Canto XXII
Dante, espantado com o grito muito
alto, estrondoso, que ouviu, volta-se para Beatriz. Compara-se a um menino
assustado que corre para o lado da mãe. Beatriz é identificada “como a mãe que socorre/ rápido o filho
pálido e ansioso” (/.../
come madre che socorre/ sùbito al figlio palido e anelo- v. 4-5). Com sua voz confortadora, ela começa
por lembrá-lo que está no Céu, e que ali tudo o que acontece decorre do “bom zelo” (buon zelo- v. 9). O fato desse grito perturbá-lo tanto,
diz ela, vai fazê-lo compreender por que ela não sorriu antes e por que as almas
contemplativas suspenderam seu canto neste Céu (de Saturno). Se esses fatos tivessem
ocorrido, seriam excessivos para seus sentidos demasiado humanos ou mortais. Por outro lado, se Dante “tivesse entendido a prece
dentro desse grito” (/.../
se’ nteso avessi i prieghi suoi- v. 13),
ou seja, suas palavras, veria que se referem à “vingança divina” (la vendetta- v. 14),
ou à punição do mau clero, o que se subentende tendo em vista o que foi dito
nos versos anteriores. Mas Dante, assim como outros que a desejam, tem a
impressão de que tal castigo-- o golpe da “espada
daqui de cima” (La
spada di qua sù /.../- v. 16)
– vem lentamente, enquanto para os que a temem virá rapidamente. Porém ele virá
no tempo devido.
Beatriz pede depois para Dante
voltar-se para os outros espíritos que ali estão, muitos deles “ilustres” (illustri spiriti- v.
20).
S. Benedito por Perugino |
Dante vê então ”cem pequenas esferas” (e vidi cento sperule-
v.23), luminosas, que “cresciam em beleza com os mútuos raios”
(più
s’abbellivan con mutüi rai- v. 24).
A intensificação de seu brilho reflete a maior alegria de que são possuídos (1).
Dante tem muita vontade de perguntar sobre esses espíritos, mas não se atreve. Todavia,
um deles, “a maior e a mais brilhante/
daquelas gemas” (e
la maggiore e la più luculenta/ di quelle margherite /.../- v. 28-9), move-se para frente, disposto a
satisfazer sua curiosidade. E Dante ouve então uma voz saindo “de dentro daquela luz” (Poi dentro a lei udi:
/.../- v. 31) que enfatiza a “caridade” (i.e. o amor) que neles arde (/.../ la carità che
tra noi arde- v. 32). Se
Dante fosse ciente disso, diz ele, não hesitaria em expressar seus pensamentos.
Mas, continua o espírito, para não retardá-lo em alcançar “o alto fim” (l’alto fine- v.35)
de sua busca-- ou seja, a visão de Deus, após o fim da sua jornada (2)--, ele
responderá “às perguntas só pensadas que
reprimiste” (/.../ io ti farò risposta/ pur al pensier, da che
sì ti riguarde- v. 36-7),
reiterando-se aqui o fato de que lá os espíritos “leem” os pensamentos de Dante
sem que seja necessário ele expressá-los em palavras.
Na sequência, o espírito fornece
elementos que permitem sua identificação. Trata-se de S. Benedito (ou S. Bento) de Norcia (480-543), não citado explicitamente mas identificado pelos versos 40-42. Ele é o fundador da Ordem dos Beneditinos, a primeira ordem religiosa do Ocidente. Afirma nos versos que foi o primeiro a levar o nome de Cristo para o monte em
cuja encosta está Cassino (cidade entre Roma e Nápoles). Seu cimo, frequentado
“por gente iludida e ao mal disposta”
(da la
gente ingannata e mal disposta- v. 39),
dedicava-se a um “culto ímpio” (
l’empio cólto- v. 45). Os comentaristas informam que tal culto ocorria num
templo dedicado a Apolo que havia ali. Em 529, aproximadamente, ele fundou no
local o mosteiro de Montecassino, que se tornaria “o berço da difusão de sua
Ordem” (3).
Ele afirma que todos aqueles “fogos” (fuocchi- v.46) -- as “pequenas esferas” luminosas antes referidas -- foram homens contemplativos (contemplanti- v.46), a característica dos espíritos
associados ao Céu de Saturno. Tais fogos foram “acesos por aquele ardor/ que faz nascer as flores e os frutos santos”
(/.../
accesi di quel caldo/ che fa nascere i fiori e ‘ frutti santi- v. 47-8), vale dizer, acesos pelo Sol (Deus)
que produz nesses espíritos ideias pias (“flores”)
e boas ações (“frutos”), coerente com
a divisa da Ordem: “ora et labora” (“reza e pratica boas obras”) (4). Por fim, S.
Benedito diz a Dante que ali estão os irmãos que permaneceram fieis à ordem.
Mas só menciona nominalmente dois deles, Macário e Romualdo (v.49). O primeiro
nome tanto pode referir-se a S. Macário Egípcio (ca..300-391), eremita, que
viveu sessenta anos na deserto da Líbia, ou a S. Macário de Alexandria
(falecido em 404). Ambos foram discípulos de Santo Antônio do Egito. Por outro
lado, S. Romualdo (ca. 956-1027) foi o fundador da Ordem Camaldolese,
estabelecida em Camaldoli, na Toscana (5).
Dante então lhe responde, afirmando
que a sua demonstração de “afeto” (affetto- v.52) e seu “aspecto benévolo” (la buona sembianza-- v. 53), evidenciados pela intensificação das luzes desses
espíritos, ampliaram a sua confiança “como
o Sol faz à rosa quando se abre/ ao máximo, conforme sua possibilidade.” (come ‘l sol fa la
rosa quando aperta/ tanto divien quant’ ell’ ha di possanza- v. 56-7). Tendo em vista essa disposição deles, pede a S.
Benedito (chamando-o de “pai”, no v. 58) a graça “de poder ver a tua imagem descoberta” (ch’io/ ti veggia con
imagine scoverta- v. 59-60).
Mas Benedito, chamando-o de “irmão” (Frate- v. 61), lhe diz que, assim como no caso dos
outros bem-aventurados, “teu alto desejo/ se cumprirá na última
esfera” (/.../ Frate, il tuo
alto disio/ s’adempierà in su l’ultima spera- v. 61-2), i.e. no Empíreo (6), o nível
celeste mais elevado, onde mora Deus (7).
Mais adiante, afirma que tal esfera “não está no espaço nem gira em torno de
polos” (/.../
non è in loco e non s’impola- v. 67)
e que a escada antes mencionada (aquela "da cor do ouro quando reflete o raio solar", conforme o canto anterior, por onde desciam os lumes dos espíritos contemplativos) chega até lá, o Empíreo, que ele ainda não pode
ver. A escada, segundo um comentarista, representa a jornada da contemplação
(8). Aqui o poema faz uma menção ao Jacob, da Bíblia, que viu, em sonho, essa
escada, apinhada de anjos, estender-se até o seu cimo (Gen.
28:12) (9).
Prosseguindo em sua fala, S. Benedito
faz uma crítica à situação da sua própria ordem naquela época (como se sabe, o
poema se passa em 1300). Ninguém agora se dispõe a subir essa escada, “e a regra minha/ desperdiça o pergaminho em
que foi escrita” (/.../
e la regola mia / rimasa è per danno de le carte- v. 74-75).
Le mura che solieno esser badia
fatte sono spelonche, e le cocolle
sacca son piene di farina ria. (v. 76-78)
O que
era abadia/ tornou-se um covil, e os hábitos de monge,/ sacos cheios de farinha
estragada.
Como assinalam os comentaristas, o
uso do termo “covil” lembra “covil de ladrões”, a expressão usada por Cristo
para designar o Templo de Jerusalém após sua ocupação pelos cambistas, expulsos
por ele do Templo (Mateus, 21:12-13) (10).
Para S. Benedito, nem mesmo a usura
desagrada tanto a Deus “quanto aquele
fruto” (/.../
quanto quel frutto- v. 80), i.e., o dinheiro arrecadado pela
Igreja, “que enlouquece de cobiça o
coração dos monges” (che
fa il cor de’ monaci sì folle- v. 81).
Na realidade,
/.../ quantunque la Chiesa guarda, tutto
è de la gente che per Dio dimanda;
non di parenti né d’altro più brutto. (v. 82-4)
“/.../
tudo o que a Igreja guarda, tudo/ é da gente que por Deus demanda;/ não dos
parentes, nem de outros, mais ignóbeis”
estes
últimos identificados como as concubinas dos membros do clero (11). A seguir, S. Benedito fala dos monges que começam
bem a sua vida eclesiástica, mas depois se corrompem. Diz que “embaixo” (giù- v. 86), (i.e., na Terra), um bom começo não
dura tanto tempo quanto “do nascer do
carvalho até dar frutos” (dal nascer de la quercia al far la ghianda- v.87),
um período de vinte anos (12). Menciona
S. Pedro (o primeiro papa), S. Francisco (de Assis) e ele próprio (S. Benedito)
nesta passagem:
Pier cominciò sanz’ oro e sanz’ argento,
e io con orazione e con digiuno,
e Francesco umilmente il suo convento;
e se guardi ‘l principio di ciascuno,
poscia riguardi là dov’ è trascorso,
tu vederai del bianco fatto bruno. (v. 88-93)
Pedro
começou sem ouro e prata,/ e eu com oração e jejum/ e Francisco, humildemente,
sua comunidade;
se
olhas o princípio de cada um/ e depois considera o lugar onde chegaram,/ verás o
branco tornar-se escuro.
Concluindo seu discurso, S. Benedito
refere-se a passagens bíblicas novamente. No caso, duas delas que relatam
feitos maravilhosos, reveladores do poder de Deus. No primeiro, Ele parou o
fluxo do rio Jordão para permitir a passagem de Josué e dos israelitas (Josué,
3). No outro, abriu o mar Vermelho para que os filhos de Israel, liderados por
Moisés, pudessem atravessá-lo em sua
fuga do Egito (Êxodo, 14) (13). Esses fatos, diz Benedito, “foram mais assombrosos de se ver do que Seu
Socorro aqui será” (v.96), vale dizer, foram mais extraordinários do que a
intervenção (desejada) do Senhor aqui, para corrigir a sua Igreja. S. Bendito, com essa observação, encerra sua
fala. Em seguida, junta-se aos seus colegas monges, e essa “companhia” (collegio- v.98), “como um remoinho, voou para cima” ( poi, come turbo, in sù tutto
s’avvolse- v. 99).
Salvador Dalí |
Depois, Dante e Beatriz sobem para o
oitavo céu, o das Estrelas Fixas, de uma forma que impressiona o poeta. É ela,
a “doce dama” (dolce donna- v. 100), que o impulsionou, com um aceno, escada acima, “atrás deles” (dietro a lor- v. 100), vencendo sua natureza corpórea,
numa velocidade que ele nunca viu aqui embaixo, na Terra, onde não há
velocidade tal “que pudesse se igualar à
minha asa” (ch’
agguagliar si potesse a la mia ala- v. 105).
Dante então dirige-se ao leitor, afirmando que espera um dia (após a sua morte,
subentende-se) retornar àquele “santo
triunfo” (divoto/
trïunfo- v. 106-7), o
reino dos espíritos bem-aventurados. E ilustra a velocidade de sua ascensão nestes
termos:
tu non avresti in tanto tratto e messo
nel foco il dito, in quant’io vidi ‘l segno
che segue il Tauro e fui dentro da esso (v. 109-111)
em menos tempo que fosse tirado e posto/ no
fogo teu dedo, eu vi o signo /que segue o Touro, e estava dentro dele.
Assim, Dante se viu no signo do
zodíaco “que segue o Touro”, ou seja,
o signo representado pela constelação de Gêmeos. Note-se a inversão da ordem
relativamente a retirar/pôr o dedo no fogo, nos versos acima. Trata-se de uma
figura de linguagem chamada “hysteron proteron”, que enfatiza a velocidade da
ação, como salientam os comentaristas. Outro exemplo dessa mesma figura ocorreu
no Canto II, v. 23-24 (14).
Na sequência, Dante dirige-se às “gloriosas estrelas” (glorïose stelle- v.
112) (da constelação de
Gêmeos), em que nascia e se escondia o Sol (“aquele que é pai de todas as vidas mortais”: quelli ch’è padre d’ogne
mortal vita- v. 116) quando ele veio à luz (“quando eu primeiro respirei o ar da Toscana”: quand’io senti’ di
prima l’aere tosco- v. 117).
Afirma que dessas estrelas, ou desse signo, “deriva todo o meu engenho, qualquer que ele seja” (/.../ dal quale io
riconosco/ tutto, qual che si sia, il mio ingegno- v. 113-4) (como se vê, Dante acreditava na influência astrológica sobre os seres humanos, no caso, da influência do signo de Gêmeos sobre ele).
Ainda dirigindo-se a tais estrelas,
realça o fato de que lhe foi concedida a graça “de
entrar na alta roda” (d’entrar ne l’alta rota /.../- v. 119) que as faz girar, ou seja, entrar na
esfera ou céu das Estrelas Fixas -- esse oitavo céu, que contém todas as
estrelas (15 --, justamente pela constelação de Gêmeos. O poeta conclui a invocação
às estrelas expressando seu desejo de “obter
virtude” (acquistar virtute- v.
122) para a difícil
empresa que atrai sua alma (v. 123), a de descrever os eventos notáveis do
próximo canto (16).
Beatriz lhe recomenda aguçar a vista,
pois ele se aproxima da “suprema salvação”
(ultima
salute- v. 124). Pede
para Dante olhar para baixo e ver “quantos
mundos/ já te coloquei debaixo dos pés” (/.../ quanto mondo/ sotto li piedi già
esser ti fei- v. 128-129).
Pede também para ele se mostrar alegre “à
turba triunfante/ que vem contente por esta esfera etérea” (/.../ a la turba triunfante/
che lieta vien per questo etera tondo- v.
131-2).
Dante faz o que ela quer. Vê então as
“sete esferas” (le sette spere- v.134), ou “planetas”, que deixou para
trás, a girar em torno da Terra (conforme o sistema de Ptolomeu adotado na época, e no poema), com diferentes tamanhos e distâncias entre si. Sorri ao constatar o diminuto
tamanho do globo de onde proveio. A
seguir, o poeta menciona indiretamente, com referências baseadas na mitologia greco-romana, cada
um dos sete astros que observa: a Lua, “a filha de Latona”: figlia di Latona- v. 139 (ou Diana; ela está “iluminada”, incensa- v. 139, em seu outro lado, que para nós é
escuro) (v. 139), o Sol (“teu filho,
Hiperião: tuo
nato, Iperïone- v. 142), os
que giram em torno deste, Mercúrio (menção a Maia, sua mãe) e Vênus
(menção a sua mãe, Dïone) (v. 144), Júpiter ou Jove, e seu “temperar” (temperar- v. 145). Júpiter se situa “entre o pai e o filho” (tra ‘l padre e ‘l
figlio /.../- v. 146),
i.e., entre Saturno e Marte (Saturno era pai de Marte). O
“temperar” de Júpiter é explicado pelo fato de que Marte é quente e Saturno é
frio, conforme Ptolomeu (17).
Por fim, Dante viu a “pequena Terra” (aiuola- v. 15, literalmente, “canteiro”) que se
mostrou toda a ele, “das colinas às fozes”
(/.../
da’ colli a le foci- v. 153)
dos rios, “enquanto eu girava nos eternos
Gêmeos” (volgendom’
io con li etterni Gemelli- v. 152). Depois, seu olhar se voltou para Beatriz,
conforme afirma o último verso do Canto: : “depois,
volvi meus olhos para os olhos belos” (poscia rivolsi li occhi a li occhi belli- v.
154).
Amos Nattini |
NOTAS
(1) HOLLANDER, Robert
& Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert &
Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander. Doubleday, 2007, p. 541-542
(2) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated
with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986,
p. 264.
(3) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony
Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam
Books, 1986- p.387.
(4) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit,
p.264; HOLLANDER,
Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 543 e 540.
(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of
Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 387-388.
.
(6) Id. ib, p. 388.
(7) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The
Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara
Reynolds. Penguin Books, 1971, p. 372.
(8) MUSA, Mark- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit,
p.266.
(9) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 545.
(10) Id. ib, p. 546.
(11) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The
Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi. New American Library, 2003, p.794.
(12) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 546.
(13) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy
of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 389.
(14) CIARDI, John- “The Divine
Comedy”, op cit, p. 795 (cf também p. 612, nota ao v. 23-24, do Canto II). Cf
ainda MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit,
p.267.
(15) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 550..
(16) Id. ib., p. 548.
(17) Id. ib., p. 550-1; MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit,
p.269-270.
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-Para
ouvir o Canto XXII:
(acessado
em 30.09.20)