quinta-feira, 30 de novembro de 2017

CANTO XII


PARAÍSO 


Canto XII


            Tão logo Tomás de Aquino, “a bendita chama” (la benedetta fiamma- v. 2), encerrou sua fala, a roda daquelas luzes, formada pelos espíritos sábios, começou a girar de novo; e antes que esta completasse seu giro, outra roda de luzes a circundou, unindo seu movimento e canto ao movimento e canto da primeira.  O poeta diz que esse canto celeste é superior aos cantos terrenos mais sublimes imaginados pelos homens, e faz outra comparação de superioridade: 

canto che tanto vince nostre muse,
nostre serene in quelle dolci tube,
quanto primo splendor quel ch’e’ refuse.    (v. 7-9)

canto que tanto vence nossas musas,/ nossas sereias em suas doces vozes,/ quanto a luz direta vence a reflexa.

            Segundo a mitologia clássica, as musas eram nove divindades irmãs que presidiam as artes enquanto as sereias eram seres mistos -- metade mulher, metade pássaro -- que com seu canto cativante atraíam os marinheiros para as ilhas rochosas em que viviam, causando a desgraça deles (1).  

            Na sequência, “as duas guirlandas” (le due ghirlande- v. 20) que giram em torno de Dante e Beatriz são comparadas a um arco-íris duplo, sendo o segundo arco entendido como reflexo ou “eco” do primeiro. Dante recorre aqui novamente à mitologia, referindo-se à ninfa errante (chamada Eco) que se consumiu por causa de seu amor não correspondido por Narciso, restando dela somente a voz:  

nascendo di quel d’entro quel di fori, 
a guisa del parlar di quella vaga
ch’ amor consunse come sol vapori      (v.13-15)

nascendo o arco de fora do de dentro/ como o eco da voz daquela ninfa errante/ que o amor consumiu como sol, a neblina

Gustave Doré

Assim, "a (guirlanda) externa imitava a interna” (e sì l’estrema a l’intima rispuose- v. 21). Antes, no v. 12, o poeta já fizera mais uma referência mitológica quando afirmou que Juno, senhora do Olimpo, enviara à Terra a “sua serva” (sua ancella) (i.e Íris, deusa do arco-íris). Há ainda nessa passagem também uma referência bíblica, quando os versos nos lembram que os arcos-íris estão associados ao “pacto que Deus fez com Noé” (per lo patto che Dio con Noè puose- v. 17), assegurando que nunca mais ocorrerá outro dilúvio. 

Depois, a dança e o canto param e “do coração de uma das luzes novas/ se ouviu uma voz” (del cor de l’una de le luci nove / si mosse voce, /.../- v. 28-29).  Dante diz que se volta para ela como “agulha à Estrela Polar” (l’ago a la stella- v. 29), uma referência implícita à bússola. Essa voz é de  S.Boaventura, que só se identificará mais adiante, no v.127. Tal franciscano fará agora o elogio do dominicano S.Domingos, assim como no canto anterior um dominicano, S.Tomás de Aquino, fez o elogio de S.Francisco, indicando  que no Paraíso as divergências terrenas entre as duas ordens religiosas não existem. Aliás, os comentaristas ressaltam o paralelismo em vários aspectos deste canto XII com o canto XI (2). 

S. Boaventura justifica do modo seguinte o elogio que vai fazer agora de S.Domingos, uma vez que o de S.Francisco já foi feito:  Justo é que, onde está um, o outro se introduza” (Degno è che, dov’ è l’un, l’altro s’induca- v. 34) para que “assim sua glória brilhe conjuntamente” (così la gloria loro insieme luca- v. 36). 

Dizem os versos: como “as fileiras de Cristo” (L’essercito di Cristo- v. 37), ou seja, os membros da Igreja Católica, “se moviam lentas, hesitantes e escassas” (si movea tardo, sospeccioso e raro- v. 39) atrás da insígnia (dietro a la ’nsegna- v. 38), i.e. da cruz), Deus ajudou essa milícia, “só pela graça, não por seu mérito” (per sola grazia, non per esser degna- v. 42). “Socorreu a sua esposa” (a Igreja) (“/.../ a sua sposa soccorse- v. 43) “com dois campeões cuja ação e pregação/ fizeram o povo disperso congregar-se” (con due campioni, al cui fare, al cui dire/ lo popol disvïato si raccorse- v. 44-45). Os dois campeões são naturalmente os dois santos citados. A “ação” mencionada é a de benemerência por parte dos franciscanos, baseada na caridade ou no amor, e a “pregação”, que se baseia na razão, é aquela exercida por parte dos dominicanos (cuja ordem também é conhecida como a dos Pregadores).

S. Boaventura então inicia sua fala situando geograficamente a região de nascimento de S. Domingos, “Naquela parte da Terra de onde surge/ o gentil Zéfiro” (o vento oeste) (In quella parte ove surge /.../ Zenfiro dolce /.../- v.46-47), na extremidade ocidental da Europa (e do mundo então conhecido), ou seja a Espanha. É aí que a primavera primeiro surge (por isso, a menção às “novas folhas” (le novelle fronde- v.47) de que o continente se reveste) e é também aí que se situa Calaruega, local de nascimento do santo: 

dentro vi nacque l’amoroso drudo
de la fede cristiana, il santo atleta
benigno a’ suoi e a’ nemici crudo;      (v.55-57)

ali nasceu o amoroso vassalo/ da fé cristã, o santo atleta/ bom para os seus, áspero com os inimigos;  

Nesse terceto, em que se destaca a atuação futura de S.Domingos contra os heréticos, “atleta” deve ser entendido como “combatente” (3). 

Antes, os versos disseram que Calaruega está “sob a proteção do grande escudo/ em que o leão é dominado e domina” (sotto la protezion del grande scudo/ in che soggiace il leone e soggioga-  v. 53-54), ou seja, está sob a proteção da Casa de Castela, cujo escudo, dividido em quartéis, apresenta em um lado um castelo sobre um leão (este é dominado), e no outro um leão sobre um castelo (aquele é dominador), ambos associados aos reinos de Castela e de Leão  (4).   

Escudo de Castilla y León. 

 Seguem-se menções a episódios da vida de S. Domingos (1170-1221), supostamente pertencente à nobre família Guzmàn, cujos pais se chamavam Felix e Joana. Ele ingressou na universidade de Palencia aos 14 anos e aí estudou teologia por dez ou doze anos. Fundou a ordem dos Pregadores em 1215.  Ainda no ventre materno, consta que sua mãe sonhou que dava à luz  um cão preto e branco o qual mantinha na boca uma tocha ardente a qual incendiava o mundo (5). Preto e branco tornaram-se as cores dos hábitos dos frades dominicanos, e a tocha passou a simbolizar o zelo da pregação do santo (6). Essas informações nos permitem entender porque sua mãe grávida é chamada de “profetisa” nos versos abaixo. Ela passa a deter essa capacidade em consequência da influência exercida, ainda em seu ventre, pela “força” da mente recém-formada do santo: 

e come fu creata, fu repleta
sì la sua mente di viva vertute
che, ne la madre, lei fece profeta      (v. 58-60)

e assim que foi criada, tão repleta/ ficou sua mente de viva força/ que ainda na mãe a fez profetisa  

Aliás, aquele sonho relaciona-se também ao antigo trocadilho com o termo “dominicano”:  Domini canes,  os cães do Senhor (7). 

Outro episódio biográfico, relacionado ao batismo de Domingos, é referido indiretamente na sequência. Diz respeito a sua madrinha (aquela que consentiu por ele, no ato do batismo, em resposta à pergunta se queria ser batizado). Ela viu em sonho o afilhado com uma estrela brilhando na testa, iluminando o mundo (8).

Dante se expressa assim: 

la donna che per lui l’assenso diede,
vide nel sonno il mirabile frutto
ch’uscir dovea di lui e de le rede;       (v. 64-66)

a dama que deu consentimento por ele/ viu em sonho o fruto admirável/ que devia resultar dele e dos seus herdeiros  

Antes, os versos afirmaram que o batismo de S. Domingos significou o seu “casamento” com a Fé. Esse é mais um ponto a salientar quanto ao paralelismo deste canto com o anterior, onde se disse que S. Francisco se “casou” com a Pobreza. 

No batismo, a criança recebeu o nome de “Dominicus”, possessivo de “Dominus”, que quer dizer “do Senhor” (9). Assim, ele foi nomeado “com o possessivo de quem ele era inteiramente” (del possessivo di cui era tutto- v. 69). 

Após menção a episódios de sua infância, em que “Muitas vezes, silencioso e desperto/ foi encontrado no chão pela sua nutriz” (Spesse fïate fu tacito e desto/ trovato in terra da la sua nutrice-  v. 76-77), o poeta explora também o significado do nome dos pais de S. Domingos: Felice (Felix, em latim) e Giovanna, afirmando que o pai é “verdadeiramente feliz” (veramente Felice- v. 79), naturalmente por ter tido esse filho (assim como se disse que Calaruega é “afortunada” (fortunata- v.52), por ter sido a cidade natal do santo). Quanto à mãe, ela é “verdadeiramente Joana” (veramente Giovanna- v. 80), subentendendo Dante que o leitor conheça o significado desse nome na língua hebraica-- “cheia da graça” ou “graça de Deus” (10). 

S.Domingos dedica-se depois aos estudos “Não pelo mundo, pelo qual agora os homens se empenham” (Non per lo mondo, per cui mo s’affanna- v. 82) (...) “mas por amor ao verdadeiro maná” (ma per amor de la verace manna- v. 84). Há aqui uma crítica do poeta dirigida ao estudo utilitarista que ele constatava então. As pessoas então se interessavam pelo Direito, como o “Ostiense” citado no v.83 (cardeal de Óstia, autor de uma obra de comentários sobre os decretos papais, cujo estudo substituía o das Sagradas Escrituras), ou pela Medicina, como Taddeo (Alderotti) (v.83), interessado no ganho material proporcionado por esse estudo (11). 

Em pouco tempo, S. Domingos se torna “um grande professor” (gran dottor- v. 85) e se põe “a cuidar da vinha” (a circüir la vigna- v. 86), metáfora da Igreja, “que logo seca se o vinhateiro é negligente” (che tosto imbianca, se ‘l vignaio è reo- v.87), uma crítica velada ao papa, que em 1300 era  Bonifácio VIII.  

Na sequência, Dante, pela voz de S. Boaventura, faz uma critica explícita ao ocupante da sede pontifícia (v.89-90), referindo-se às práticas usuais da época. Afirma que S.Domingos não pediu ao papa, como certamente faziam (e eram atendidos) outros religiosos, para distribuir só “dois ou três em vez de seis” (/.../ o due o tre per sei- v.91), “nem o primeiro benefício vacante” (non la fortuna di prima vacante- v.92) nem pediu para seu uso os dízimos da renda  que são dos pobres de Deus” (/.../ decimas, quae sunt pauperum Dei- v.93 mas sim “licença para combater” (licenza di combatter /.../- v. 95) os heréticos. Dessa “semente” (seme- v.95), diz S. Boaventura a Dante, “nasceram as vinte e quatro plantas que te circundam” (del qual ti fascian ventiquattro piante-  v.96). A metáfora da semente, aqui, relaciona-se à boa doutrina -- a doutrina ortodoxa, pela qual se bateu o Santo -- que dará frutos naquelas “plantas’, ou melhor, naqueles espíritos sapientes que formam as duas rodas que circundam Dante e Beatriz.  

E assim partiu S. Domingos para a tarefa a que se propusera:  

/.../ si mosse
quasi torrente ch’ alta vena preme; 

e ne li sterpi eretici percosse
l’impeto suo, più vivamente quivi
dove le resistenze eran più grosse.       (v. 98- 102)

partiu,/ como torrente que brota de alta fonte;
e as matas heréticas golpeou/ mais fortemente ali/ onde a resistência era maior.

            Essa era a região de Provence, no sul da França, onde estava mais  difundida a heresia dos albigenses ou cátaros (12).  

Amos Nattini

O poeta prossegue explorando esse filão vegetal afirmando que de S.Domingos se originaram vários córregos (i.e. os discípulos) (13) “que o jardim católico irrigam/ de modo a deixar seus arbustos mais vivos” (onde l’orto católico si riga,/ sì che i suoi arbuscelli stan più vivi-  v.104-105). 

Ao concluir o elogio a S. Domingos, S. Boaventura  invoca agora uma imagem bélica, a da biga, um antigo carro de combate de duas rodas geralmente puxado por dois cavalos (14). Uma das rodas da biga “com a qual a Santa Igreja se defendeu” (in che la Santa Chiesa si difese- v. 107) é associada à atuação militante dos dominicanos. A outra roda é associada à dos franciscanos. São as duas ordens fundadas no século XIII cujos fundadores recomendavam o “primeiro conselho que deu Cristo” (/.../ primo consiglio che diè Cristo- v. 75), o da pobreza, conselho não seguido pelas outras (ricas) ordens da Igreja.   

Ma l’orbita che fé la parte somma
di sua circunferenza, è derelitta,
sì ch’è la muffa dov’era la gromma.    (v.112-114)

Mas a trilha feita pela suma parte (S.Francisco)/ dessa circunferência é agora abandonada/ de modo que há mofo onde havia crosta. 

Na pipa de vinho, segundo os comentaristas, o produto de boa qualidade deixa uma crosta, diferentemente do de má qualidade. A situação atual da ordem franciscana é, assim, comparada implicitamente a essa pipa, em que o mofo substituiu a crosta...

 A partir desse ponto, o franciscano S. Boaventura inicia desse modo sua crítica à situação atual de sua própria ordem, mais um aspecto a destacar do paralelismo deste canto com o anterior, pois lá também o dominicano S. Tomás, nessa altura, criticava a situação presente da ordem dos Pregadores.

A “família” (famiglia- v. 115) franciscana não segue mais as pegadas de Francisco do modo adequado, e sim invertidamente. Esses franciscanos desviados são “o joio” (il loglio- v.119) que “se lamentará por ser excluído do celeiro” (si lagnerà che l’arca li sia tolta- v. 120), uma metáfora de seu julgamento futuro pelo tribunal divino.   

No “livro” (nostro volume- v. 122) da ordem, que abrange todos os seus membros, ainda existem os bons seguidores do fundador, pois pode-se ler em algumas de suas páginas -- “Eu sou aquele que sempre fui” (/.../ ‘I’ mi son quel ch’i’ soglio’- v.123).  Mas essa gente não será de Casale nem de Acquasparta (v. 124), não será formada por aqueles que, em relação à Regra da ordem, “a relaxam, ou a tornam mais severa” (ch’uno la fugge e altro la coarta- v. 126). Esses versos remetem ao conflito então existente entre duas concepções relativas à vida franciscana, a dos “Conventuali” e a dos “Spirituali” (15). Matteo d’Acquasparta, que foi geral da ordem, propôs relaxar certas disposições da Regra definida por S.Francisco. Porém Ubertino da Casale, líder dos “espirituais”, se opôs a isso, uma vez que radicalizara seu franciscanismo, adotando uma concepção muito mais rígida e severa, que chegou inclusive a ser condenada pelo papa em 1317, sendo Casale mais tarde acusado de heresia (16). Os bons seguidores de S. Francisco serão assim os que seguem a Regra, sem adotar nenhuma dessas duas posições. 

No v. 127, aquele que fala se auto-identifica: é a alma de Boaventura de Bagnoregio. Trata-se de S. Boaventura (1221-1274), que foi professor de filosofia e teologia e geral da ordem dos franciscanos, sendo considerado um dos doutores da Igreja, com o título “Doctor Seraphicus” (17).  

O canto conclui com a enumeração que ele faz dos demais onze espíritos luminosos integrantes da segunda roda circundante (18): os franciscanos Illuminato e Agostinho, que “foram dos primeiros pobrezinhos descalços” (che fuor de’ primi scalzi poverelli- v. 131);  Hugo de S. Victor, místico e teólogo do século XII, pertencente a essa abadia perto de Paris, então centro de misticismo; Pedro Mangiadore, devorador de livros, daí o seu apelido, falecido em S. Victor em 1179, autor de uma história da Igreja; Pedro Hispano, o papa português João XXI, nascido em Lisboa c. 1225, autor de um manual de lógica em doze volumes; o profeta bíblico Natan, que censurou o rei Davi por provocar a morte do marido de Betsabé para poder casar com ela; o patriarca metropolitano e arcebispo de Constantinopla S. João Crisóstomo (c.345-407); Anselmo, arcebispo de Canterbury de 1093 a 1109, ano em que faleceu;  Donato, “que à arte primeira dedicou-se” (ch’a la prim’arte degnò porre mano-  v. 138), ou Aelius Donatus, um erudito romano do século IV, autor de uma gramática latina muito usada na Idade Média (a gramática era a primeira das setes artes liberais da educação medieval); Rabano ou Rabanus Maurus (c.776-856), arcebispo de Mainz, erudito, comentador da Bíblia; e o abade Joaquim de Fiore (“de espírito profético dotado”: di spirito profético dotato- v. 141) (c.1145-c.1202), natural da Calábria. Segundo outro comentarista (19), a doutrina dele, derivada de uma interpretação mística da Bíblia, exerceu forte influência sobre os franciscanos “espirituais”.  Porém muitas de suas ideias foram condenadas pela Igreja. 


NOTAS  

(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.352

(2) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p. 303-304.  

(3) ZOLI, M. e ZANOBINI, F.- “La Divina Commedia: a cura di M.Zoli e F.Zanobini. Inferno. Purgatorio. Paradiso”. Bulgarini, 2013, p. 823. 

(4) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 292. 

(5) Id. ib, p. 291. 

(6) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.353.

(7) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 293.

(8) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.353.

(9) Id. ib., p. 353. 

(10) Id. ib., p. 354.   

(11) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.  Penguin Books, 1971, p. 164.

(12) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.355. Cf também HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 297.

(13) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.355.

(14) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p. 154.

(15)  MAGUGLIANI, Lodovico— Dante Alighieri. “La Divina Commedia- Paradiso” . Introduzione di Bianca Garavelli. Note di Lodovico Magugliani.  Biblioteca Universale Rizzoli, 1996, p. 116.    

(16) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.355.

(17) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 299. 

(18) Id. ib, p. 300-303.

(19) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.357.

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Para ouvir o Canto XII:

https://www.youtube.com/watch?v=UibG271BFXk

(acessado em 8.09.20)



"Auto de Fé de S. Domingos de Gusmão"- obra de Pedro Berruguete




sexta-feira, 20 de outubro de 2017

CANTO XI

PARAÍSO

Canto XI


            Os versos iniciais do Canto XI registram a alegria de Dante por estar no Sol com Beatriz,  liberto (temporariamente) da “insensata preocupação dos mortais” (O insensata cura de’ mortali- v.1), que podendo voar alto usam a mente de modo defeituoso (v.2) que lhes faz “bater as asas para baixo” (/.../ in basso bater l’ali- v. 3). Tal preocupação é ilustrada pela menção a diversas atividades exemplificativas daquelas a que se dedicam os homens, lícitas ou não, mas sempre inferiores às mais elevadas espiritualmente. São elas as atividades do direito, da medicina (referida indiretamente pela menção aos “Aforismas” de Hipócrates), da vida eclesiástica, as do monarca, do ladrão, dos dirigentes públicos, dos luxuriosos e dos ociosos. 

              Os espíritos que se mostram no astro voltam a formar uma roda em torno de Dante e Beatriz. O poeta evoca então uma imagem relacionada a um objeto de cena dos rituais religiosos nos templos: cada espírito parado (no lugar que antes ocupava na roda) é comparado a uma “vela em seu suporte(/.../ come a candellier candelo- v. 15). E um daqueles espíritos, ou melhor um daqueles lumes, tem a sua luz intensificada quando começa a falar com Dante (v. 18). Isso decorre de seu amor acrescido pelo ato generoso de esclarecer o poeta (1). Trata-se de S. Tomás de Aquino, pois Dante diz que é a mesma luz que antes tinha falado com ele (v. 17).

            Tomás inicia sua fala (que se estende até o final do Canto) afirmando que conhece os pensamentos de Dante, as suas dúvidas, e isso é uma decorrência do fato de que ele se beneficia da Luz Eterna (de Deus onisciente)  que é causa de sua própria resplandecência. Ele afirma, sem que Dante lhe informe antes, que este tem dúvidas a respeito de dois pontos de sua manifestação anterior, abordada no canto X. A primeira refere-se ao v. 96 desse canto, quando Tomás afirmou com relação aos membros da ordem fundada por S. Domingos que "bem se nutre quem não se perde em coisas vãs". A dúvida de Dante diz respeito à interpretação desse verso. A outra dúvida relaciona-se ao v. 114 do mesmo canto, em que Tomás enfatizou a sabedoria do rei Salomão, não superada por ninguém, segundo ele (2). Tomás vai se concentrar a partir de agora na primeira questão, enquanto a segunda será tratada no canto XIII.  

            O teólogo inicia referindo-se às relações da Providência com a Igreja, que “desposou” Cristo quando ele agonizava na cruz. A Igreja é “a esposa daquele que em altos brados/ com o sangue sagrado a desposou” (la sposa di colui ch’ ad alte grida/ disposò lei col sangue benedetto-  v. 32-33). Assim, a Providência, a fim de que a Igreja -- a “esposa” de Cristo -- se voltasse para Ele e exercesse a sua missão mais segura de si, “designou dois príncipes em seu favor/ que num lado e em outro a guiassem” (due principi ordinò in suo favore,/ che quinci e quindi  le fosser per guida- v.35-36). O primeiro “príncipe” é identificado como S. Francisco de Assis, fundador da ordem dos franciscanos. Ele é associado à ordem angélica dos serafins (a mais alta da hierarquia dos anjos), que simbolizam o amor. O segundo, S. Domingos, fundador da ordem dos dominicanos, é associado à ordem dos querubins, que simbolizam o conhecimento (3).  Assim, eles guiam a Igreja num lado, o do amor ou caridade, e no outro, o do conhecimento ou saber. O poeta, pela voz de Tomás, se refere a eles nestes termos:

L’un fu tutto serafico in ardore;
l’altro per sapïenza in terra fue
di cherubica luce uno splendore.   (v.37-39)

Um foi todo seráfico em seu ardor;/ o outro, pela sua sabedoria, foi na terra/ um esplendor de luz querubínica.

O dominicano Tomás de Aquino passa então a fazer o elogio da vida de  S.Francisco (1182-1226). Mas alerta que “se louva ambos/louvando um” (/.../ d’amendue/ si dice l’un pregiando /.../- v.40-41), “pois a obra deles voltou-se ao mesmo fim” (perch’ ad un fine fur l’opere sue- v.42), a salvação dos homens. No canto XII, a situação se inverte, e um franciscano fará o elogio de S.Domingos, de modo que o poeta mostra aqui a sua concepção conciliadora entre as duas ordens, ignorando as discordâncias entre elas. Os franciscanos adotavam a perspectiva de Santo Agostinho enfatizando a fé enquanto os dominicanos, influenciados por Aristóteles, valorizavam a razão, que deveria fornecer as premissas da teologia (4).  

Na sequência, Tomás passa a se concentrar na vida de S.Francisco, iniciando por uma rápida caraterização geográfica da região de Assis, a cidade italiana onde ele nasceu, situada numa “encosta fértil de alto monte” (fertile costa d’alto monte/.../- v. 45), que é o monte Subasio, em seu lado ocidental. Foi aí que “nasceu ao mundo um sol/ como faz este, às vezes, do Ganges” (/.../ nacque al mondo un sole,/ come fa questo talvolta di Gange-  v. 50-51).  O poeta assim usa essa metáfora do sol associando-a a S. Francisco, ao mesmo tempo em que evoca fisicamente o astro em que o poeta está naquele momento, astro esse que nasce sobre o rio Ganges, na Índia, no verão. Isso dá margem a que Dante, nos v. 52-54, brinque com as palavras, dizendo que quem quiser designar o lugar não deve dizer “Ascesi” (Assis no italiano toscano de Dante, que é também particípio passado do verbo “ascendere”, subir, elevar-se) (5) mas “Oriente”, pois é termo mais apropriado para indicar onde ocorre não qualquer ascensão mas especificamente a do Sol. O poeta prossegue no uso dessa metáfora. O sol, que é S.Francisco, desde cedo, “começou a fazer sentir na terra/ algum conforto pela sua grande virtude” (ch’el cominciò a far sentir la terra/ de la sua gran virtute alcun conforto;- v. 56-57), expressa pelo amor a “uma dama” (v.58)-- a Pobreza personificada, conforme será explicitado no v. 74 -- que é motivo de conflito com o seu pai:

ché, per tal donna, giovinetto, in guerra
del padre corse, a cui, come a la morte,
la porta del piacer nessun diserra;       (v. 58-60)

pois, ainda jovem, por uma dama em guerra/ entrou com o pai, e a ela, como à morte,/ a porta ninguém abre prazerosamente;


Giotto- S.Francisco renuncia aos bens materiais 

Como Francisco usou “mal” o dinheiro do pai (o comerciante Pietro Bernardone), doando-o aos pobres, este o deserdou formalmente perante a corte episcopal, chamada no v. 61 de “corte espiritual” (spirital corte). No verso seguinte, há sugestão de linguagem burocrática (reforçando a formalidade do ato) pelo uso da expressão latina “et coram patria” (“na presença do pai”- v. 62). Francisco concorda com a atitude paterna e inclusive se desnuda em praça pública de Assis para lhe devolver as roupas (6). O poeta trata esse episódio biográfico como o momento em que Francisco “desposa” a Pobreza, amando-a cada vez mais depois disso (v.61-63). O poeta prossegue explorando essa imagem da mulher que personifica a Pobreza (o que fará até o fim da narrativa sobre a vida do santo, no v. 117), referindo-se a Cristo como seu “primeiro marido” e mostrando que só com a vinda de Francisco ao mundo é que ela teve um segundo pretendente::   

Questa, privata del primo marito,
millecent’anni  e più dispetta e scura
fino a costui si stette sanza invito;      (v. 64-66)

Esta, viúva do primeiro marido,/ mais de mil e cem anos desprezada e ignorada/  até ele vir permaneceu sem ser requisitada;

            Dante então acrescenta que para a Pobreza ser amada pelas pessoas não foi suficiente o exemplo histórico do encontro do pescador Amiclate com Júlio César em campanha, “aquele que o mundo todo atemorizou” (colui che a tutto ‘l mondo fé paura- v. 69). Por ser extremante pobre, Amiclate não teve medo dos seus legionários saqueadores (7).  Nem foi suficiente o fato de que a Pobreza subiu à cruz junto com o Cristo desnudo, de tudo despojado, enquanto Maria ficou aos pés desta.

            O exemplo de Francisco foi seguido por outros. O v. 79 faz menção a Bernardo de Quintavalle, um rico comerciante, o primeiro que “se descalçou” (si scalzò prima, /.../- v.80), i.e, o primeiro discípulo a segui-lo, após vender tudo o que tinha e doar o dinheiro para os necessitados. Logo são citados também outros seguidores pioneiros (v.83).  

Depois, Francisco, com a “mulher” e membros da sua “família” (v.86) (os discípulos) --  já cingidos com a humilde corda” (che già legava l’umile capestro- v. 87) (a corda, por ser usada para controlar cavalos e bois, é símbolo de autocontrole e humildade) (8) --, partem para ver o papa Inocêncio III. Não obstante ser filho de um comerciante (e não de um nobre) e sua aparência mendicante “que causava desprezo e admiração” (/.../ per parer dispetto a maraviglia- v.90), Francisco, “como um rei, sua dura regra/ expôs a Inocêncio” (ma regalmente  sua dura intenzione/ ad Innocenzio aperse, /.../- v. 91-92), de quem obtém o “primeiro selo à sua ordem religiosa” (primo sigilo a sua religïone- v.93), vale dizer, obtém aprovação à ordem franciscana.   

Mais tarde (na realidade, 13 anos depois), com o crescimento do “número de pobrezinhos” (gente poverella- v.94), “a santa vontade desse chefe de pastores (la santa voglia d’esto archimandrita- v.99) (Francisco) foi cingida por uma “segunda coroa” (seconda corona- v.97) (um segundo “selo”, ou aprovação). O poeta refere-se aqui à bula do papa Honório III  reconhecendo a ordem (9).  

Giotto-  S. Francisco perante o papa Honório III

Os versos seguintes (v. 100-105) mencionam rapidamente a viagem que Francisco -- com “sede de martírio” (sete del martiro- v.100), para imitar Cristo -- fez ao Egito, juntamente com doze seguidores, acompanhando o exército da Quinta Cruzada, quando ele tentou converter, sem sucesso, um sultão ao cristianismo.  Constatando ser essa gente “muito imatura para a conversão” (e per trovare a conversione acerba/ troppo la gente /.../- v. 103-104), “retornou aos (bons) frutos do campo italiano” (redissi al frutto de l’italica erba- v. 105)  (10).  

Tomás de Aquino conclui sua narrativa sobre a vida de S. Francisco mencionando o terceiro e “último selo” (l’ultimo sigillo- v. 107) que lhe foi conferido, agora não pelo papa mas pelo próprio Cristo.  Refere-se às cinco chagas deste (duas nos pés, duas nas mãos, pela crucificação, e uma ao lado, no tórax, produzida pela lança de um soldado) que Francisco também passaria a apresentar, nos dois últimos anos de sua vida, recebidas no monte Alverne, o “áspero monte entre o Tibre e o Arno” (nel crudo sasso  intra Tevero e Arno- v. 106) (11).

El Greco- S.Francisco recebendo os estigmas 

Antes de morrer, Francisco, “aos seus irmãos” (a’ frati suoi, /.../- v.112) “recomendou a sua dama mais querida” (raccomandò la donna sua più cara- v. 113), i.e. a Pobreza. A “alma luminosa” (l’anima preclara- v.115) dele devia partir do seio desta, enquanto “ao corpo não quis outro ataúde” (e al suo corpo non volle altra barra- v.117) senão o da Pobreza. Segundo o comentarista, os biógrafos de  Francisco contam que ele, ao sentir a aproximação da morte, desejou ser levado à distante igreja de Porziuncola, e que seu corpo fosse deixado lá,  sobre a terra nua, despojado das roupas (12). 
Uma vez concluída seu exposição sobre a vida de S. Francisco, o dominicano Tomás de Aquino passa a falar, a partir do v. 118, sobre o “patriarca” (patriarch- v.121) de sua ordem. Inicia por explorar a imagem metafórica da “barca de Pedro” (la barca di Pietro) (a Igreja), referida nos vv. 119-120, afirmando que S. Domingos, como “o digno colega dele” (S.Francisco) manteve tal barca “no alto mar pelo curso certo” (/.../ in alto mar per dritto segno- v.120). Quem segue o patriarca dos dominicanos enquanto comanda esse barco “sabe que carrega boa mercadoria” (discerner puoi che buone merce carca- v. 123). Mas seu rebanho, com poucas exceções, prefere outro alimento, conforme esta  crítica que Dante faz aos dominicanos de sua época pela boca de Tomás:

Ma ‘l suo pecuglio di nova vivanda
è fatto ghiotto, sì ch’ esser non puote
che per diversi salti non si spanda;

e quanto le sue pecore remote
e vagabunde più da esso vanno,
più tornano a l’ovil di latte vòte.

Ben son di quelle che temono ‘l danno
e stringonsi al pastor; ma son sì poche,
che le cappe fornisce poco panno.      (v. 124-132)

Mas o seu rebanho de outro alimento/ tornou-se tão guloso que não pode/ deixar de vagar por pastagens distantes e estranhas;
e quanto mais suas ovelhas/ se afastam dele, tanto mais/ tornam ao redil vazias de leite.
Há aqueles que temem o dano/ e acercam-se do pastor; mas são tão poucos/ que para encapuzá-los basta pouco pano.

            Note-se a ocorrência de uma nova imagem nessa passagem, pela evocação do hábito dos frades, após o poeta explorar a metáfora do rebanho de ovelhas, associada ao conjunto dos integrantes da ordem de S. Domingos, o qual é identificado com o seu pastor.    
            Por essas observações, Tomás diz que Dante atenderá (quanto à primeira dúvida) seu “desejo de saber“ (la tua voglia- v.136), passando a compreender a afirmação que ele fizera antes relativa à sua própria ordem, sintetizada no v. 96 do canto X, que é transcrito aqui e consiste no último verso deste canto XI: “onde bem se nutre quem não se perde em coisas vãs” (‘U’ ben s’impingua, se non si vaneggia’- v. 139).    

 
NOTAS


(1) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p. 138.

(2) Id. ib, p. 139.

(3) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.  Penguin Books, 1971, p.154.

(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.350.

(5) Id. ib, p. 350.

(6) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p. 266.

(7) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.351.

(8) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 271.

(9) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.351.

(10) Id. ib, p. 351-2

(11) Id. ib, p. 352.

(12) Id. ib, p. 352.

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Para ouvir o Canto XI:

https://www.youtube.com/watch?v=HeI7DV73gFM

(acessado em 4.09.20)

 

A
Amos Nattini



 
Fra Angelico- Encontro de S. Francisco com S. Domingos 

  
















segunda-feira, 18 de setembro de 2017

CANTO X


PARAÍSO


Canto X 


Os comentadores da Commedia observam que o décimo canto, nas três partes do divino poema, assinalam uma transição importante, diferenciando-se dos precedentes. No “Inferno”, ele separa os círculos dos pecados da incontinência (luxúria, gula, avareza e ira) dos restantes, mais ao fundo (além dos muros da Cidade de Dite), por serem piores, pois não se reduzem ao mero exagero do uso dos sentidos. No “Purgatório”, o décimo é o primeiro dos cantos, após a conclusão da visita ao Antepurgatório. Quanto ao “Paraíso”, os cantos anteriores referiram-se, como vimos, aos céus da Lua, de Mercúrio e de Vênus, cujos astros ainda eram alcançados pelo cone de sombra da Terra, de acordo com a astronomia da época (cf v. 118, canto IX). Por isso, os bem-aventurados que aí aparecem ainda estiveram muito sujeitos às influências terrenas. Dada a sua fraqueza espiritual, incorreram na fé deficiente, na esperança exagerada em coisas terrenas e no amor excessivo, embora tenham se arrependido em tempo e alcançado a salvação (1). Agora, entra-se no céu do Sol (que, conforme o sistema ptolomaico adotado na época, gira, como os outros astros, em torno do nosso planeta). Os espíritos que aí estão  situam-se em nível mais elevado da hierarquia celeste, logo de espiritualidade...  

O canto X inicia com uma referência à Trindade, pois para a doutrina  católica Deus não é só uma pessoa, mas três: o Pai (“o primeiro e inefável Valor”: lo primo e ineffabile Valore-- v. 3), o Filho e o Espírito Santo (l’Amore- v. 1), que procede das outras duas pessoas. Assim inicia o Canto: o Pai, “Olhando o seu Filho com o Amor” (Guardando nel suo Figlio con l’Amore- v.1), criou, com tanta ordem, tudo o que existe que quem isso contemple não pode deixar de provar (experimentar) Deus.  Em vez de “tudo o que existe” os versos afirmam “tudo o que gira pela mente e espaço” (quanto per mente e per loco si gira- v.4), a saber, tudo o que gira impelido pelas nove ordens de inteligências angelicais, ou seja, os céus e seus planetas (2).  

O poeta dirige-se depois ao leitor pedindo para ele erguer a vista àquela parte do céu “onde um movimento e outro se entrecruzam” (dove l’un moto e l’altro si percuote;- v. 9), ou seja, ele deve erguer a vista para a constelação de Áries, no equinócio da primavera, onde, no plano do equador, um movimento diurno (de leste para o oeste) se encontra, no plano do zodíaco, com o movimento anual deste (de oeste para leste) (3). Pede que o leitor comece por ali a admirar a obra de arte do Mestre (Deus). O zodíaco é referido como “o círculo oblíquo que porta os planetas/ para satisfazer ao mundo que os invoca” (l’oblico cerchio che i pianeti porta,/ per sodisfare al mondo che li chiama- v. 14-15). Se a sua inclinação com relação ao equador fosse outra, seria perturbada a regularidade das estações do ano e as influências dos astros: “/.../ seria deficiente/ a ordem do mundo, embaixo ou em cima” (/.../ assai sarebbe manco/ e giù e sù de l’ordine mondano- v. 20-21).

Dirigindo-se novamente ao leitor, Dante diz para ele continuar pensando no que já viu, empregando aqui uma metáfora alimentar (“Já te pus a mesa, agora te alimentes”: Messo t’ho innanzi; omai per te ti ciba;- v. 25), enquanto o poeta vai prosseguir em seu trabalho de escriba (v. 27), ou seja, continuar o seu relato.  

Refere-se então ao Sol, chamado de “O ministro maior da natureza” (Lo ministro maggior de la natura- v.28), que exerce influência sobre a Terra  e “com a sua luz o tempo mede” (e col suo lume il tempo ne misura- v. 30), distinguindo o dia, em seus diferentes momentos, da noite.  O Sol estava então “junto àquela parte antes mencionada” (con quella parte che sù si rammenta- v. 31), ou seja, na constelação de Áries, no equinócio da primavera em 21 de março no hemisfério Norte (no equinócio os dias são aproximadamente iguais às noites). Mas, à medida que o tempo passa, o Sol, girando em espirais (v. 32), aparece mais cedo cada dia (v. 33), pois este fica cada vez mais longo naquele hemisfério até o solstício do verão (4), em 21 de junho.  

Dante, de repente, se vê no céu do Sol. Não se dá conta da subida, “como não se dá conta um homem/ antes que o pensamento ocorra” (/.../ ma del salire/ non m’accors’ io, se non com’ uom s’accorge,/ anzi ‘l primo pensier, del suo venire- v.34-36). Ele atribui essa subida instantânea, que “não se estende no tempo” (/.../ per tempo non si sporge- v. 39) a Beatriz, que o guia assim  do bem para o melhor” (di bene in meglio, /.../-v.38). 

A seguir, Dante já antecipa uma característica do espírito que ali se  encontra: ele será “visível não pela cor mas pela luz!” (non per color, ma per lume parvente!- v. 42), ou seja, distingue-se do astro pela sua luz, que será mais intensa do que a do próprio Sol!. Apesar do poeta invocar “o engenho, a arte e o uso” (/.../ lo ‘ngegno e l’arte e l’uso “ /.../- v.43), terá dificuldade de fazer o leitor imaginar o que testemunhou. Mas este poderá crer no poeta, “e ansiar por ver” (/.../ e di veder si brami- v. 45). Não é de admirar que o leitor tenha dificuldade de imaginar o que Dante viu, “pois nenhum olho viu luz mais brilhante que a do Sol” (ché sopra il sol non fu occhio ch’andasse-  v. 48)...  

Dante e Beatriz estão na esfera da “quarta família” (quarta famiglia- v.49) do Pai, onde se mostram os espíritos sapientes, cuja fome de conhecimento é saciada por Ele, ao revelar-lhes aspectos do mistério da Trindade  relacionados ao Espírito-Santo e ao Filho (“mostrando como inspira e como gera”: mostrando come spira e come figlia- v. 51).  

Beatriz pede a Dante para agradecer ao “Sol dos anjos” (Sol de li angeli- v. 53) (metáfora de Deus), “que a este,/ sensível te alçou pela sua graça”: /.../ ch’a questo/ sensibil t’ha levato per sua grazia- v. 53-54). E o poeta então ficou “tão disposto/ à devoção e a render-se a Deus” (/.../ sì digesto/ a divozione e a rendersi a Dio-  v. 55-56)  que todo o seu amor se concentrou n’Ele, esquecendo Beatriz, o que não a desagradou e a fez sorrir.  

Amos Nattini
Na sequência, vários espíritos bem-aventurados que se mostram no céu do Sol, “fulgores vivos e triunfantes” (/.../ folgór vivi e vincenti- v. 64), formam uma coroa em torno de Dante e Beatriz, situados no centro. O poeta compara essa situação ao halo em torno da Lua, que pela mitologia clássica é identificada com Diana, filha de Latona e Jove: 

così cinger la figlia di Latona
vedem talvolta, quando l’aere è pregno,
sì che ritenga il fil che fa la zona.     (v. 67-69)

assim vemos, às vezes, a filha de Latona/ cingir-se, quando o ar é denso/ e prende o fio que forma o cinto de seu halo

            O poeta prossegue, afirmando que na “corte celeste” (corte del cielo-v.70) de onde ele regressou há muitas “joias caras e belas” (gioie care e belle- v. 71), que ele não pode “tirar” (v. 72) de lá,  por meio de sua descrição, subentende-se. O canto entoado por aqueles espíritos que formavam a coroa em torno deles era uma dessas joias. Mas dizer isso é vão, pois o poeta é impotente para expressá-las em palavras, comparando-se ao mudo: “quem não adquire asas para voar até lá/ do mudo espera receber notícias” (chi non s’impenna sì che là sù voli,/ dal muto aspetti quindi le novelle- v. 74-75). 

            Esses espíritos, chamados “ardentes sóis” (ardenti soli- v. 76), cantando, giram em sua dança ao redor de Dante e Beatriz três vezes. São comparados primeiro a “estrelas vizinhas dos polos fixos” (come stelle vicine a’ fermi poli- v. 78) e depois, a damas num baile que se detêm por um momento até que soem “novas notas” (nove note- v. 81) e a dança recomece. 

            Então um daqueles “lumes” começa a falar. Ele vai se identificar no v. 99 e estende sua fala até o v. 138. Trata-se de Tomás de Aquino. Dirige-se a Dante, em quem vê resplender “o raio da graça” (lo raggio de la grazia- v. 83), que o conduz para cima, e a quem vai saciar a sede (de saber) com “o vinho de seu frasco” (il vin de la sua fiala- v. 88).  Ele sabe o que Dante quer, ainda que este não  o diga: 

Tu vuo’ saper di quai piante s’infiora
questa ghirlanda ch’ ntorno vagheggia
la bella dona ch’ al ciel t’avvalora.

Io fui de li agni de la santa greggia
che Domenico mena per cammino
u’ ben s’ impingua se non si vaneggia. 

Questi che m’è a destra più vicino,
frate e maestro fummi, ed esso Alberto
è di Cologna, e io Thomas d’ Aquino.     (v.91-99)

Queres saber de que plantas se adorna/ esta grinalda que circundando, contempla/ a bela dama que ao céu te impele.
Eu fui um dos cordeiros do santo rebanho/ que Domingos conduz pelo caminho/ onde bem se nutre quem não se perde em coisas vãs.
Este que está mais próximo, à minha direita/ foi meu irmão e mestre; é Alberto/ de Colônia, e eu sou Tomás de Aquino.

Fra Angelico- Retrato de S.Tomás 
            A “bela dama” (v. 93), Beatriz, segundo os comentadores, é o símbolo da Teologia e representa a Revelação, objeto de estudo dos teólogos que aí estão (5), associados às imagens das “plantas” (v.91) da grinalda ou coroa que a envolve e o poeta. Tomás de Aquino pertencia à ordem dos dominicanos, aqui associada ao rebanho (v. 94), conduzido por S. Domingos de Gusmão, o fundador da ordem, pelo caminho (v.95) da salvação. Os membros desse rebanho bem se nutrem com o alimento espiritual. 

Na sequência, Tomás de Aquino (1225-74) -- o maior teólogo de seu tempo, que procurou conciliar o pensamento cristão com o de Aristóteles -- passa a enumerar as outras luzes, integrantes da “grinalda” (ghirlanda- v. 92), em número de doze, iniciando por quem está mais próximo dele, à sua direita, o também dominicano Santo Alberto Magno (1193-1280), seu mestre em Colônia (v.99). A seguir, pela ordem, menciona Francesco Graziano (ca. 1090- ca. 1160), um monge que conciliou o direito eclesiástico com o secular (v.104); Pedro Lombardo (ca.1095-1160) (v. 107), autor de uma obra estudada nas escolas de teologia que, no prefácio, ele compara à oferta da pobre viúva citada no Evangelho de Lucas (21:1-4); o rei Salomão, da Bíblia, que Tomás apresenta assim:

La quinta luce, ch’è tra noi più bela,
spira di tale amor, che tutto ‘l mondo
là giù ne gola di saper novela:

entro v’è l’alta mente u’ sì profondo
saver fu messo, che, se ‘l vero è vero, 
a veder tanto non surse il secondo.       (v. 109-114)

A quinta luz, que é dentre nós, a mais bela,/ respira tanto amor que todo o mundo/ lá embaixo tem fome de saber notícias dela:
dentro está uma alta mente onde tão profundo/ saber foi colocado que, se o vero é vero,/ não se elevou jamais um segundo com tanta visão.

A referência aqui ao amor se explica porque Salomão é o autor do “Cântico dos Cânticos”, da Bíblia; a fome de notícias sobre ele em nosso mundo tem a ver com o fato de que não há consenso entre os  teólogos sobre sua salvação ou não; quanto à sabedoria do rei, basta lembrar que a ele é atribuída a autoria dos “Provérbios”, “Eclesiastes” e “Livro da Sabedoria”.

Na sequência, vêm Dionísio o Aeropagita, referido como o que “mais a fundo viu/ a natureza dos anjos e seu ministério” (/.../ più a dentro vide/ l’angelica natura e ‘l ministero- v. 116-117), convertido ao Cristianismo por S.Paulo em Atenas e aí martirizado no ano 95, suposto autor de uma obra sobre a hierarquia dos anjos; Paulo Orósio, o  nome mais provável associado à menção ao “advogado da era cristã” (quello avvocato de’ tempi cristiani- v. 119). Ele foi um padre espanhol nascido no final do século IV, historiador, que defendeu o Cristianismo contra acusações dos pagãos, do qual se valeu Santo Agostinho em sua própria obra; Boecio (ca. 475-525), estadista e filósofo romano, o famoso autor de “A Consolação da Filosofia”, identificado pela referência ao local do sepultamento do corpo de onde essa luz foi expulsa (v.127), na basílica de San Pietro em Ciel d’Oro (Cieldauro) em Pavia; Isidoro, bispo  de Sevilha (ca. 560-636), que organizou uma das primeiras grandes enciclopédias medievais, em vinte volumes; o venerável Bede (674-735), um  monge anglo-saxão e historiador; Ricardo de São Victor (ca. 1123-73), um dos maiores místicos do século  XII, referido por Dante assim: “este, a meditar, foi mais que homem”  (che a considerar fu più che viro- v. 132); e Siger de Brabant (ca.1225-ca.1283). Este último mencionado por Tomás, que está ao lado esquerdo dele, fechando o círculo, foi um teólogo, seu rival, que na universidade de Paris, na faculdade em que lecionava “à rua da Palha” (/.../ nel Vico de li Strami- v.137), defendia uma interpretação de Aristóteles baseada em Averroes, interpretação essa combatida por Tomás de Aquino (6). 

O Canto conclui com uma comparação entre o relógio -- (que pela manhã nos chama) da “esposa de Deus” (la sposa di Dio- v. 140), i.e. da Igreja, que “acorda/ e canta as matinas para o esposo (Cristo) encorajando seu amor” (/.../ surge/ a mattinar lo sposo perché l’ami- v. 140-141), pondo a funcionar seu mecanismo peculiar -- com a roda dos espíritos sapientes. Esta começa de novo a

muoversi e render voce a voce in tempra
e in dolcezza ch’esser non pò nota
se non colà dove gioir s’insempra.     (v. 146-148).   

mover-se e responder voz a voz com tal harmonia/ e doçura que não pode ser conhecida/ senão lá onde a alegria é perpétua.


NOTAS


(1) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p.240. Ver também MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.343. 

(2) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 240. 

(3) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.344.

(4) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 242.

(5) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p.127-128. 

(6) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 346-349;  HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 246-250. 

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Para ouvir o canto X:

https://www.youtube.com/watch?v=zo4Xcivfz90

(acessado em 3.09.20)


C.Crivelli- S.Tomás de Aquino