segunda-feira, 3 de junho de 2019

CANTO XXII


 PARAÍSO


Canto XXII


            Dante, espantado com o grito muito alto, estrondoso, que ouviu, volta-se para Beatriz. Compara-se a um menino assustado que corre para o lado da mãe. Beatriz é identificada “como a mãe que socorre/ rápido o filho pálido e ansioso” (/.../ come madre che socorre/ sùbito al figlio palido e anelo- v. 4-5). Com sua voz confortadora, ela começa por lembrá-lo que está no Céu, e que ali tudo o que acontece decorre do “bom zelo” (buon zelo- v. 9). O fato desse grito perturbá-lo tanto, diz ela, vai fazê-lo compreender por que ela não sorriu antes e por que as almas contemplativas suspenderam seu canto neste Céu (de Saturno). Se esses fatos tivessem ocorrido, seriam excessivos para seus sentidos demasiado humanos ou mortais.  Por outro lado, se Dante “tivesse entendido a prece dentro desse grito” (/.../ se’ nteso avessi i prieghi suoi- v. 13), ou seja, suas palavras, veria que se referem à “vingança divina” (la vendetta- v. 14), ou à punição do mau clero, o que se subentende tendo em vista o que foi dito nos versos anteriores. Mas Dante, assim como outros que a desejam, tem a impressão de que tal castigo-- o golpe da “espada daqui de cima” (La spada di qua sù /.../- v. 16) – vem lentamente, enquanto para os que a temem virá rapidamente. Porém ele virá no tempo devido.  

Beatriz pede depois para Dante voltar-se para os outros espíritos que ali estão, muitos deles “ilustres” (illustri spiriti- v. 20). 

S. Benedito por Perugino

Dante vê então ”cem pequenas esferas” (e vidi cento sperule- v.23), luminosas, que “cresciam em beleza com os mútuos raios” (più s’abbellivan con mutüi rai- v. 24). A intensificação de seu brilho reflete a maior alegria de que são possuídos (1). Dante tem muita vontade de perguntar sobre esses espíritos, mas não se atreve. Todavia, um deles, “a maior e a mais brilhante/ daquelas gemas” (e la maggiore e la più luculenta/ di quelle margherite /.../- v. 28-9), move-se para frente, disposto a satisfazer sua curiosidade. E Dante ouve então uma voz saindo “de dentro daquela luz” (Poi dentro a lei udi: /.../-   v. 31) que enfatiza a “caridade” (i.e. o amor) que neles arde (/.../ la carità che tra noi arde- v. 32). Se Dante fosse ciente disso, diz ele, não hesitaria em expressar seus pensamentos. Mas, continua o espírito, para não retardá-lo em alcançar “o alto fim” (l’alto fine- v.35) de sua busca-- ou seja, a visão de Deus, após o fim da sua jornada (2)--, ele responderá “às perguntas só pensadas que reprimiste” (/.../  io ti farò risposta/ pur al pensier, da che sì ti riguarde- v. 36-7), reiterando-se aqui o fato de que lá os espíritos “leem” os pensamentos de Dante sem que seja necessário ele expressá-los em palavras.  

Na sequência, o espírito fornece elementos que permitem sua identificação. Trata-se de S. Benedito (ou S. Bento) de Norcia (480-543), não citado explicitamente mas identificado pelos versos 40-42. Ele é o  fundador da Ordem dos Beneditinos, a primeira ordem religiosa do Ocidente. Afirma nos versos que foi o primeiro a levar o nome de Cristo para o monte em cuja encosta está Cassino (cidade entre Roma e Nápoles). Seu cimo, frequentado “por gente iludida e ao mal disposta” (da la gente ingannata e mal disposta- v. 39), dedicava-se a um “culto ímpio” ( l’empio cólto- v. 45). Os comentaristas informam que tal culto ocorria num templo dedicado a Apolo que havia ali. Em 529, aproximadamente, ele fundou no local o mosteiro de Montecassino, que se tornaria “o berço da difusão de sua Ordem” (3).  

Ele afirma que todos aqueles “fogos” (fuocchi- v.46) -- as “pequenas esferas” luminosas antes referidas -- foram homens contemplativos (contemplanti- v.46), a característica dos espíritos associados ao Céu de Saturno. Tais fogos foram “acesos por aquele ardor/ que faz nascer as flores e os frutos santos” (/.../ accesi di quel caldo/ che fa nascere i fiori e ‘ frutti santi- v. 47-8), vale dizer, acesos pelo Sol (Deus) que produz nesses espíritos ideias pias (“flores”) e boas ações (“frutos”), coerente com a divisa da Ordem: “ora et labora” (“reza e pratica boas obras”) (4). Por fim, S. Benedito diz a Dante que ali estão os irmãos que permaneceram fieis à ordem. Mas só menciona nominalmente dois deles, Macário e Romualdo (v.49). O primeiro nome tanto pode referir-se a S. Macário Egípcio (ca..300-391), eremita, que viveu sessenta anos na deserto da Líbia, ou a S. Macário de Alexandria (falecido em 404). Ambos foram discípulos de Santo Antônio do Egito. Por outro lado, S. Romualdo (ca. 956-1027) foi o fundador da Ordem Camaldolese, estabelecida em Camaldoli, na Toscana (5).  

Dante então lhe responde, afirmando que a sua demonstração de “afeto” (affetto- v.52) e seu “aspecto benévolo” (la buona sembianza-- v. 53), evidenciados pela intensificação das luzes desses espíritos, ampliaram a sua confiança “como o Sol faz à rosa quando se abre/ ao máximo, conforme sua possibilidade.” (come ‘l sol fa la rosa quando aperta/ tanto divien quant’ ell’ ha di possanza- v. 56-7).  Tendo em vista essa disposição deles, pede a S. Benedito (chamando-o de “pai”, no v. 58) a graça “de poder ver a tua imagem descoberta” (ch’io/ ti veggia con imagine scoverta- v. 59-60). Mas Benedito, chamando-o de “irmão” (Frate- v. 61), lhe diz que, assim como no caso dos outros bem-aventurados,  teu alto desejo/ se cumprirá na última esfera  (/.../ Frate, il tuo alto disio/ s’adempierà in su l’ultima spera- v. 61-2), i.e. no Empíreo (6), o nível celeste mais elevado, onde mora Deus (7).

Mais adiante, afirma que tal esfera “não está no espaço nem gira em torno de polos” (/.../ non è in loco e non s’impola- v. 67) e que a escada antes mencionada (aquela "da cor do ouro quando reflete o raio solar", conforme o canto anterior, por onde desciam os lumes dos espíritos contemplativos) chega até lá, o Empíreo, que ele ainda não pode ver. A escada, segundo um comentarista, representa a jornada da contemplação (8). Aqui o poema faz uma menção ao Jacob, da Bíblia, que viu, em sonho, essa escada, apinhada de anjos, estender-se até o seu cimo (Gen. 28:12) (9).

Prosseguindo em sua fala, S. Benedito faz uma crítica à situação da sua própria ordem naquela época (como se sabe, o poema se passa em 1300). Ninguém agora se dispõe a subir essa escada, “e a regra minha/ desperdiça o pergaminho em que foi escrita” (/.../ e la regola mia / rimasa è per danno de le carte- v. 74-75).

Le mura che solieno esser badia
fatte sono spelonche, e le cocolle
sacca son piene di farina ria.      (v. 76-78)
O que era abadia/ tornou-se um covil, e os hábitos de monge,/ sacos cheios de farinha estragada. 

            Como assinalam os comentaristas, o uso do termo “covil” lembra “covil de ladrões”, a expressão usada por Cristo para designar o Templo de Jerusalém após sua ocupação pelos cambistas, expulsos por ele do Templo  (Mateus, 21:12-13) (10).     

            Para S. Benedito, nem mesmo a usura desagrada tanto a Deus “quanto aquele fruto(/.../ quanto quel frutto-  v. 80), i.e., o dinheiro arrecadado pela Igreja, “que enlouquece de cobiça o coração dos monges” (che fa il cor de’ monaci sì folle- v. 81). Na realidade,

/.../ quantunque la Chiesa guarda, tutto
è de la gente che per Dio dimanda;
non di parenti né d’altro più brutto.   (v. 82-4)

/.../ tudo o que a Igreja guarda, tudo/ é da gente que por Deus demanda;/ não dos parentes, nem de outros, mais ignóbeis

estes últimos identificados como as concubinas dos membros do clero (11).  A seguir, S. Benedito fala dos monges que começam bem a sua vida eclesiástica, mas depois se corrompem. Diz que “embaixo” (giù- v. 86), (i.e., na Terra), um bom começo não dura tanto tempo quanto “do nascer do carvalho até dar frutos” (dal nascer de la quercia al far la ghianda-  v.87), um período de vinte anos (12). Menciona S. Pedro (o primeiro papa), S. Francisco (de Assis) e ele próprio (S. Benedito) nesta passagem:

Pier cominciò sanz’ oro e sanz’ argento,
e io con orazione e con digiuno,
e Francesco umilmente il suo convento;

e se guardi ‘l principio di ciascuno,
poscia riguardi là dov’ è trascorso,
tu vederai del bianco fatto bruno.    (v. 88-93) 

Pedro começou sem ouro e prata,/ e eu com oração e jejum/ e Francisco, humildemente, sua comunidade;
se olhas o princípio de cada um/ e depois considera o lugar onde chegaram,/ verás o branco tornar-se escuro.

Concluindo seu discurso, S. Benedito refere-se a passagens bíblicas novamente. No caso, duas delas que relatam feitos maravilhosos, reveladores do poder de Deus. No primeiro, Ele parou o fluxo do rio Jordão para permitir a passagem de Josué e dos israelitas (Josué, 3). No outro, abriu o mar Vermelho para que os filhos de Israel, liderados por Moisés, pudessem  atravessá-lo em sua fuga do Egito (Êxodo, 14) (13). Esses fatos, diz Benedito, “foram mais assombrosos de se ver do que Seu Socorro aqui será” (v.96), vale dizer, foram mais extraordinários do que a intervenção (desejada) do Senhor aqui, para corrigir a sua Igreja.  S. Bendito, com essa observação, encerra sua fala. Em seguida, junta-se aos seus colegas monges, e essa “companhia” (collegio- v.98), “como um remoinho, voou para cima” ( poi, come turbo, in sù tutto s’avvolse-  v. 99). 


Salvador Dalí 

Depois, Dante e Beatriz sobem para o oitavo céu, o das Estrelas Fixas, de uma forma que impressiona o poeta. É ela, a “doce dama” (dolce donna- v. 100), que o  impulsionou, com um aceno, escada acima, “atrás deles” (dietro a lor- v. 100), vencendo sua natureza corpórea, numa velocidade que ele nunca viu aqui embaixo, na Terra, onde não há velocidade tal “que pudesse se igualar à minha asa” (ch’ agguagliar si potesse a la mia ala- v. 105). Dante então dirige-se ao leitor, afirmando que espera um dia (após a sua morte, subentende-se) retornar àquele “santo triunfo” (divoto/ trïunfo- v. 106-7), o reino dos espíritos bem-aventurados. E ilustra a velocidade de sua ascensão nestes termos:

tu non avresti in tanto tratto e messo
nel foco il dito, in quant’io vidi ‘l segno
che segue il Tauro e fui dentro da esso     (v. 109-111)

em menos tempo que fosse tirado e posto/ no fogo teu dedo, eu vi o signo /que segue o Touro, e estava dentro dele.

            Assim, Dante se viu no signo do zodíaco “que segue o Touro”, ou seja, o signo representado pela constelação de Gêmeos. Note-se a inversão da ordem relativamente a retirar/pôr o dedo no fogo, nos versos acima. Trata-se de uma figura de linguagem chamada “hysteron proteron”, que enfatiza a velocidade da ação, como salientam os comentaristas. Outro exemplo dessa mesma figura ocorreu no Canto II, v. 23-24 (14).  

Na sequência, Dante dirige-se às “gloriosas estrelas” (glorïose stelle- v. 112) (da constelação de Gêmeos), em que nascia e se escondia o Sol (“aquele que é pai de todas as vidas mortais”: quelli ch’è padre d’ogne mortal vita- v. 116)  quando ele veio à luz (“quando eu primeiro respirei o ar da Toscana”: quand’io senti’ di prima l’aere tosco- v. 117). Afirma que dessas estrelas, ou desse signo, “deriva todo o meu engenho, qualquer que ele seja” (/.../ dal quale io riconosco/ tutto, qual che si sia, il mio ingegno- v. 113-4) (como se vê, Dante acreditava na influência astrológica sobre os seres humanos, no caso, da influência do signo de Gêmeos sobre ele). 

Ainda dirigindo-se a tais estrelas, realça o fato de que lhe foi concedida a  graça “de entrar na alta roda” (d’entrar ne l’alta rota /.../- v. 119) que as faz girar, ou seja, entrar na esfera ou céu das Estrelas Fixas -- esse oitavo céu, que contém todas as estrelas (15 --, justamente pela constelação de Gêmeos. O poeta conclui a invocação às estrelas expressando seu desejo de “obter virtude (acquistar virtute- v. 122) para a difícil empresa que atrai sua alma (v. 123), a de descrever os eventos notáveis do próximo canto (16).   

Beatriz lhe recomenda aguçar a vista, pois ele se aproxima da “suprema salvação” (ultima salute- v. 124). Pede para Dante olhar para baixo e ver “quantos mundos/ já te coloquei debaixo dos pés” (/.../ quanto mondo/ sotto li piedi già esser ti fei- v. 128-129). Pede também para ele se mostrar alegre “à turba triunfante/ que vem contente por esta esfera etérea” (/.../ a la turba triunfante/ che lieta vien per questo etera tondo-  v. 131-2).  

Dante faz o que ela quer. Vê então as “sete esferas” (le sette spere- v.134), ou “planetas”, que deixou para trás, a girar em torno da Terra (conforme o sistema de Ptolomeu adotado na época, e no poema), com diferentes tamanhos e distâncias entre si. Sorri ao constatar  o diminuto tamanho do  globo de onde proveio. A seguir, o poeta menciona indiretamente, com referências baseadas na mitologia greco-romana, cada um dos sete astros que observa: a Lua, “a filha de Latona”: figlia di Latona- v. 139 (ou Diana; ela está “iluminada”, incensa- v. 139, em seu outro lado, que para nós é escuro) (v. 139), o Sol (“teu filho, Hiperião: tuo nato, Iperïone- v. 142), os que giram em torno deste, Mercúrio (menção a Maia, sua mãe) e Vênus (menção a sua mãe, Dïone) (v. 144), Júpiter ou Jove, e seu “temperar” (temperar- v. 145). Júpiter se situa “entre o pai e o filho” (tra ‘l padre e ‘l figlio /.../- v. 146), i.e., entre Saturno e Marte (Saturno era pai de Marte). O “temperar” de Júpiter é explicado pelo fato de que Marte é quente e Saturno é frio, conforme Ptolomeu (17).    

Por fim, Dante viu a “pequena Terra” (aiuola- v. 15, literalmente, “canteiro”) que se mostrou toda a ele, “das colinas às fozes” (/.../ da’ colli a le foci- v. 153) dos rios, “enquanto eu girava nos eternos Gêmeos” (volgendom’ io con li etterni  Gemelli- v. 152). Depois, seu olhar se voltou para Beatriz, conforme afirma o último verso do Canto: : “depois, volvi meus olhos para os olhos belos” (poscia rivolsi li occhi a li occhi belli- v. 154).

Amos Nattini

NOTAS



(1) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p. 541-542

(2) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p. 264.

(3) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.387.

(4) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p.264; HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 543 e 540.

(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 387-388.
.
(6) Id. ib, p. 388.

(7) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.  Penguin Books, 1971, p. 372.

(8) MUSA, Mark- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p.266.

(9) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 545. 

(10) Id. ib, p. 546.    

(11) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi.  New American Library, 2003, p.794.

(12) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 546.

(13) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 389.

(14) CIARDI, John- “The Divine Comedy”, op cit, p. 795 (cf também p. 612, nota ao v. 23-24, do Canto II).  Cf ainda  MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p.267.

(15) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 550.. 

(16) Id. ib., p. 548. 

(17) Id. ib., p. 550-1; MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p.269-270. 

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-Para ouvir o Canto XXII:


(acessado em 30.09.20)



CANTO XXI


 PARAÍSO


Canto XXI


            Enquanto sobem ao sétimo céu, o de Saturno, onde estão os espíritos dos contemplativos, Dante tem os olhos fixos no rosto de Beatriz, assim como a mente, que se afastara de qualquer outro pensamento (v. 1-3). Ele apenas se dedica a essa contemplação. Mas Beatriz não lhe sorri.

Gustave Doré

          E ela inicia sua fala explicando por que isso não ocorreu. “Se eu risse, tu serias como Sêmele/ que se transformou em cinzas” ( /.../ S’io ridessi,/.../ tu ti faresti quale/ fu Semelè quando di cener fessi- v. 4-6). Sêmele foi uma jovem da mitologia grega induzida pela ciumenta Juno a pedir a Júpiter para se mostrar a ela em todo seu esplendor, o que teve aquele efeito, como consequência  (1). 

Assim, à medida que Beatriz sobe a uma esfera celeste mais elevada, ou sobe “pelas escadarias/ do eterno palácio” (/.../ per le scale/ de l’etterno palazzo /.../- v. 7-8) (note-se a metáfora), sua beleza se intensifica, e ela tem que ser limitada (ao não sorrir), caso contrário tal fulgor, para um mortal, “seria ramo que o raio despedaça” (sarebbe fronda che trono scoscende- v. 12).

O “sétimo esplendor” (settimo splendore- v.13), a esfera de Saturno, para onde eles ascenderam, está em conjunção com a constelação de Leão, pois ele está “sob o peito do Leão ardente” (/.../ sotto l’ petto del Leone ardente- v. 14), o que se verifica em março-abril (no caso,  de 1300).  O planeta “lança seus raios sobre a Terra com os quais a força dele se mistura” (raggia mo misto giù del suo valore- v. 15), i.e. a força da Constelação se associava aos raios do planeta (2).

Beatriz encerra a fala em que faz essas observações alertando Dante para o que ele verá na sequência. Diz ela: “faz teus olhos refletirem a figura/ que te aparecerá neste espelho” (e fa di quelli specchi a la figura/ che ‘n questo specchio ti sarà parvente- v. 17-18), ou neste planeta Saturno, que mais adiante é referido como “cristal”  (cristallo- v. 25) (3).

Dante contemplava (literalmente, se alimentava de) o “rosto abençoado” (l’ aspetto beato- v.20) de Beatriz. Ele então, atendendo ao seu pedido, desvia o olhar para outro objeto, “confrontando um prazer com o outro” ( contrapesando l’ un con l’altro lato- v. 24), i.e., o prazer de contemplá-la com o prazer de obedecê-la.

Dentro al cristallo che ‘l vocabol porta,
cerchiando il mondo, del suo caro duce
sotto cui giacque ogne malizia morta,          (v. 25-27)

Dentro do cristal que, girando em torno da Terra,/ porta o nome daquele caro rei/ sob quem toda maldade desapareceu,

vale dizer, dentro do planeta que toma o nome de Saturno, “o melhor dos deuses”, pai de Júpiter (que reinou numa mítica idade de ouro e de inocência), Dante vê uma escada “da cor do ouro quando reflete o raio solar” (di color d’ oro in che raggio traluce- v. 28) que subia tanto que sua vista não podia segui-la. Pelos seus degraus, desciam luzes esplendorosas, i.e. os espíritos dos contemplativos, para recebê-lo. Tais espíritos procedem do Empíreo, onde estão todas as almas salvas, além dos anjos. Essa escada é associada pelos comentaristas àquela do sonho de Jacó, conforme é narrado na Bíblia (Gênesis  28:12) (4).


Gustave Doré

            Em seguida, essas luzes são comparadas a certos pássaros (gralhas ou corvos) que primeiro juntos se alçam no começo do dia para aquecer as plumas resfriadas pela noite e

poi altre vanno via sanza ritorno,
altre rivolgon sé onde son mosse,
e altre roteando fan soggiorno;         (v. 37-39)

depois umas se vão sem retornar,/ outras voltam ao local de onde partiram,/ e outras ainda permanecem voando, em círculos;

Os comentaristas comparam essas aves às almas contemplativas, que ou se isolam do mundo, ou voltam aos seus retiros ou não voltam, fazendo seu trabalho externamente (5).

As luzes esplendorosas descem até um determinado degrau, onde se apresentam conjuntamente. E o brilho de uma delas, mais perto de Dante, se intensifica, fazendo este compreender que tal brilho significa amor por ele. Dante tem vontade de se dirigir a esse espírito, fazer-lhe perguntas, saber quem é -- só adiante, no v. 121, ele dirá que se chamou Pedro Damiano na Terra -- mas se contém, porque Beatriz está silente. Esta porém lê o seu pensamento. Ela, “que via o meu silêncio/ por meio d’Aquele que tudo vê” ( Per ch’ ella, che vedëa il tacer mio/ nel veder di colui che tutto vede- v.49-50), um privilégio dos bem-aventurados, diz então para ele: “Satisfaz teu ardente desejo” (Solvi il tuo caldo  disio- v. 51).   

Dante então lhe pergunta porque esse espírito está mais próximo dele e porque aquele céu silenciou “a doce sinfonia do Paraíso” (la dolce sinfonia di Paradiso- v. 59), que nas esferas abaixo soa tão devotamente.

O espírito começa a responder pela segunda pergunta. Ele diz que ali Dante não pode ouvir o som musical nem ver Beatriz sorrir porque isso seria excessivo para os seus sentidos de mortal (6).

Em seguida, afirma que ele desceu “os degraus da escada santa” (/.../ per li gradi de la scala santa-v. 64) para recebê-lo, não porque tenha mais amor que os outros, pois “mais e igual amor ao meu acima ferve” (ché più e tanto amor quinci sù ferve- v. 68). Ele assim o faz condicionado pela “alta caridade” (l’alta carità- v.70), o amor de Deus (7), que o leva, e os outros espíritos bem-aventurados “a servir/ prontamente à vontade que governa o mundo” (/.../ che ci fa serve/ pronte al consiglio che il mondo governa- v. 70-71), ou seja, a vontade de Deus.

Busto de Pedro Damiano
Dante volta a se manifestar, afirma perceber que o amor desses espíritos basta para que eles (livremente) sigam a vontade da “Eterna Providência” (provedenza etterna- v. 75) (este último termo, em latim, significa “ver antes”) (8), mas não compreende porque só ele, dentre todos, foi o encarregado de tal função (de receber e se comunicar com Dante). Ao ouvir, isso, o “lume” (v.80), como uma “mó veloz” (veloce mola- v.81), gira sobre si mesmo (tal giro, como o brilho maior, indica a intensidade de sua alegria) (9) e lhe responde. Começa por dizer que a “luz divina” (Luce divina- v. 83), penetrando nessa que o envolve, o eleva tanto que ele vê a “Alta Fonte” (somma essenza- v. 87) (Deus) da qual a sua luz emana. “Daí vem a alegria com a qual flamejo” (Quinci vien l’allegrezza ond’io fiammeggio- v. 88), afirma ele, comparando a sua visão clara (de Deus) com a claridade da sua chama. Todavia, ele não poderá responder a essa pergunta de Dante:

Ma quell’ alma nel ciel che più si schiara,
quel serafin che ‘n Dio più l’ occhio ha fisso,
a la dimanda tua non satisfara,

però che sì s’innoltra ne lo abisso
de l’etterno statuto quel che chiedi,
che da ogne creata vista è scisso.    (v. 91-96)

Mas nem mesmo aquela alma mais iluminada do céu,/ aquele serafim que mais contempla Deus,/ poderiam responder à tua pergunta,
pois adentra tanto no abismo/ da Eterna Vontade aquilo que demandas,/ que é excluído da vista de toda criatura. 

            Assim, nenhuma criatura, ou ser criado por Deus, nem mesmo a “alma mais iluminada do céu” (v.91), Maria, nem os serafins, que ocupam na hierarquia angelical a posição mais elevada, a nona, poderão responder aquela pergunta. A propósito, abaixo dos serafins, estão os querubins, tronos, dominações, virtudes, potestades, principados, arcanjos e anjos (10).

            Pedro Damiano conclui esta fala com a recomendação seguinte:   E ao mundo mortal, quando retornares,/ relata isso /.../“ (E al mondo mortal, quando tu riedi,/ questo rapporta, /.../- v. 97-98). Após as palavras dele, Dante se retrai e se limita “humildemente a perguntar quem era” (/.../ e mi ritrassi/ a dimandarla umilmente chi fue-  v.104-105).

            O espírito começa então sua “terceira fala” (terzo sermo- v. 112) dirigida a  Dante. Antes de se identificar, refere-se à localização geográfica do claustro (v.118) onde ele se dedicou “tão firmemente ao serviço de Deus” (al servigio di Dio mi fe’ sì fermo- v. 114). Está situado numa elevação que faz parte das montanhas (a cadeia dos  Apeninos) localizadas “Entre as duas costas da Itália” (Tra’ due liti d’Italia /.../- v. 106), ou seja, as costas do Adriático e do Tirreno. Trata-se do convento beneditino Santa Croce de Fonte Avellana (11), “um lugar ermo consagrado,/ dedicado somente à adoração de Deus” (/.../  è consecrato un ermo,/ che suole esser disposto a sola latria-  v. 110-111). Ali vivia, com sua alimentação frugal, “suportava com facilidade o calor e o frio/ contente em meus pensamentos contemplativos” (lievemente passava caldi e geli/ contento ne’ pensier contemplativi- v. 116-117).  Na sequência, diz que “Aquele claustro costumava dar almas a estes céus, abundantemente;/ mas agora tornou-se estéril” (Render solea quel chiostro a questi cieli/ fertilemente; e ora è fatto vano-  v.118-119), uma crítica ao clero de sua época. É só então, depois dessas observações, que o espirito se identifica. Afirma que foi chamado Pedro Damiano naquele local, “e Pedro Pecador, na Casa/ de Nossa Senhora na costa do Adriático” (e Pietro Peccator  fu’ ne la casa/ di Nostra Donna in sul lito adriano- v. 122-123). Aqui, os comentaristas dizem que Dante confundiu duas pessoas diferentes. E assinalam também um anacronismo no v. 125, pois o chapéu cardinalício aí referido só seria adotado mais de 170 anos após a morte de Pedro Damiano, que viveu de 1007 a 1072 e foi um monge erudito, autor de muitos escritos, por isso considerado Doutor da Igreja (12). Ele era um asceta mas foi “arrastado a tomar aquele chapéu/ que sempre passa de mau para pior ” ( /.../ fui chiesto e tratto a quel cappello/ che pur di male in peggio si travasa- v. 125-126), outra  crítica à Igreja de então, no caso, ao tipo de pessoas escolhidas para  ocupar os cargos de cardeal.

            A seguir, Damiano faz outra crítica, agora indireta, aos prelados da Igreja, mencionando “Cefás” (v.127) (que significa “pedra” em aramaico, uma referência a S.Pedro) e o “grande vaso/ do Espírito Santo” (/.../ il gran vasello/ de lo Spirito Santo. /.../- v.127-128) (trata-se de S. Paulo, chamado “Vaso de Eleição”, na Bíblia). Eles eram magros e estavam descalços (magri e scalzi- v. 128), “recebendo o alimento de qualquer casa” (prendendo il cibo da qualunque ostello- v.129). “Agora, os modernos pastores, de tão pesados,/ precisam de quem os ampare de um lado e do outro,/ e de quem por trás os alcem (para a sela)./ Cobrem com seu manto os cavalos/ de modo que duas bestas andam sob uma mesma pele:  (Or voglion quinci e quindi chi rincalzi/ li moderni pastori e chi li meni,/ tanto son gravi, e chi di rietro li alzi. Cuopron d’ i manti loro i palafreni,/ sì che due bestie van sott’ una pelle:”- v. 130-134). Com estas palavras ásperas, Damiano encerra sua fala.

            O Canto termina com o poeta descrevendo o movimento das chamas que desciam os degraus da escada, e rodopiavam: “e cada giro as fazia mais belas” (e ogne giro le facea più belle-  v. 138),  o que indica alegria e aprovação das almas às palavras de Pedro Damiano (13). Elas se juntam em torno deste, diz Dante, mas depois -- “deram um grito tão alto/ que não poderia ser comparado a nenhum daqui;/ nem eu o entendi, tanto me venceu o estrondo” (e fero un grido di sì alto suono,/ che non potrebbe qui assomigliarsi;/ né io lo ‘ntesi, sì mi vinse il tuono.- v.140-142).  A razão desse grito será explicada por Beatriz no próximo Canto.

Amos Nattini
 NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.383.

(2) Id. ib, p. 384.

(3) Id. ib, p. 384.]

(4) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.  Penguin Books, 1971, p. 246;  HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p. 518. 

(5) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p.253.

(6) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 384. .

(7) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p.254. 

(8) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi.  New American Library, 2003, p.784.

(9) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 385. 

(10) ZOLI, M. e ZANOBINI, F.- “La Divina Commedia: a cura di M.Zoli e F.Zanobini. Inferno. Purgatorio. Paradiso”. Bulgarini, 2013, p. 910.

(11) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 385

(12) Id. ib, p. 385; cf também HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 522-524.

(13) LONGNON, Henri- “La Divine Comédie”. Traduction, préface, notes et commentaires par Henri Longnon. Paris: Garnier, 1951, p. 675.

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Para ouvir o Canto XXI:

 

https://www.youtube.com/watch?v=Zvd-WgpHupc

 

(acessado em 28.09.20)



Salvador Dalí