quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

CANTO XIX


PARAÍSO


Canto XIX


Gustave Doré
   
            Dante inicia o canto XIX referindo-se à “bela imagem que em sua doce fruição/ as almas felizes formavam reunidas” (la bela image che nel doce frui/ liete facevan l’anime conserte- v. 2-3). A imagem é da águia imperial romana, símbolo da justiça terrena (decorrente da justiça divina), que com as asas abertas se mostrava ao poeta no céu de Júpiter. Cada luz ou alma (de um justo governante que ali está) formadora da águia era um rubi (cf a metáfora) que brilhava tão intensamente pela incidência do raio do Sol (Deus) que para os olhos dele era como se todo o Sol se refletisse numa só alma.

            E ocorre então algo que “não foi jamais dito, nem escrito” (non portò voce mai, né scrisse incostro-  v. 8) nem concebido pela fantasia, pois Dante vê e ouve a águia se manifestar em palavras, usando a primeira pessoa do singular e não a do plural.  Ela diz que “por ser justa e piedosa” (/.../. Per esser giusto e pio- v.13) (ela, i.e. as almas dos príncipes justos que a compõem) foi elevada à glória máxima, a do Paraíso. E que na Terra deixou tal memória (a da vida correta desses governantes) (1), “que lá a gente malvada/ a elogia mas não segue seu exemplo” (/.../ che le genti lì malvage/ commendan lei, ma non seguon la storia- v. 17-18).

            Enfatizando a expressão una de uma pluralidade de almas, Dante a compara ao calor resultante de muitas brasas:

Così um sol calor di molte brage
si fa sentir, come di molti amori
usciva solo un suon di quella image.    (v. 19-21)

Como um só calor de muitas brasas/ se propaga, assim de muitos amores/ só um som saía daquela imagem.

            Na sequência, o poeta começa a falar, dirigindo-se àquelas “flores perenes da eterna alegria” (/.../ O perpetüi fiori/ de l’etterna letizia, /.../- v. 22-23), que fazem parecer um só todos os seus perfumes. Pede a elas para livrá-lo de seu “grande jejum” (il gran digiuno- v. 25), uma vez que ele não encontra na Terra o alimento necessário para superar o seu jejum, i.e. saciar a sua curiosidade. Ele está ciente de que há um outro reino no céu que “é espelho da justiça divina     (la divina giustizia fa suo specchio- v. 29) (este é o sétimo céu, de Saturno, presidido pelos anjos chamados Tronos, que desvendam os julgamentos de Deus para os bem-aventurados, já referidos no canto IX, v.61-63) (2). Todavia, neste reino em que estão, o céu de Júpiter, os justos também contemplam a perfeição divina de modo não velado. Eles, como todos os bem-aventurados, podem ler o  seu pensamento. Assim, Dante conclui a sua fala afirmando:  sabeis qual é/ a dúvida que me causa fome há tanto tempo” ( /../ sapete qual è quello/ dubbio che m’è digiun contanto vecchio- v. 32-33) (3). Qual é essa dúvida será explicitada para nós, leitores, mais adiante neste Canto (trata-se da exclusão dos pagãos virtuosos do Paraíso apenas por terem nascido antes da vinda de Cristo).

            A seguir, os versos contêm uma comparação. “Aquele símbolo (a águia) de louvores/ à divina graça formado” ( /.../ quel segno, che di laude/ de la divina grazia era contesto- v. 37-38), acompanhado de cantos, é comparado a um falcão, livre do capuz e alegre, “com vontade (de voar) e fazer-se belo” (voglia mostrando  e faccendosi bello- v.36) (nas alturas).  

            Essa águia então recomeça a falar. Afirma que Deus (“Aquele que girou o compasso/ para assinalar os confins do mundo”: “Colui che volse il sesto/ a lo stremo del mondo, /.../- v. 40-41, onde está presente tanto o “oculto” quanto o “manifesto”) não pode imprimir o seu “poder” (= “virtude criativa”) (4) em todo o universo, pois isso superaria “em infinito excesso” (in infinito eccesso- v. 45) sua criação. Deus é infinito e as coisas criadas, finitas. O “primeiro ser soberbo      (/.../ ‘l primo superbo- v. 46), Lúcifer, “que foi a mais alta de todas as criaturas         (che fu la somma d’ogne creatura-  v.47), “por não querer esperar a luz, caiu do céu, imaturo” (per non aspettar lume, cadde acerbo- v.48). Em seu período de provação, Lúcifer lideraria uma rebelião, que acabou  por precipitá-lo do céu, ainda imaturo (sua criação ainda não se completara plenamente) (5).  Toda natureza (como a natureza humana), inferior a ele, (6) “é pequeno receptáculo àquele bem/ que não tem fim e é a sua própria medida”  (è corto recettacolo a quel bene/ che non ha fine e sé com sé misura- v.50-51) (Deus). A águia é direta em dizer a Dante que sua “visão” (ou capacidade de entendimento), que é um dos raios da mente de Deus (v.52-53), não é tão potente “para reconhecer o seu princípio (Deus) / muito além daquilo que lhe foi manifesto” (/.../ che suo principio non discerna/ molto di là da quel che l’è parvente-  v. 56-57).  Assim, sua visão da Justiça eterna é comparada à do olho vendo o mar desde a orla, ciente de que há um fundo, escondido em sua profundidade. A Justiça divina, como o fundo do mar, está presente mas não é vista (a razão humana não pode penetrar nela).  

A seguir, a águia opõe a luz verdadeira, aquela que provém do “céu sereno” (v.64), de outra luz, que na realidade “é treva,/ ou sombra da carne ou veneno dela” ( /.../ è tenèbra/ od ombra de la carne o suo veleno- v. 65-66 ). Só a luz da graça divina pode vencer as limitações do intelecto humano (“sombra da carne”) ou o pecado (“veneno da carne”) (7). 

Ela prossegue afirmando que o esconderijo da “justiça viva” ( giustizia viva- v. 68 ), a quem Dante dirigiu tantas questões (subentendidas nos v. 25-33)  agora lhe é aberto. Explicita agora, para nós leitores, o que se passa na mente de Dante. Um homem nasce às margens do rio Indo, nunca ouviu falar em Cristo, mas sua conduta é boa, sem cometer pecado. E um dia,

Muore non battezzato e sanza fede:
ov’ è questa giustizia che ‘l condanna?
o0v’ è colpa sua, se ei non crede?      (v. 76-78)

Morre sem batismo e sem fé:/ Onde está essa justiça que o condena?/ Onde está sua culpa, se não crê?

            Dante pensa assim. E é repreendido desta forma:

Or tu chi se’, che vuo’ sedere a scranna,
per giudicar di lungi mille miglia
com la veduta corta d’una spanna?    (v.79-81)

Ora, tu quem és para sentar na cadeira do juiz/ e julgar a mil milhas de distância/ com tua vista curta de um palmo?

A águia continua seu discurso recomendando guiar-se pela (Sagrada) Escritura, pois sem ela, “muito teria para duvidar” ( da dubitar sarebbe a maraviglia- v.84 ). A fé no que ela contém auxilia a razão humana, que por si só não chega até essas verdades reveladas (8). As “mentes obtusas” (menti grosse- v. 85) das criaturas humanas (“animais terrenos”: terreni animali-  v.85) não veem que a “vontade primeira” (La prima volontà- v. 86) (ou a vontade divina) (9) “é o sumo bem” (è sommo ben- v. 87), que todo bem criado é causado por ela própria. Assim, não poderia haver discordância entre o desejo de justiça de Dante e a “vontade primeira”. Mas isso deve ser aceito pela fé, não é demonstrado pela razão.

Interrompe-se por um momento a fala da águia e Dante introduz em seu relato este comentário, sob a forma de uma comparação, em que uma cegonha é associada à águia e um dos filhotes dela, a Dante (v. 91-96):.

Como sobre o ninho gira/ a cegonha após alimentar os filhos/ e como aquele que se alimentou olha para ela (Quale sovresso il nido si rigira/ poi c’ha pasciuti la cicogna i figli,/ e come quel ch’è pasto la rimira;-  v. 91-93),  assim também se sentiu Dante, erguendo os olhos para ver a águia, depois de alimentado (espiritualmente) por ela, que abriu as asas, impelida pelas inúmeras almas concordes que a formavam.  

Rodeando, a águia cantava e comparava a incompreensão do canto dela por Dante com outra incompreensão, a da Justiça divina, por parte dos seres humanos (indicado pelo uso do “vós”): 

/.../ “Quali
son le mie note a te, che non le’ ntendi,
tal è il giudicio etterno a voi mortali”.      (v. 97-99)

/.../ “Como/ são as minhas notas para ti, que não as entendes,/ tal é o juízo eterno a vós mortais”. 

            Mais adiante, aquele “símbolo (a águia)/ que fez os romanos reverenciados no mundo” ( /.../ segno/ che fé i Romani al mondo reverendi- v. 101-102)  afirma que “A este reino (o do Paraíso)/ não subiu jamais quem não acreditou em Cristo” ( /.../ A questo regno/ non salì mai chi non credette ‘n Cristo- v. 103-104). Mas, diz ele, muitos cristãos atuais estarão, no Dia do Juízo, mais afastados de Cristo do que os que não o conheceram.  E quando os cristãos forem separados em duas fileiras --  uma dos salvos e outra dos condenados, ou, como ele diz, “uma dos ricos para sempre, e outra, dos pobres” ( l’uno in etterno ricco e l’altro inòpe- v. 111) – o poeta, pela boca da águia, opta por vê-los do ponto de vista dos não-cristãos, representados pela menção aos etíopes (v.109) ou aos persas (v. 112). Ela então afirma que “o etíope condenará tais cristãos” ( e tai Cristian dannerà l’ Etïòpe- v. 109) (que diferentemente dos etíopes justos não-salvos tiveram a chance de ir para o Paraíso e a desprezaram) (10). Faz depois uma pergunta retórica:

Che poran dir li Perse a’ vostri regi,
come vedranno quel volume aperto
nel qual si scrivon tutti suoi dispregi?  ( v. 112-114).

Que dirão os persas aos vossos reis/ quando virem aberto aquele volume/ no qual se escrevem todos os seus malfeitos?

            Tal volume, de acordo com os comentaristas (11), é aquele referido na Bíblia (“Apocalipse”, XX, 12), aberto no Dia do Juízo.

            O primeiro dos “reis” injustos a ser citado naquele volume  é Alberto (de Áustria) (1248-1308), cujas ações em breve (em 1304) devastarão o reino de Praga (ou da Boêmia), desrespeitando assim os direitos do vassalo. Esse reino  estava a cargo de Venceslau IV, seu cunhado (12).  Depois é citado “aquele que morrerá pelo golpe do javali” (quel che morrà di colpo di cotenna- v. 120), vale dizer, Filipe o Belo de França (cf menção ao rio  Sena no v. 118), que teria falsificado moeda em prejuízo da população. Morreu em 1314 num acidente quando participava de uma caça ao urso  (13).  O livro refere-se, na sequência, às guerras empreendidas, por sede de poder (/.../ la superbia ch’ asseta- v. 121), entre o  rei inglês e o escocês (14); refere-se também à luxúria e à indolência “daquele de Espanha (Ferdinando IV de Castela) e daquele de Boêmia” (Venceslau IV) (di quel di Spagna e di quel di Boemme- v. 125);  ao Coxo de Jerusalém (Ciotto di Ierusalemme- v.127) (Charles II, de Anjou, Charles, o Coxo, também chamado  rei de Jerusalém), rei da Apúlia e Nápoles (15), cujas ações más foram mil vezes mais frequentes do que as boas, daí a menção aos algarismos romanos  I e M nos vv. 128-9, que são também a primeira e última letra da palavra Ierusalem (16). Ver-se-á também naquele livro registro (abreviado, porque as ações más são muitas e o espaço é pequeno- v. 134-135) da “avareza e vilania/ daquele que guarda a ilha do fogo/ onde Anquises findou a longa vida” ( /.../ l’avarizia e la viltate/ di quei che guarda l’isola del foco,/ ove Anchise finì la lunga etate”- v. 130-132). Quem “guarda” tal ilha (chamada “do fogo” por causa da presença do vulcão Etna) (17), a da Sicília, é o seu rei Frederico II, de Aragão. E Anquises é o pai de Enéas, que ali faleceu (17). É citada ainda a “obra vergonhosa” ( l’opere sozze- v. 136 ) de Jaime e Jaime II, respectivamente tio e irmão desse Frederico, que desonraram, além de sua estirpe, duas coroas (v.137-8), pois o primeiro foi rei de Majorca e o segundo, de Aragão (18). São citados ainda os reis de Portugal (D.Diniz, que reinou de 1279 a 1325 ) e da Noruega (Akon VIII), além do rei da Rascia (ou Sérvia), que falsificou a moeda de Veneza. Quanto a D. Diniz e ao rei da Noruega, nota em Mandelbaum et al. afirma que “não parecem merecer o opróbrio de Dante”. Quanto a D. Diniz, especificamente, Graça Moura (19) considera pouco consistente a inclusão dele “no livro das malfeitorias dos reis por ser ‘todo dado a adquirir haveres’”, conforme antigo comentador, o que seria explicado pelo seu interesse nos bens da Ordem dos Templários, quando da liquidação desta.

            Encerra-se aqui, no v. 141, o conjunto de nove tercetos relativos aos maus reis citados, iniciado no v.115. Cada grupo de três tercetos começa, nos versos originais, por uma mesma expressão, cujas primeiras letras formam a palavra L- V (ou U)- E.  “Lue” significa “peste” ou “pestilência” (20). É assim, usando anáforas, que Dante cria um artifício para qualificar globalmente esses reis de seu tempo...

            O Canto conclui apostrofando a Hungria, que será “ditosa” (v. 142) se  não tiver mais maus governantes (como tem tido), assim como será Navarra, “se se defender com os montes que a circundam!” ( se s’armasse del monte che la fascia!- v. 144 ), i.e. os Pirineus. Por último, é citado indiretamente o reino de Chipre, dada a menção a duas cidades suas, Nicosia e Famagosta, que “se lamentam e bradam contra seu bestial rei” (per la lor bestia si lamenti e garra- v. 147), Henrique II de Lusignan, que não deve ser separado do rol de maus reis mencionado acima (21).     

Amos Nattini 

         

NOTAS


(1) MARTINS, Cristiano- “A Divina Comédia”. Segundo volume. Purgatório. Paraíso. Tradução, introdução e notas de Cristiano Martins. 5a edição. Belo Horizonte: Ed Itatiaia, 1989, p. 443.

(2) Id. ib,, p. 364 e 443.

(3) Id. ib., p.443.

(4) ZOLI, M. e ZANOBINI, F.- “La Divina Commedia: a cura di M.Zoli e F.Zanobini. Inferno. Purgatorio. Paradiso”. Bulgarini, 2013, p. 897.

(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.373.

(6) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p. 472- 473.

(7) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi.  New American Library, 2003, p.766.

(8) Cf citação de “Monarchia” in MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso, op cit, p.378.  .

(9) MARTINS, Cristiano- “A Divina Comédia”. Segundo volume, op cit, p. 446..

(10) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 476.

(11) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso, op cit, p.378.

(12) Id. ib., p. 379.

(13) Id. ib, p. 379

(14) Id. ib, p. 379

(15) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 478.

(16) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso, op cit, p.379.

(17) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 478; MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso, op cit, p.379.
.
(18) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso, op cit, p.379.

(19) MOURA, Vasco Graça—“Dante Alighieri- A Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco da Graça Moura. S.Paulo: Landmark, 2005- p. 765. .

(20) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso, op cit, p.378.  

(21) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 479.  

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-Para ouvir o Canto XIX:

 

https://www.youtube.com/watch?v=aALdjTPAR2I

 

(acessado em 23.09.20)

 

 


G. Di Paolo- Gli spiriti dell'aquila 

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

CANTO XVIII


PARAÍSO


Canto XVIII


            Enquanto Cacciaguida -- chamado de “espelho bem-aventurado” (specchio beato- v. 2), porque todos aqueles espíritos do Paraíso refletem a luz divina (1) –  se deleita só com seu pensamento (verbo- v.1), Dante prova o seu, “temperando com o doce o amargo” (/.../ temprando col dolce l’acerbo- v.3), uma vez que o “amargo” das previsões sobre o seu exílio é suavizado com o “doce” da perspectiva da glória literária.  


Salvador Dali
             Beatriz infunde-lhe confiança ao dizer a um Dante preocupado com seu futuro que ela está “perto daquele que endireita tudo o que está torto” (presso a colui ch’ ogne torto disgrava- v. 6), a primeira das diversas menções indiretas a Deus que aparecem neste Canto. Dante diz, na sequência, que encontra conforto em sua voz e que se absterá de contar, em seus versos, “que amor vi então nos olhos santos” (/.../ e qual io allor vidi/ ne li occhi santi amor, /.../- v. 8-9) dela, pois sua mente “não pode recuperar/ tanto, a menos que Outrem (Deus) a guie” ( /.../ per la mente che non può redire/ sovra sé tanto, s’altri non la guidi-  v. 11-12).  Contemplando-a, sua alma se liberta de qualquer outra preocupação, pois ele vê, contente, no olhar de Beatriz a “luz refletida” (secondo aspetto- v.18) da ”Eterna Beleza” (piacere etterno- v. 16) (Deus) (2), que brilhava diretamente nela.  

            Depois disso, Beatriz, com um sorriso que o subjuga, manda-o voltar-se para Cacciaguida, que pela intensificação de sua luz revelava querer falar ainda. O poeta então faz esta comparação: como em nosso mundo o rosto revela o sentimento que se apodera da alma, assim no Paraíso a intensificação da luz que encerra o espírito indica que este quer se manifestar (assim no flamejar do fulgor santo/ ao qual me voltei, percebi a vontade/ nele de falar comigo ainda um tanto: così nel fiammeggiar del folgór santo,/ a ch’io mi volsi, conobbi la voglia/ in lui di ragionarmi ancora alquanto-  v. 25-27).

O trisavô de Dante então se manifesta, associando o Paraíso à imagem de uma árvore invertida, “árvore que recebe vida do topo” (/.../  l’albero che vive de la cima- v. 29) (subentende-se, nessa metáfora, que suas raízes estão no Empíreo, a morada de Deus, acima do nono céu) (3). Essa árvore "produz fruto sempre e jamais perde folha” (e frutta sempre e mai non perde foglia- v.30). Ele se refere ao fato de que estão na “quinta entrada” (quinta soglia- v. 28) dessa árvore, vale dizer, no quinto céu do Paraíso, o céu de Marte, deus mitológico da guerra. Os espíritos  aí presentes foram “notáveis” (v.32), destacaram-se militarmente em sua vida terrena, “antes que viessem para o céu” (/.../ prima/ che venissero al ciel, /.../- v. 31-.32) e enriqueceriam qualquer poema. Cacciaquida manda o descendente olhar “os braços da cruz” (/.../ mira ne’ corni de la croce- v.34) e observar -- à medida que ele nomear esses espíritos -- o seu movimento sobre a cruz “tão rapidamente/ quanto o relâmpago na nuvem,” (/.../ lì farà l’atto/ che fa in nube il suo foco veloce- v. 35-36). Tal cruz, como se viu anteriormente, é aquela que congrega ou é formada pelos inúmeros lumes dos bem-aventurados daquele céu.

Na sequência, Cacciaguida menciona o nome das oito personalidades seguintes: Josué (personagem bíblico, que sucedeu a Moisés na condução dos hebreus à Terra Prometida), Macabeu (grande guerreiro que libertou os judeus da tirania do rei da Síria), Carlos Magno (742-814) (restaurador do Sacro Império Romano que combateu os sarracenos na Espanha), Orlando (ou Rolando), seu sobrinho, herói do épico medieval “Chanson de Roland”, Guilherme de Orange e Renouard, também heróis de um ciclo épico medieval francês (o primeiro um líder militar e o segundo um gigante sarraceno convertido ao cristianismo), duque Godfrey de Bouillon (1058-1100), que liderou a Primeira Cruzada, e Robert Guiscard (1015-1085), que defendeu o papa Gregório VII contra o imperador Henrique IV e lutou no sul da Itália) (4).  A esses, Dante acrescentou Cacciaguida, formando seus "nove notáveis" guerreiros exemplares que não coincidem na íntegra com os da tradição francesa (esta incluía três judeus, três cristãos e três pagãos). Dante excluiu cinco nomes (inclusive os três pagãos), e adicionou cinco heróis cristãos mais recentes, a saber: Roland, Guilherme de Orange, Renouard, Robert Guiscard e Cacciaguida (5).  O trisavô de Dante nasceu em Florença por volta de 1090. Participou da Segunda Cruzada, seguindo o imperador Conrado III por quem foi feito cavaleiro. Morreu em combate contra os infiéis cerca de 1147 (6). 

Carlos Magno por A. Dürer

Cacciaguida retira-se, movendo-se na cruz, como os outros lumes, com os quais se mistura. Mostra então “que artista ele era, dentre os cantores do céu” (qual era tra i cantor del cielo artista- v. 51).

Dante volta-se para Beatriz, em busca de orientação sobre o que fazer a seguir. E viu “os seus olhos tão brilhantes,/ tão jucundos” (e vidi le sue luci tanto mere,/ tanto gioconde,/ .../- v. 55-56) que, diz ele, sua aparência superava todas as outras ocasiões em que a vira. Os versos, na sequência, fazem duas comparações: a primeira é entre um homem que, por sentir mais deleite fazendo sempre o bem, “se dá conta de que a sua virtude avança” (s’accorge che la sua virtute avanza,- v. 60), e o próprio poeta, que igualmente se dá conta de que também avança, pois “girando/ junto com o céu tinha crescido o arco deste” (/.../ ‘l mio girare intorno/ col cielo insieme avea cresciuto l’arco,- v. 61-62), e por ver sua Beatriz tornar-se ainda mais bela (“vendo aquele milagre tornar-se ainda mais bela” :veggendo quel miracol più adorno- v.63). Dante indica  aqui, de modo indireto, a sua ascensão ao sexto céu, de Júpiter, de abrangência maior que o de Marte. Tal ascensão é também indicada pela maior beleza de Beatriz. A segunda comparação se faz entre “a mudança de cor/ em uma dama clara, quando seu rosto/ se livra do rubor da vergonha” ( /.../ ‘l trasmutare /.../ in bianca donna, quando ‘l volto/ suo si discarchi di vergogna il carco,- v.64-66) e a mudança que ocorreu diante dos olhos do poeta ao olhar o céu, ”pela alvura da temperada estrela/ sexta, que dentro de si me tinha acolhido” (per lo candor de la temprata stella/ sesta, che dentro a sé m’avea ricolto- v. 68-69). Vale dizer, a mudança na face da dama clara, que perdeu seu rubor, é comparada à mudança de cor que o poeta vê, ao passar do céu de Marte ao de Júpiter, do vermelho do primeiro ao branco prateado do segundo. Esta última "estrela" é chamada “temperada” (v. 68) porque se situa entre o frio de Saturno e o calor de Marte (7).

Dante vê depois naquela "estrela" de Jove (ou Júpiter) as luzes (almas) que continha  desenharem ante meus olhos os signos de nossa linguagem” (segnare a li occhi miei nostra favella- v.72), ou seja, letras. Tais luzes, ao formarem um D, depois, um I e um L (início da citação bíblica transcrita adiante), são comparadas às aves que se erguem dos rios e formam no céu um círculo ou outra figura. Primeiro, as “santas criaturas” (sante creature- v. 76) cantavam e depois, tomando a forma de uma daquelas letras, “detinham-se por um tempo,  em silêncio”  (un poco s’arrestavano e taciensi-  v.81).

Gustave Doré

Dante na sequência faz uma invocação a uma “divina pegaseana” (diva Pegasëa- v.82), ou seja, a uma musa não especificada (poderia ser Calíope, a musa da poesia épica, Clio, da história, ou alguma outra) (8). Pegasus é o cavalo alado que está associado a elas, pois, segundo a mitologia, com o casco o animal fez jorrar uma fonte no monte Helicon, local frequentado pelas musas (9). O poeta pede que essa musa, a quem ele se dirige, o ilumine e possa mostrar em seus versos, com a “potência” dela (tua possa- v. 87), os signos que viu e inscreveu em sua mente. Os espíritos formam 35 letras, uma a uma (“Mostraram-se em cinco vezes sete/  vogais e consoantes;/.../:  Mostrarsi dunque in cinque volte sete/ vocali e consonanti; /.../- v. 88-89) e ele lê então no céu, pouco a pouco, a frase bíblica extraída do Livro da Sabedoria (I,1)-- “Diligite iustitiam qui iudicatis terram” (Amai a justiça, ó vós que governais a terra) (10). Depois, no eme do último vocábulo (terram) –- que também evoca a letra inicial da palavra latina “monarchia” (defendida por Dante, como já sabemos, para absorver todo o poder temporal da Igreja, que deveria se concentrar somente no espiritual) (11) --- as luzes permaneceram agrupadas, “de modo que a prata de Jove/ parecia ali ornada de ouro” (/.../ sì che Giove/ pareva argento lì d’oro distinto-  v.95-96). Outras luzes descem ainda sobre esse eme, “cantando, creio, o Bem (Deus) que a si as move” (cantando, credo, il ben ch’a sé le move- v. 99).  A  seguir, nos versos abaixo (que incluem uma bela comparação), Dante afirma ter visto as almas/luzes formarem sobre o eme uma águia, interpretada como a águia imperial romana, símbolo da justiça terrena:

Poi, come nel percuoter d’i ciocchi arsi
surgono innumerabili faville,
onde li stolti sogliono agurarsi,

resurger parver quindi più di mille
luci e salir, qual assai e qual poco,
sì come ‘l sol che l’accende sortille;

e quïetata ciascuna in suo loco,
la testa e ‘l collo d’un’aguglia vidi
rappresentare a quel distinto foco.    (v.100-108)

Então, como quando alguém golpeia os cepos ardentes/ levantam-se inumeráveis fagulhas/ onde os néscios costumam ver augúrios,
daquele ponto (do eme) pareceu elevar-se mais de mil/ luzes, e subirem umas muito, outras pouco/ como o Sol (Deus) que as acende determinou;
e assentada cada uma em seu lugar,/ vi a cabeça e o pescoço de uma águia/  conformados por aquele arranjo de fogo.           



Prossegue o poeta: Aquele que pinta no céu (Deus) guia, mas não é guiado. D’Ele provém “aquela virtude que dá forma aos ninhos” (quella virtù ch’è forma per li nidi- v.111), ou a força inata que determina, por exemplo, o padrão a ser reproduzido toda vez que um pássaro faz seu ninho. Afirma adiante que as outras luzes, as que vieram depois, inicialmente formaram um lírio sobre o eme  mas a seguir ,“com pouco movimento, concluíram a figura da águia” (con poco moto seguitò la ‘mprenta- v. 114). Conforme Hollander, alguns comentadores afirmam que essa menção ao lírio não se refere à França mas a Florença, a primitiva, ideal, tal como descrita por Cacciaguida no canto XVI (12). Mas para Ciardi, a associação do lírio à monarquia francesa é obrigatória. Se a sabedoria e a justiça governassem, a França deveria estar unida ao Império sonhado por Dante, em vez de adotar uma política divisionista (13).   

Na apóstrofe seguinte, o poeta afirma que a justiça terrena é decorrência da justiça celeste, ou do céu de Júpiter (ela sofre a influência deste céu):

O dolce stella, quali e quante gemme
mi dimostraro che nostra giustizia
effeto sia del ciel che tu ingemme!      (v.115-117)

Ó doce estrela, tuas gemas/ me demonstraram que a justiça terrena/ é efeito do céu em que estás incrustada, como jóia!

            Dante continua a referir-se a esse astro, ao rogar à Mente (Deus), “em que se inicia/ teu movimento e tua virtude” (/.../ in che s’inizia/ tuo moto e tua virtute, /.../- v. 118-119), que volte a se indignar contra aqueles que se dedicam a “comprar e vender dentro do templo/ que se construiu com milagres e martírios” (/.../ comperare e vender dentro al templo/ che si murò di segni e di martìri-  v.122-123). É deles, da Igreja desvirtuada pelos maus papas, que “sai a fumaça que tolda os teus raios” (ond’ esce il fummo che ‘l tuo raggio vizia- v.120), os raios da influência benéfica do céu de Júpiter sobre a justiça terrena.

Gustave Doré

            Em nova apóstrofe, Dante dirige-se à “milícia celeste” (milizia del ciel-v.124), contemplada por ele da Terra (onde compõe seu poema, após retornar da viagem extraordinária) (14), rogando agora pelos que vivem aqui, “transviados seguindo mau exemplo! ” (dos papas) (tutti svïati dietro al malo essemplo!- v. 126).  Em nova crítica à Igreja de seu tempo, Dante afirma que, enquanto “Antes se fazia a guerra com espadas;” (Già si solea con le spade far guerra;- v. 127), agora se faz retirando “o pão que o terno Pai não nega a ninguém” (lo pan che ‘l pïo Padre a nessun serra- v. 129), ou seja, negando a hóstia pelas bulas de excomunhão. Dante então faz uma acusação direta ao papa da época em que escreve, João XXII (1316-1334) (15), que cobrava para revogar as bulas antes emitidas, lembrando-lhe de dois santos que morreram por essa Igreja (referida pela metáfora da “vinha”) que ele agora devasta, com seu comportamento deplorável:  

Ma tu che sol per cancellare scrivi,
pensa che Pietro e Paulo, che moriro
per la vigna che guasti, ancor son vivi.     (v.130-132)

Mas tu que escreves para depois cancelar/ lembra que Pedro e Paulo, mortos/ pela vinha que devastas, ainda estão vivos.

João XXII

Dante conclui o Canto ironicamente, imaginando que o papa em questão pode bem lhe dizer que seu anseio é por um outro santo, não pelos recém mencionados, “é por aquele que escolheu viver só/ e que por uma dança foi levado ao martírio” (sì a colui che volle viver solo/ e che per salti fu tratto al martiro,- v. 134-135). As referências à sua vida passada e à dança de Salomé, que pediu a Herodes a cabeça do santo (Mat. 14-1-12), identificam-no como S. João Batista, cuja imagem aparecia nos florins de ouro  de Florença... (16)


NOTAS



(1) LONGNON, Henri- “La Divine Comédie”. Traduction, préface, notes et commentaires par Henri Longnon. Paris: Garnier, 1951, p. 667.

(2) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p.447.

(3) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.373.

(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 373-374..

(5) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.448-449.

(6) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.  Penguin Books, 1971, p.364.

(7) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 374.

(8) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 452.

(9) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 375.
 
(10) MARTINS, Cristiano- “A Divina Comédia”. Segundo volume. Purgatório. Paraíso. Tradução, introdução e notas de Cristiano Martins. 5a edição. Belo Horizonte: Ed Itatiaia, 1989, p. 436, nota. 

(11) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 375.

(12) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.454.

(13) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi.  New American Library, 2003, p.759.

(14) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p.222

(15) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 376.

(16) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p. 224.

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Para ouvir o Canto XVIII:  
Amos Nattini