PARAÍSO
Canto III
Amos Nattini |
Dante admite estar convencido de seu
equívoco após a explicação das manchas lunares dada por Beatriz (ele não levou em conta o papel da inteligência angélica em sua explicação). Ela é
referida do seguinte modo no verso de abertura do Canto: “Aquele
sol que primeiro me aqueceu o peito de amor” (Quel sol che pria
d’amor mi scaldó ‘l petto- v.1).
O poeta usa a imagem do sol para defini-la face à sua atual condição, junto
aos bem-aventurados, uma vez que o sol no poema está associado a Deus, ou à
sabedoria divina. Mas também se refere ao passado comum deles, ao seu amor de
infância e ao encontro primeiro, quando tinham apenas 9 anos, relatado por Dante
em “Vita Nuova”.
Dante tencionava dizer a Beatriz que
estava convencido da verdade da explicação dela, e reconhecer que era melhor
que a sua, mas esquece isso porque sua atenção é desviada pela visão de rostos
de contornos débeis como “pérola em
branca fronte” (/../
perla in bianca fronte- v. 14)
(“pérola” está aqui pelos adornos medievais de pérola usados pelas damas) (1), ou
como vistos “através de vidros transparentes
e límpidos,/ ou de águas nítidas e tranquilas” (/.../ per vetri
trasparenti e tersi/ o /.../ per acque
nitide e tranquille- v.10-11).
Gustave Doré |
Ao ver esses “muitos rostos prontos a falar” (/.../ più facce a parlar pronte- v.16), Dante vira-se para o lado, a fim de
lhes dirigir a palavra, acreditando que eram “rostos refletidos” (specchiati sembianti- v. 20). Mas caiu no erro oposto “àquele que acendeu amor entre o homem e a
fonte” (a
quel ch’ accese amor tra l’omo e ‘l fonte- v. 18), i.e. o erro oposto ao de Narciso, que acreditava ser
de outra pessoa sua imagem refletida na água (2). Beatriz logo lhe esclarece
que aquelas são “veras substâncias” (vere sustanze- v.29), “aqui colocadas por não cumprirem os votos” (qui rilegate per
manco di voto- v.30).
Dante emprega o termo “substância” no sentido da filosofia escolástica, por
oposição a “acidente”. Enquanto aquela existe por si mesma, esta existe como
atributo das substâncias (3). No caso, os rostos que Dante vê não são imagens
refletidas mas as próprias almas que ali estão.
Incentivado por Beatriz, Dante se dirige àquela “que parecia mais desejosa/ de falar” (/.../ che parea più
vaga/ di ragionar /.../- v.34-35), perguntando o seu nome e indagando
sobre a sorte delas. Ela lhe responde que sua “caridade” (carità-
v. 43) (termo que é
repetido várias vezes no Canto e deve ser entendido como sinônimo de “amor
espiritual”) (4), “não fecha as portas/
ao justo desejo” (La
nostra carità non serra porte/ a giusta voglia /.../- v. 43-44), como a divina. Ela então se identifica como Piccarda (v. 49), diz que no mundo foi “jovem freira” (vergine sorella- v. 46) e que agora é “venturosa
na esfera mais lenta” (beata sono in la spera più tarda- v. 51), ou seja, está no céu da Lua, uma
das nove esferas concêntricas em torno da Terra, a mais distante do Empíreo, ou
da origem do movimento delas (5). É no céu da Lua que estão aqueles cujos votos
assumidos com Deus “foram negligenciados /.../, em parte não cumpridos” (/.../ perché fuor negletti/ li nostri voti,
e vòti in alcun canto- v.56-57).
Piccarda, segundo os comentaristas, era irmã
de Corso Donati, líder dos Guelfos Negros em Florença (partido adversário aos
Brancos, de Dante), que a retirou do convento para que ela se casasse com um
aliado político, obrigando-a assim a quebrar seus votos de religiosa. Seu outro
irmão era Forese Donati, amigo de Dante, que já encontramos no “Purgatório”
(cantos XXIII e XXIV).
Quando Dante lhe pergunta se elas, as
almas que ali estão, não gostariam de estar mais acima, em “um lugar mais alto/ para ver mais e ser mais
amigos” (de Deus) (/.../
più alto loco/ per più vedere e per più farvi amici?- v.65-66), Piccarda, sorrindo, lhe responde
que elas só querem aquilo que já tem:
Se disïassimo esser più superne,
foran discordi li nostri disiri
dal voler di colui che ne cerne; (v. 73-75)
Se
desejássemos estar em mais alta esfera/ nossos desejos seriam discordantes / da
vontade daquele que para aqui nos destinou;
Nos versos subsequentes Piccarda
afirma que lá as vontades dessas almas e a divina são uma só e que o modo como estão
dispostas nos diversos céus “apraz a todo
o reino/ e ao rei que nos induz a desejarmos o que está em seu querer” (/.../ a tutto il
regno piace/ com’ a lo re che’ n suo voler ne ‘nvoglia- v. 83-84). Por fim, sintetiza assim a
situação, identificando a vontade divina com a metáfora do mar:
E ‘n la sua volontade è nostra pace:
ell’ è quel mare al qual tutto si move
ciò ch’ ella crïa o che natura face. (v.85-87)
E em
sua vontade está a nossa paz:/ ela é aquele mar para o qual tudo se move/ o que
ela cria ou o que a natureza faz.
Dante percebe então que “em todo lugar/ do céu é paraíso” (/.../ ogne dove/ in
cielo è paradiso /.../- v. 88-89).
Na sequência, referindo-se a si mesmo,
o poeta explora a imagem dos alimentos, dizendo que ao mesmo tempo que ele se sacia de
um, tem fome de outro, vale dizer, ao
mesmo que tem sua curiosidade atendida em uma questão, pelo que é grato, já
anseia por atender a outra. E para expressá-la passa imediatamente a explorar
uma imagem alternativa, inspirada na atividade produtiva da tecelagem. Assim, para
expressar sua curiosidade em saber qual foi o voto não cumprido de Piccarda, ele
quer “saber dela qual foi a tela/ da qual
a lançadeira não chegara ao fim” (per apprender da lei qual fu la tela/ onde
non trasse infino a co la spuola- v. 95-96).
Em sua resposta, ela afirma que, ainda
“mocinha” (giovinetta- v.103), fugiu do mundo para seguir uma dama,
de “vida perfeita e alto mérito” (Perfetta vita e alto
merto /.../- v.97) que
está agora em “céu mais acima” (v.
97-98), tomando o hábito de sua ordem. Trata-se, segundo os comentaristas, de
Santa Clara de Assis, contemporânea e discípula de S.Francisco de Assis,
fundadora da Ordem das Clarissas (6). Mas
em vez de mencionar seu irmão Corso como o responsável por arrancá-la do “doce claustro” (dolce chiostra- v.
107), ela atribui o fato
a homens “mais acostumados ao mal que ao
bem” (/.../
a mal più ch’ a bene usi- v. 106).
Logo após, Piccarda refere-se a “outro
resplendor” (otro
splendor- v. 109) que
está à sua direita e que “atribui a si
mesma aquilo que eu digo de mim” (ciò ch’io dico di me, di sé intende- v. 112). Trata-se da “luz da grande Costanza” (Quest’ è la luce de la gran Costanza- v. 118),
a última herdeira dos governantes normandos da Sicília. Ela também foi obrigada
a sair do convento para se casar com o imperador Henrique VI, “o segundo vento da Suábia” (/.../ secondo vento
di Soave- v.119), filho
de Frederico Barbarossa, e por essa união “gerou
o terceiro e a última pujança” (generò ‘l terzo e l’ultima possanza- v. 120), o imperador Frederico II, da Apúlia e da Sicília, com quem
a dinastia suábia terminou (7).
R. e J. Hollander (8) chamam a atenção para seu nome,
confrontado com a inconstância na manutenção dos seus votos religiosos. Mas Costanza
foi constante em seu coração (v. 117). Aliás,
não é por acaso que os bem-aventurados que não puderam cumprir integralmente
seus votos estão no céu da Lua, o astro associado à inconstância, haja vista as
diversas fases por que passa ao longo do mês.
Concluída sua fala, Piccarda começou a
cantar “Ave Maria” e cantando desvaneceu ali “como na água profunda coisa pesada” (come per acqua cupa cosa grave- v. 123). Dante volta-se então para Beatriz
mas seus olhos não conseguem suportar, inicialmente, sua fulguração. Isso o faz
retardar suas perguntas.
NOTAS
(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony
Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam
Books, 1986- p. 320.
(2) Id, ib, p. 320
(3) SAYERS,
Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated
by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.
Penguin Books, 1971, p.77
(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of
Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 321.
(5) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume III: Paradise”. Translated
with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986,
p.38.
(6) MOURA, Vasco Graça—“Dante Alighieri- A
Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco da Graça Moura. S.Paulo:
Landmark, 2005- p. 617.
(7) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of
Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 322.
(8) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri-
Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction
& Notes by Robert Hollander.
Doubleday, 2007, p. 78.
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Para ouvir o Canto III:
https://www.youtube.com/watch?v=Pe-9uQ0Vum8
(acessado em 24.08.20)