer.
Na sequência, Beatriz diz que a
visão de Deus depende do “mérito” (mercede- v.112), “que a graça e o desejo do bem geram” (che grazia partorisce
e buona voglia:- v.113).
Ela trata, a seguir, da “segunda tríade” (l’altro ternaro- v.
115), “que floresce/ nesta primavera eterna/ que
Áries noturno não desfolha” (/.../ che così germoglia/ in questa primavera sempiterna/
che notturno Arïete non dispoglia,- v.115-7). Assim, essa tríade, como as outras
duas, integram a “primavera eterna”
ou o Primum Mobile. Além disso, deve-se notar nessa passagem a menção a duas
estações do ano, uma, direta, a primavera, e outra, indireta, o outono, que
substitui “Áries noturno”. Nessa estação
do ano, quando as folhas aqui caem, a constelação de Áries só aparece no céu à
noite, depois que o Sol se põe (11). Beatriz
prossegue dizendo que a segunda tríade -- formada pelas ordens angélicas
denominadas Dominações, Virtudes e Potestades (v. 122-3) -- perpetuamente canta
“Hosana” com três melodias.
Beatriz menciona, por fim, as ordens
que compõem a terceira tríade: Principados, Arcanjos e Anjos (v. 125-6).
Todas as nove ordens angélicas voltam-se
para o alto, em êxtase. “Todas são
atraídas e todas atraem para Deus” (/.../ verso Dio/ tutti tirati sono e tutti
tirano- v. 128-9).
Nos últimos versos do Canto, Beatriz
afirma que a hierarquia de anjos por ela exposta é a de Dionísio (v.130-132). Segundo
informam os comentaristas (12), trata-se de Dionísio, o Areopagita, convertido
por S. Paulo e martirizado em Atenas no ano 95. Mas a obra famosa sobre a
hierarquia angélica atribuída a ele é, na realidade, dos séculos V e VI. Dante,
porém, o considera como a mesma pessoa. Também se menciona, nesses versos,
Gregório (v. 133), ou seja, S. Gregório Magno, que divergiu de Dionísio nessa
questão da hierarquia dos anjos. No entanto, depois que morreu, ou como dizem
os versos, “mas tão logo abriu os olhos/
neste céu (por esse erro) de si mesmo
riu” (onde,
sì tosto come li occhi aperse/ in questo ciel, di sé medesmo rise- v. 134-5).
Finalmente, os versos dizem que não
devemos nos admirar se um mortal (Dionísio) divulgou essa verdade na Terra, “pois quem a viu aqui em cima a revelou para
ele” (ché
chi ‘l vide qua sù gliel discoperse- v. 138), uma menção indireta a S. Paulo, que segundo a Bíblia foi
arrebatado uma vez ao Paraíso (2 Cor.12:2-4) (13).
NOTAS
(1) Apud MOURA, Vasco Graça—“Dante Alighieri-
A Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. S.Paulo:
Landmark, 2005- p. 839, nota.
(2) SAYERS,
Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”.
Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds. Penguin Books, 1971, p. 306; HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante
Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander.
Introduction & Notes by Robert Hollander.
Doubleday, 2007, p. 696.
(3) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony
Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam
Books, 1986- p.412.
(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of
Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 412.
(5) Id. ib., p. 412-3.
(6) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated
with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986,
p.337.
(7) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 413.
(8) Id. ib., p. 414.
(9) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”,
op cit, p. 699.
(10) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p.414.
(11) Id. ib., p. 414.
(12) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante:
The Divine Comedy 3- Paradise”, op cit, p. 308. Sobre o autor de “De Coelesti Hierarchia”
ver também
(13) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 415.
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-Para ouvir o Canto XXVIII:
(acessado em 14.10.20)