PARAÍSO
Canto V
O Canto inicia com palavras de Beatriz
referindo-se à própria resplandecência que, conforme explica a Dante, procede
da sua “visão da perfeição” (perfetto veder- v. 5), ou seja, da sua visão participante
da Sabedoria Divina. Ela flameja no “fogo
do amor” (caldo
d’amore- v.1) divino. Afirma
também que essa “eterna luz” (etterna luce- v. 8) -- a luz da Verdade ou da Sabedoria
Divina -- já atingiu o intelecto de Dante, que se sente atraído por ela, pois a
luz é tal “que, uma só vez vista, o amor por si para sempre acende” (che, vista, sola e
sempre amore acende- v.9).
E as outras coisas (boas) desejadas pela alma humana não são mais que
“vestígio” (vestigio-
v.11) dessa luz (1). Dito
isso, Beatriz retoma a pergunta formulada por Dante no final do Canto anterior,
a saber, se é possível compensar, por alguma boa obra, o voto não cumprido.
Beatriz, em sua resposta, começa
referindo-se ao maior dom da criação, concedido por Deus somente às “criaturas inteligentes” (creature
intelligenti- v.23)
(anjos e seres humanos), i.e., a “liberdade
da vontade” (de
la volontà la libertate- v.22).
Com essa observação, Beatriz salienta a importância do voto religioso, ou do “pacto entre Deus e o homem” (tra Dio e l’omo il
patto- v. 28), cujo
significado maior é o sacrifício voluntário desse “tesouro” (tesoro-
v.29), o livre-arbítrio, ofertado
conscientemente pelo ser humano à divindade (2)
Na sequência, ela passa a discutir a
questão da compensação, afirmando que dois aspectos aí são essenciais: o
sacrifício em si, e o pacto estabelecido, que “não se cancela jamais” (Quest’ultima già mai non si cancella- v. 46). Quanto ao primeiro, a matéria do
voto pode ser substituída por matéria diversa (v.52-54). Mas isso não depende
da própria pessoa e sim da “volta/ da
chave branca e da amarela” (/.../ la volta/ e de la chiave bianca e de la
gialla- v.56-57), vale
dizer, da Igreja (cf. Purg., canto IX,v. 115-120). Além disso, o sacrifício envolvido (“a carga de seus ombros”: carco a la sua spalla- v. 55) na substituição ao voto original
deve ser mais pesado, nestes termos:
e ogne permutanza credi stolta,
se la cosa dimessa in la sorpresa
come ‘l quattro nel sei non è raccolta (v.58-60)
e toda
mudança deves achar insensata/ se a coisa permutada na substituta/ não estiver
contida como quatro em seis
Mas
há votos que não são passíveis de compensação, referidos nos versos 61-63. Um
exemplo desses, segundo os comentaristas, é o voto de castidade, que, contra
sua vontade, não foram cumpridos por Piccarda e Costanza (cf. Canto IV).
Como é seu costume, o poeta a seguir
cita exemplos retirados da Bíblia e da mitologia clássica. São os mencionados
por Beatriz, que com eles ilustra sua recomendação para que “não façam votos, mortais, levianamente”
(Non
prendan li mortali il voto a ciancia- v.64).
Assim, não devemos ser imprudentes como Jefté, rei de Israel que -- conforme o
livro dos Juízes, XI – comprometeu-se, se fosse vitorioso em sua luta contra os
amonitas, a oferecer em sacrifício a Deus o primeiro ser vivo que saísse de sua
casa para recebê-lo. E quem saiu foi sua filha.
O outro exemplo citado é de Agamenon (“o grande chefe dos gregos”: il gran duca de’ Greci- v. 69), que prometera sacrificar à deusa
Ártemis a mais adorável criatura que nascesse naquele ano, porém recusou-se a
sacrificá-la quando viu que se tratava de sua filha Ifigênia. Mais tarde foi
obrigado a cumprir seu voto, pois os gregos atribuíram as más condições de
navegação ao não cumprimento daquele voto (3).
Beatriz conclui essa sua fala
recomendando que os cristãos sejam “mais ponderados
no agir” (Siate,
Cristiani, a muovervi più gravi- v.73)
e lembrando que, para sua salvação, lhes é suficiente “o novo e o velho Testamento” (il novo e ‘l vecchio Testamento- v.76) e a orientação do “pastor da Igreja” (pastor de la Chiesa- v.
77), i.e. do papa.
Depois, ambos sobem para o segundo
céu no sistema de Ptolomeu, o de Mercúrio. E para descrever essa rapidíssima ascensão,
Dante usa mais uma vez a imagem do arco e da seta:
e sì come saetta che nel segno
percuote pria che sia la corda queta,
così corremmo nel secondo regno. (v. 91-93)
e como
uma seta que o alvo/ atinge antes que a corda deixe de vibrar,/ assim subimos
ao segundo reino
Dante nota que a alegria de Beatriz
ao entrar ali fez mais brilhante o planeta (v. 94-96).
Amos Nattini |
A seguir, espíritos resplandecentes aproximam-se
deles, fato que inspira o poeta a fazer essa comparação com os peixes num
viveiro:
Come ‘n peschiera ch’è tranquilla e pura
traggonsi i pesci a ciò che vien di fori
per modo che lo stimin lor pastura,
sì vid’io ben più di mille splendori
trarsi ver’ noi, e in ciascun s’udia:
“Ecco chi crescerà li nostri amori.” (v.100-105)
Como em
viveiro de água tranquila e pura/ acorrem os peixes para o que se aproxima/
julgando vir sua comida,
assim
vi eu bem mais de mil esplendores/ aproximarem-se de nós, e de cada um se
ouvia:/ “Eis aqui quem aumentará nosso amor”.
Gustave Doré |
Aumentará o seu amor porque terão a
oportunidade de exercer a caridade ao esclarecer as dúvidas que o “ávido engenho” (cupido ingegno- v. 89) de Dante certamente vai lhes expor (há
pouco, no v. 90, ele afirmava “que já
novas questões tinha diante de si”: che già nuove questioni avea davante) (4).
Cada alma vinha a eles “cheia de alegria/ no fulgor claro que dela
saía” (/.../
piena di letizia/ nel folgór chiaro che di lei uscia- v. 107-108). Como disse Mark Musa, “Luz e
alegria estão inter-relacionados por
todo o Paradiso de Dante” (5)
Um desses espíritos (que será
identificado no canto seguinte como Justiniano, o imperador de Roma) toma a
iniciativa de dirigir-se a Dante, dizendo-lhe: “se tens o desejo/ de saber quem somos, satisfaça-o” (/.../ se disii/ di
noi chiarirti, a tuo piacer ti sazia- v. 119-120), ao mesmo tempo em que Beatriz encoraja-o a se manifestar.
Dante então afirma que tal espírito se aninha em sua própria luz;
constata sua ignorância em não saber quem ele é nem porque está naquela “esfera/ que se vela aos mortais por outros
raios” (/.../
spera/ che si vela a’ mortai con altrui raggi- v. 128-129), vale dizer, Mercúrio, que se oculta
de nós pelos raios do Sol.
Dante conclui o Canto fazendo mais
uma comparação:
Sì come il sol che si cela elli stessi
per troppa luce, come ‘l caldo ha róse
le temperanze d’i vapori spessi,
per più letizia sì mi si nascose
dentro al suo raggio la figura santa;
e così chiusa chiusa mi rispuose
nel modo che ‘l seguente canto canta. (v. 133-139)
Como o Sol oculta-se
a si mesmo/ pela luz excessiva, quando o calor consome/ os vapores espessos que
a moderavam,
assim se ocultou,
pela alegria acrescida/ dentro de seus raios a figura santa;
e assim encerrada ela
me respondeu/
no modo como o
seguinte canto canta.
Destaque-se
a anáfora (ou repetição) contida nesses dois últimos versos citados (chiusa chiusa; canto canta), um recurso
retórico para reforçar o efeito do que é dito (6).
Salvador Dalí |
NOTAS
(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony
Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam
Books, 1986- p. 325
(2) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume III: Paradise”. Translated
with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986,
p.61
(3) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The
Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi. New American Library, 2003, p. 636.
(4) LONGNON, Henri- “La Divine Comédie”.
Traduction, préface, notes et commentaires par Henri Longnon. Paris: Garnier,
1951, p. 640.
(5) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume III: Paradise”, op cit,
p.66.
(6) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri-
Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction
& Notes by Robert Hollander.
Doubleday, 2007, p. 129.
Para ouvir o Canto V:
https://www.youtube.com/watch?v=mUPuZY3dahI
(acessado em 26.08.20)