terça-feira, 17 de setembro de 2019

CANTO XXIII



PARAÍSO


Canto XXIII


            Nos primeiros doze versos desse Canto, Dante compara Beatriz -- que olha para um ponto no alto do 8º céu, o céu das Estrelas Fixas, onde eles estão, correspondente ao zênite do universo (1) -- com uma ave que aguarda o alvorecer e, se antecipando a este, vai buscar alimentos para seus filhotes. Dante, em situação equivalente à deles, também aguarda ser alimentado espiritualmente.

            Então, esse céu se torna cada vez mais claro. E Beatriz mostra as almas dos habitantes do Paraíso, que Dante encontrou nos diversos céus inferiores por que passou, dizendo a ele:

/.../ “Ecco le schiere
del trïunfo di Cristo e tutto ‘l frutto
ricolto del girar di queste spere!”    (v. 19-21)

/.../ “Eis as fileiras/ do triunfo de Cristo, e todo o fruto/ colhido do girar dessas esferas”.

Dante nota que o rosto dela se enche de alegria ao constatar isso.

            Segue-se uma nova comparação, a de um sol sobre mil luzes” (/.../ sopra migliaia di lucerne/ un sol /.../- v. 28-29com Trívia (outro nome de Diana, a Lua), nas noites de plenilúnio, sorrindo entre as ninfas (as estrelas).  Esse sol é Cristo, e as luzes mencionadas, acesas por ele, são as almas que descem ao 8º céu (as almas bem-aventuradas residem permanentemente acima, junto a Deus, mas se apresentaram temporariamente, conforme suas características terrenas, nas esferas inferiores à oitava, visitadas por Dante). O sol “todas elas acendia/ como faz o nosso com as estrelas” (un sol che tutte quante l’accendea,/ come fa ‘l nostro le viste superne- v. 29-30) (de acordo com a ciência medieval, o Sol era responsável pela luz das estrelas) (2). O poeta não consegue contemplar  esse sol:

e per la viva luce trasparea
la lucente sustanza tanto chiara
nel viso mio, che non la sostenea     (v.31-33)

e pela viva luz transparecia/ a fulgurante Substância tão intensa/ que minha vista não podia suportá-la.

            Dante usa aqui a categoria “substância”, da filosofia escolástica, que se contrapõe à “acidente”, a primeira denotando aquilo que tem existência separada e a outra referindo-se à qualidade existente numa substância (3).  

            O poeta então transcreve as palavras que lhe dirige Beatriz a respeito dessa Substância que o ofusca. Trata-se de Cristo, que não é citado nominalmente, mas identificado por seus atributos. Diz Beatriz: :

/.../ “Quel che ti sobranza
è virtu da cui nulla si ripara.

Quivi è la sapïenza e la possanza
ch’apri le strade tra ‘l cielo e la terra,
onde fu già sì lunga disïanza.”       (v. 35-39)

O que te ofusca/ é virtude a que ninguém resiste.
 Ali estão a sabedoria e a potência/ que abriram as estradas entre o céu e a terra,/ desejadas há tanto tempo”.    

            Na sequência, ocorre mais uma comparação, a do fogo (raio) -- que cai do céu depois de dilatar-se muito e não poder ser contido em sua nuvem -- com a mente de Dante, que após ser nutrida por “aquele alimento espiritual” (quelle dape- v. 43), também se expande muito, “saindo de si mesma” (di sé stessa uscìo- v. 44), de modo que ele “não consegue recordar o que se fez” (e che si fesse rimembrar non sape- v. 45).   


Cristo- mosaico bizantino do séc.XII 

            Beatriz também diz a Dante que, após o sucedido (“o triunfo de Cristo”) (4), seus olhos poderão ver agora como ela é; poderão sustentar a visão de seu sorriso (o que não foi possível antes, no céu de Saturno- cf. Canto XXI, v.4-12).

            Dante, ouvindo essa oferta, afirma que sua gratidão “jamais há de apagar-se/ do livro que registra o pretérito” ( /.../ che mai non si stingue/ del libro che ‘l preterito rassegna- v. 53-54), metáfora da sua memória (5). Porém, um pouco antes ele se comparou a uma pessoa que sonhou, esqueceu da visão sonhada (= a visão de Cristo) (6) , “e se esforça/ em vão para trazê-la de volta à mente” ( /.../ e che s’ingegna/ indarno di ridurlasi a la mente- v.50-51).  

            A seguir, Dante menciona “aquelas línguas” (quelle lingue- v.55) que as musas Polimnia e suas irmãs “fizeram/ com seu leite dulcíssimo as mais ricas (/.../ fero/ del latte lor dolcissimo più pingue- v. 56-57), ou seja, os grandes poetas. Mesmo que estes o ajudassem “no canto do santo riso” (cantando il santo riso-v. 59), ele afirma que não se alcançaria nem a “milésima parte da verdade (millesmo del vero- v. 58), na descrição dele (o riso de Beatriz, segundo um comentarista, é uma alegoria da revelação) (7).

            O poeta então refere-se ao seu próprio “sacro poema” (sacrato poema- v.62) e ao “pesado tema” (ponderoso tema- v. 64) dele, sustentado pelo seu “ombro mortal” (omero mortal- v. 65), passível de tremer com a tarefa.  Tal tema

non è pareggio da picciola barca
quel che fendendo va l’ardita prora,
né da nocchier ch’ a sé medesmo parca    (v. 67-69)

não é viagem para pequena barca—/ o mar que minha audaciosa proa fende--/ nem para um timoneiro que se poupa a si mesmo.

            Nos versos seguintes, Beatriz pergunta a Dante -- que  só se dedica a contemplá-la -- por que ele não se volta para o “belo jardim/ que floresce debaixo dos raios de Cristo?” (/.../ al bel giardino/ che sotto i raggi di Cristo s’infiora?- v. 71-72). Para Sayers et al., Beatriz, com essa observação, quer enfatizar aqui a Dante que a verdade de Deus não é encontrada só na verdade abstrata (8). Aquele jardim é uma metáfora da comunidade dos bem-aventurados, i.e dos membros da “Igreja Triunfante” (9). E ela prossegue:

“Quivi è la rosa in che ‘l verbo divino
carne si fece; quivi son li gigli
al cui odor si prese il buon caminho”.     (v. 73-75)

  “Ali está a rosa em que o verbo divino/ se fez carne; ali estão os lírios/ cujo odor conduz ao bom caminho”.

            A imagem da rosa está associada a Maria (chamada de “Rosa Mística” na ladainha romana) e a dos lírios aos apóstolos. O sol, cujos raios favorecem esse jardim, é metáfora de Cristo, como já se disse.

            Na sequência, Dante faz mais uma comparação. Assim como seus olhos já viram um raio de sol atravessar a nuvem e iluminar “campo de flores” (prato di fiori- v.80), também agora eles veem “hostes de esplendores” (turbe di splendori- v. 82) “acesos de cima por ardentes raios” (folgorate di sù da raggi ardenti- v.83), cuja origem ele não pode ver, uma referência à ascensão de Cristo, explicitada na apóstrofe dos versos seguintes (v.85-87), em que o poeta dirige-se diretamente ao “benigno poder” (Cristo) (benigna vertù- v. 85).

            Nessas hostes, após a ascensão de Cristo, é “a maior chama” (lo maggior foco- v. 90), Maria, que lhe atrai a atenção. Dante afirma que invoca duas vezes ao dia “o nome dessa bela flor” (Il nome del bel fior /.../- v. 88). Depois, Maria é referida por outro nome, o de “estrela” (stella- v. 92) (na liturgia católica, ela é chamada “estrela da manhã” e “estrela do mar” (10), ou “stella matutina” e “stella maris”).  Os  olhos do poeta a refletiam quando desceu do céu uma tocha, interpretada como o arcanjo Gabriel (o da Anunciação), ou outro anjo, que forma um círculo em torno dela,  como uma coroa” (a guisa di corona- v. 95).

            A “melodia que mais doce soe/ aqui embaixo” (Qualunque melodia più dolce suona/ qua giù /.../- v.97-98), i.e. na Terra, seria desagradável (como o som do trovão) “comparada ao som daquela lira” (comparata ao sonar di quella lira-  v. 100), vale dizer, o canto do anjo (11). No verso seguinte, é usada uma outra metáfora para designar Maria. Ela é chamada de “bela safira” (bel zaffiro- v. 101) que é assim coroada no “céu mais luminoso” (il ciel più chiaro- v. 102), o céu das Estrelas Fixas, onde estão agora. Na sequência, esse anjo diz a Maria que ele continuará a girar em torno dela até que ela, seguindo seu filho, alcance a “esfera suprema” (la spera suppremma- v. 108), i.e. o Empíreo, morada de Deus e dos bem-aventurados, situado acima do 9º céu, o Primum Mobile, este o mais alto dos céus em movimento, e que move todos os outros, abaixo dele (12). 

Maria, por Dante Gabriel Rossetti

Ao encerrar o canto ou a “melodia circulante” (circulata melodia- v. 109) do anjo, “todos os outros lumes” (tutti li altri lumi- v. 110) -- ou os membros da Igreja Triunfante (13) – fizeram soar o nome de Maria” (facean sonare il nome di Maria-  v.111).

O Primum Mobile, chamado aqui de “real manto de todas as esferas” (Lo real manto di tutti i volumi/ del mondo, /.../- v. 112-113), envolvia o céu onde Dante está, mas ainda estava distante para ele, permanecia, “lá onde eu estava, fora da vista” (là dove io era, ancor non appariva- v. 117).  Por isso Dante não pôde ver a ascensão de Maria (“a coroada chama”), que seguiu a de Cristo, seu filho (aquela “semente” que se desenvolveu em seu ventre):

però non ebber li occhi miei potenza
di seguitar la coronata fiamma
che si levò appresso sua semenza    (v. 118-120)

por isso, meus olhos não puderam/ seguir a coroada chama/ que ascendeu depois de sua semente.

            Segue-se uma última comparação desse Canto, a de uma “criancinha que para a mãe/ estende os braços depois de mamar” ( /.../ fantolin che’ nver’ la mamma/ tende le braccia, poi che ‘l latte prese,- v. 121-122) com  cada uma daquelas luzes (que) se estendeu para o alto” ( ciascun di quei candori in sù si stese- v.124). Estes são os bem-aventurados. Tanto num caso como no outro, o gesto expressa amor pela mãe, diz o poeta.  As luzes permanecem ali, “cantando ‘Regina celi’ tão docemente” (“Regina celi” cantando sì dolce- v. 128), que tal “deleite” (diletto- v.129) de ouvir esse hino pascoal à Mãe de Cristo (14) jamais há de separar-se de Dante, como este afirma.  

            Em seguida, Dante dirige-se  aos bem-aventurados, saudando aquelas “arcas riquíssimas” (arche ricchissime- v.132), ricas de graça (15), pois “foram/ bons semeadores aqui embaixo” (/.../ fuoro/ a seminar qua giù buone bolboce!- v.131-132), ou seja, semeando a palavra de Deus.   

Os dois tercetos finais contêm uma anáfora, em seu verso inicial. Ambos mencionam “aqui”, para se referir ao Paraíso.

No primeiro, afirma-se que desfrutam ali aqueles que estiveram “chorando no exílio da Babilônia” ( /.../ piangendo ne lo essilio/ di  Babillon, /.../.-  v. 133-134), referindo-se aos hebreus que na Terra sofreram tal exílio, conforme a Bíblia.  Tal exílio consiste numa metáfora da vida terrena. O choro deles também sugere “vale de lágrimas”, outra metáfora usada com o mesmo sentido (16).

No segundo, menciona-se indiretamente S.Pedro, ao se dizer que ali, no Paraíso, triunfa “aquele que guarda as chaves desse reino de glória” (colui che tien le chiavi di tal gloria- v. 139). Com ele está “o antigo e o novo concílio” ( /.../ l’antico e col novo concilio- v. 138), interpretado como os santos do Antigo e do Novo Testamento, ou os hebreus libertos do Limbo e os cristãos (17). 

S.Pedro apóstolo- Monastério de Santa Catarina- Monte Sinai, Egito

Amos Nattini
 NOTAS


(1) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p. 567.

(2) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.390.

(3) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 569. 

(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 390.

(5) Id. ib, p. 390.

(6) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.  Penguin Books, 1971, p. 262.

(7) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi.  New American Library, 2003, p.804.

(8) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”, op cit, p. 263.

(9) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.575.  

(10) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.391.

(11) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.554.

(12) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.387.

(13) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.577.

(14) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.392.

(15) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p.281.   

(16) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.392.

(17) MOURA, Vasco Graça—“Dante Alighieri- A Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco da Graça Moura. S.Paulo: Landmark, 2005- p. 801; MAGUGLIANI, Lodovico- notas a “Dante Alighieri- La Divina Commedia- Paradiso”. Introduzione di Bianca Garaveli. Note di Lodovico Magugliani. Biblioteca Universale Rizzoli Superclassici, 2ª ed. 1996. 
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-Para ouvir o Canto XXIII:


(acessado em 2.10.20)

Salvador Dali