PARAÍSO
Canto XXVI
Dante não está podendo enxergar por
ter olhado fixamente para a chama em que se apresenta S. João Evangelista. Dessa
chama sai uma voz que o tranquiliza um pouco ao afirmar que enquanto não
recupera a visão, ele deve dizer —“para onde
tende/ a alma tua” ( /.../
e dì ove s’appunta/ l’anima tua /.../- v. 7-8). S. João começa agora a examiná-lo quanto à caridade
(ou amor) assim como S.Pedro o examinara quanto à fé e S.Tiago, sobre a
esperança.
Amos Nattini |
A voz afirma que “tua vista está confusa mas não morta” (la vista in te
smarrita e non defunta- v. 9),
pois a dama que o conduz (Beatriz) naquela região “tem no olhar/ a virtude que teve a mão de Ananias” ( /.../ ha ne lo
sguardo/ la virtù ch’ebbe la man d’Anania”- v. 11-12), o personagem bíblico que curou a
cegueira de S. Paulo após o episódio extraordinário ocorrido em seu caminho
para Damasco, conforme Atos dos
Apóstolos IX, 17 (1)
Dante quer que tal remédio a seus
olhos venha quando aprouver a ela, Beatriz. Os olhos dele são comparados a “portas” (porte- v. 14) de seu coração, “quando ela entrou com o fogo em que eu sempre ardo” (quand’ ella entrò col
foco ond’ io sempr’ ardo- v.15),
vale dizer, o fogo do amor (2). Afirma que o bem (v. 16), ou seja Deus, é o alfa e ômega de
tudo o que o amor, nas escrituras, lhe ensina. É o destino de todo o seu amor.
S.João Evangelista |
Aquela mesma voz volta a se
manifestar. Dante deve tornar mais claro seu pensamento, torná-lo mais preciso.
Em seguida, pergunta “o que levou teu
arco a mirar tal alvo” (chi drizzò l’ arco tuo a tal berzaglio- v. 24),
i.e. o que fez com que seu amor se dirigisse para Deus. Dante lhe responde:
/.../ Per filosofici argomenti
e per autorità che quinci scende
cotale amor convien che in me si’ mprenti (v.25-27)
/.../ Por
argumentos filosóficos/ e pela autoridade que desce daqui/ tal amor imprimiu-se
em mim”.
Assim, sua convicção baseia-se tanto
na razão quanto na revelação, expressa nas Escrituras Sagradas (3).
Como acentua um comentarista (4), os
próximos tercetos contêm um caráter silogístico. O bem “acende amor” (accende amore- v.29),
tanto maior este quanto maior é aquele. Deus é a “Essência” (l’essenza-
v.31) da bondade,
superior a qualquer bem que se encontra fora dela (que “não é mais do que um brilho de seus raios”: altro non è ch’ un
lume di suo raggio- v. 33).
Logo, a mente, amando, deve mover-se para Deus. À Essência “/.../ convém que se mova/ a mente, amando,
de cada um que divise/ a verdade /.../” (/.../ convien che si mova/ la mente,
amando, di ciascun che cerne/ il vero /.../- v. 34-36).
Tal verdade, diz o poeta, lhe foi
evidenciada por “aquele que me demonstrou
o primeiro amor/ de todas as substâncias eternas” (colui che mi dimostra
il primo amore/ di tutte le sustanze sempiterne- v.38-39), uma referência provável a
Aristóteles e à sua concepção do “primeiro motor” (Deus) que move todas as
coisas. Assim, é por amor a Ele que as esferas celestes giram (5).
Também lhe foi apontada pela voz de
Deus (o “Autor veraz”: verace autore- v. 40) quando disse a Moisés –“Eu te mostrarei todo o bem” (“Io te farò vedere
ogne valore”- v.42) (Êxodus,
33-18:23), e por ele mesmo, S. João, quando trata de Deus em seu Evangelho, ao iniciar
“o alto anúncio que apregoa o arcano” (l’alto preconio che grida l’ arcano- v.
44).
Em seguida, o Santo reconhece que o
amor soberano de Dante -- baseado na razão e na revelação, ou, como diz, no “intelecto humano” (intelletto umano-v.46) e na “autoridade com ele concorde” (autoritadi a lui concorde- v. 47) (as Escrituras) -- volta-se para
Deus. Depois, formula a Dante outra
questão:
Ma dì ancor se tu senti altre corde
tirarti verso lui, sì che tu suone
com quanti denti questo amor ti morde. (v.49-51)
Mas
diz-me ainda se sentes outras cordas/ puxarem-te para Ele, de modo que tu exprimas/
com quantos dentes este amor te morde.
Dante diz que entende a intenção da “águia de Cristo” (l’aguglia di Cristo- v.53), que seria explicitar mais o papel
do amor em conduzi-lo à compreensão do que importa (6). A propósito dessa
expressão, os comentaristas assinalam que em Apocalipse, 4:6-7 quatro animais
são mencionados como símbolos dos evangelistas: o leão (S. Marcos), o touro (S.
Lucas), um animal com rosto humano (S. Mateus) e a águia (S. João). A imagem
quanto a este último santo se justifica porque demonstrou ter “uma visão
aguçada do mistério celeste” (7).
Dante então enumera os fatores (as “mordidas”: Tutti quei morsi - v.
55) que o fizeram
voltar-se para Deus, ou seja, que “me
tiraram do mar do amor distorcido/ e me puseram na praia do amor certo” (tratto m’hanno del
mar de l’amor torto,/ e del diritto m’han posto a la riva- v.62-3): a existência do mundo e dele
próprio (a criação), o sacrifício de Cristo “para que eu viva” (/.../ perch’io viva- v. 59) (a redenção da humanidade), a esperança dada aos “que têm fé como eu” ( /.../ ogne fedel
com’io- v.60) (a salvação
prometida), além do “conhecimento vivo”
( /.../
conoscenza viva- v. 61)
já mencionado (o de que Deus é o supremo bem e deve ser amado sobre todas as
coisas) (8).
Após Dante concluir sua fala, o céu mostra
sua aprovação e júbilo ao que disse, pois ressoou ali “um dulcíssimo canto” (v.67) ( /.../ un
dolcissimo canto- v.67), iniciado por “Santo, santo, santo” (v.69),
do qual participaram Beatriz e todos os bem-aventurados.
Em seguida, Dante afirma que recuperou
sua visão, passando a ver “melhor do que
antes” (onde
mei che dinanzi vidi poi- v. 78),
pois “dos olhos meus toda impureza/ tirou
Beatriz com os raios dos seus” ( /.../ de li occhi miei ogne quisquilia/ fugò
Beatrice col raggio d’i suoi- v. 76-7).
O poeta se compara aqui a alguém que é despertado por uma luz intensa, e de
início nada distingue, “até que a
reflexão o ajude” (fin
che la stimativa non socorre- v.75).
Percebe então um “quarto lume” (v.81) entre eles. Ao ser
indagada sobre esse fato, Beatriz lhe responde tratar-se da “primeira alma/ que o Primeiro Poder havia
criado” (/.../
l’anima prima/ che la prima virtù creasse mai- v. 83-4), ou seja, a alma de Adão. Os outros três lumes correspondem naturalmente
aos três apóstolos, que representam as três virtudes teologais—fé, esperança e
caridade (amor), graças concedidas à humanidade por Deus, através de
Cristo. Esse é o caminho para a
salvação, fechado para os homens após a expulsão de Adão do Paraíso (9).
Novamente, segue-se uma comparação. “Como a árvore que inclina sua copa/ à
passagem do vento, e depois a ergue” (Come la fronda che flette la cima/ nel
transito del vento, /.../- v. 85-86),
assim é ele, retraído quando Beatriz fala, recobrando depois “a confiança/ por um ardente desejo de falar”
(/.../ e
poi mi rifece sicuro/ um disio di parlare ond’ ïo ardeva- v. 90-1).
Peter Paul Rubens- Paraíso Terrestre com a Queda de Adão e Eva, 1615 |
E Dante fala. Pede que Adão --
chamado de “pai antigo” (padre antico- v.92) e “único fruto a surgir já maduro” ( /.../ pomo che maturo/solo prodotto
fosti /.../- v. 91-2), “de quem qualquer esposa é filha e nora”
(a cui
ciascuna sposa è figlia e nuro- v. 93)
-- sacie sua curiosidade. E para que não demore, não vai nem formular as suas
perguntas, pois ele já sabe a que se referem (pois os bem-aventurados podem ler
o pensamento de Dante refletido na mente de Deus, o “Veraz Espelho” mencionado abaixo).
Antes de falar, a “alma primeira/ revelava pela tremulação de
seu manto luminoso/ quanto vinha alegre a comprazer-me” (/.../ l’anima
primaia/ mi facea trasparer per la coverta/ quant’ella a compiacermi venìa
gaia- v. 100-102). O
poeta compara essa tremulação ao de um pano, que também revela os sentimentos
do animal quando este se agita debaixo dele.
Adão então diz que sabe o que ele
quer, pois vê o seu desejo no “Veraz
Espelho” (verace
speglio- v. 106), Deus, “que reflete tudo o mais/ enquanto nenhum
pode refleti-lo” (che
fa di sé pareglio a l’altre cose,/ e nulla face lui di sé pareglio- v.107-108).
Dirigindo-se a si mesmo, Adão formula
as perguntas que Dante lhe faria: 1) “quanto
tempo faz que Deus me pôs/ no excelso jardim” ( /.../ quant’ è che
Dio mi puose/ ne l’eccelso giardino- v. 109-110), i.e, quando ele foi criado e posto no jardim do Éden; 2) “quanto
tempo deleitaram-se os meus olhos” ( e quanto fu diletto a li occhi miei- v. 112), ou quanto tempo ele permaneceu lá; 3) “qual foi a verdadeira causa da grande ira”
(e la
propria cagion del gran disdegno- v. 113),
ou da ira divina, que motivou sua expulsão do Paraíso Terrestre e 4) “qual o idioma que usei e criei”, ou seja, com que linguagem se
comunicou inicialmente.
Masaccio- Expulsão de Adão e Eva |
Nosso “pai antigo” começa a responder pela terceira
questão. Afirma que a causa não foi
provar o fruto da árvore “mas somente a transgressão
de um limite” (ma
solamente il trapassar del segno- v.117),
i.e, o pecado da desobediência e também do orgulho, pois ele quis ser
semelhante a Deus, conhecendo o bem e o mal (10). Responde em seguida à primeira
questão: permaneceu no Limbo (“De onde
tua dama fez sair Virgílio”: Quindi onde mosse tua donna Virgilio- v.118) 4.302 anos (4.302 “retornos do sol”: volumi/ di sol- v.119-120). Antes disso, viveu na terra 930 anos, pois viu “o sol voltar a todos os lumes/ de sua
estrada /.../” ( e
vidi lui tornare a tutt’ i lumi/ de la sua strada /.../- v.121-122) (o Zodíaco) tal número de vezes. Assim,
considerando-se que a ação do poema transcorre em 1.300 d.C., e que Cristo após
sua morte desceu aos Infernos em 34 d.C. e retirou do Limbo, dentre outros, Adão,
este foi criado há 6.498 anos em relação ao ano em que se passa o poema, ou em 5.198 a. C. Relativamente à segunda questão, foi dito
que Adão viveu 930 anos (cf. a Bíblia, Gen. V,5), mas não se menciona aqui o
tempo que passou no jardim do Éden, de onde foi expulso (isso será respondido
apenas nos últimos versos deste Canto). A última
questão trata da língua que Adão então falou. Ele diz que ela já era morta
antes que “a gente de Nemrod” (la gente di Nembròt- v.126), rei dos babilônios, se dedicasse “à obra inacabável” (a l’ovra
inconsummabile- v. 125), vale dizer, à Torre de Babel. Ele
acha natural que se altere o modo de falar ao longo do tempo, “pois nenhum produto da razão” ( ché nullo effetto mai
razïonabile- v. 127)
“/.../ dura para sempre” (/.../ sempre fu durabile-
v. 129). Dá como exemplo
a alteração do nome do “Sumo Bem” (sommo bene- v. 134) (Deus), que se chamava “I” quando
ele vivia na terra e depois passou a se chamar “El” (o “I” é a letra romana que
designa a unidade; o “El” é um dos nomes de Deus em hebraico) (11). Essas
alterações da linguagem, ou “os usos dos
mortais são como folhas/ no ramo, uma vai e outra vem” (ché l’uso d’i mortali
è come fronda/ in ramo che sem va e altra vene-
v. 137-8). Essa é
a última comparação feita no Canto, que termina com Adão completando sua
resposta à segunda questão. Ele afirma que “No
monte que mais se ergue do mar” (Nel monte che si leva più da l’onda- v.139), no monte do Purgatório, esteve no Paraíso
Terrestre (situado em seu topo) “da
primeira hora até aquela que segue/ a sexta, quando o sol muda de quadrante”
(de la
prim’ ora a quella che seconda,/ come ‘l sol muta quadra, l’ ora sesta- v.141-142), ou seja, permaneceu no Jardim do
Éden desde as 6h até 1h da tarde, após o Sol já ter passado do primeiro
quadrante, concluído ao meio-dia, correspondente a um quarto da sua jornada
diária.
NOTAS
(1) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The
Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara
Reynolds. Penguin Books, 1971, p.
287.
(2) Id. ib, p. 403.
(3) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated
with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986,
p.312.
(4) MERLO, Luis Martínez de—
“Dante Aligghieri- Divina comedia”. Traducción y notas de Luis Martínez de
Merlo. 14a. ed. Madrid: Ediciones Cátedra, 2012, p. 690.
(5) Id. ib, p. 691. Cf também HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante
Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander.
Introduction & Notes by Robert Hollander.
Doubleday, 2007, p. 640-1.
(6) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p.626.
(7) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony
Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam
Books, 1986- p.404.
(8) Id. ib, p. 405.
(9) Id. ib, p. 406.
(10) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op
cit, p 316. Cf também
SAYERS,
Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”, op
cit, p. 289.
(11) MOURA, Vasco Graça—“Dante Alighieri- A
Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. S.Paulo:
Landmark, 2005- p. 827. Cf também MERLO, Luis Martínez de— “Dante Aligghieri-
Divina comedia”, op cit, p 695.
------------------------------------
-Para ouvir o Canto XXVI:
https://www.youtube.com/watch?v=R7FrXJCxWd8&t=23s