segunda-feira, 25 de maio de 2020

CANTO XXX


PARAÍSO


Canto XXX



            Os primeiros treze versos do Canto consistem numa comparação entre o desaparecimento gradual das estrelas causado pelo nascer do Sol com o dos nove círculos angélicos que giram em torno do Ponto luminoso (divino).  O poeta, na sua linguagem própria, indica o nascer do Sol pela referência ao fato de que cerca de 6 mil milhas dali (um quarto da circunferência da Terra, em seus cálculos) “arde a hora sexta” (ferve l’ora sesta- v.2), ou seja, o meio-dia (1).  Assim, avança “a claríssima serva/ do Sol” (la chiarissima ancella/ del sol- v. 7-8) (a aurora) e vai apagando as estrelas, uma a uma, “até a mais bela” (/.../ infino a la più bella- v. 9), i.e. Vênus, a estrela da manhã (2).  



S. Dalì- Ascensão de Dante ao Empíreo 

            Dante então se volta para Beatriz. Afirma que tudo o que ele já disse sobre a beleza dela não lhe fez justiça, pois ultrapassa a medida humana e “só o Criador pode desfrutá-la inteiramente” (che solo il suo fattor tutta la goda- v.21). Nessa questão, ele se declara vencido (vinto- v.22), mais do que qualquer outro poeta, trágico ou cômico, do passado. Segue-se esta comparação entre o Sol, que afeta a vista, e a memória do sorriso de Beatriz, que afeta a mente de Dante:

ché, come sole in viso che più trema,
così lo rimembrar del doce riso
la mente mia da me  medesmo scema      (v.25-27)

pois como o Sol golpeando a vista mais débil,/ a memória do seu doce sorriso/ me priva do uso da minha própria mente

        Note-se a sonoridade do v. 27, apoiado nas sílabas que envolvem o fonema formado pela consoante m e uma vogal.

            Dante sempre cantou a beleza de Beatriz, desde quando a viu pela primeira vez (aos nove anos, conforme registrou em “Vita Nuova”) (3). Mas agora ele desiste de descrevê-la, “como deve todo artista que alcançou o seu limite” (come a l’ultimo suo ciascuno artista- v. 33). Assim, deixa tal encargo para “maior celebração / do que a da minha trombeta” (Cotal qual io la lascio a maggior bando/ che quel de la mia tuba, /.../- v.34-5), ou seja, para melhor poeta.

            Beatriz na sequência afirma que eles estão agora no décimo céu, o Empíreo (a morada de Deus), e deixaram o Primum Mobile. Assim se expressa:

/.../ Noi siamo usciti fore
del maggior corpo al ciel ch’è pura luce: 

luce intellettüal, piena d’amore;
amor di vero ben, pien di letizia;
letizia che trascende ogne dolzore.      (v. 38-42)


/.../ Saímos/ do maior céu material e entramos no que é pura luz:
luz intelectual, plena de amor;/ amor do vero bem, pleno de alegria;/ alegria que transcende toda doçura.



Michelangelo Caetani- esquema da Divina Comédia

             
               Ali, no Empíreo, prossegue Beatriz, Dante verá “uma e outra milícia do Paraíso” (Qui vederai l’una e l’altra milizia/ di paradiso, /.../- v. 43-4), i.e., a dos anjos e a dos bem-aventurados, sendo que esta última estará com o aspecto “que tu as verás no Juízo Final” (che tu vedrai a l’ultima giustizia- v.45). Como se sabe, de acordo com um dogma católico, os mortos ressurgirão com seu corpo para o Juízo Final.  

            Após essas palavras de Beatriz, Dante declara que “luz viva” (luce viva- v.49)  o circundou, e ele ficou “tão envolto pelo véu/ do seu fulgor” ( /.../ fasciato di tal velo/ del suo fulgor, /.../- v. 50-1) que nada mais pôde ver. Compara essa luz com “um súbito relâmpago que dispersa/ os espíritos da visão” (Come sùbito lampo che discetti/ li spiriti visivi, /.../- v. 46-7), ou a capacidade de ver. Os comentaristas assinalam aqui a semelhança dessa passagem com aquela da Bíblia (Atos, 22:6-11) que relata o que aconteceu com S.Paulo na estrada de Damasco, quando este  também perdeu a visão por uma luz repentina (4).  

            Dante ouve ainda de Beatriz umas breves palavras explicando-lhe que o Amor, que torna este céu (o Empíreo) imóvel, está acolhendo-o em Si dessa forma, com tal saudação, “para fazer a vela pronta para sua chama” (per far disposto a sua fiamma il candelo- v. 54), em que “vela” é metáfora de alma e “chama”, de fulgor do Empíreo (5).  Tão logo Dante ouve essas palavras, compreendeu “que se elevava, superando seus poderes” (me sormontar di sopr’ a mia virtute;- v. 57), ou limitações, adquirindo uma nova capacidade de visão, que suportava a intensidade da luz desse novo céu.  Na sequência, diz o poeta,  

e vidi lume in forma di rivera
fulvido di fulgore, intra due rive
dipinte di mirabil primavera.

Di tal fiumana uscian faville vive,
e d’ogne parte si mettien ne’ fiori,
quase rubin che oro circunscrive;

poi, come inebrïate da li odori,
riprofondavan sé nel miro gurge,
e s’una intrava, un’altra n’uscia fori.      (v.61-9)

e vi luz em forma de rio /fulgindo fulvo entre duas margens/ pintadas com as cores de mirífica primavera.
De tal corrente saíam fagulhas vivas/ e de toda parte pousavam nas flores/ como rubis engastados no ouro;
depois, como inebriadas pelo seu perfume,/ afundavam-se no maravilhoso rio,/ e enquanto uma entrava, outra saía dele.


            As “fagulhas” aqui representam os anjos enquanto as “flores”, os bem-aventurados, como será dito mais adiante, nos versos 95-6. O comentarista Benvenuto assinala também outros significados: o rio é a graça divina e suas duas margens são os dois coros de bem-aventurados (os que se salvaram conforme o Antigo Testamento e os outros, que se salvaram conforme o Novo) (6).

            No verso 66 acima, as fagulhas pousavam nas flores “como rubis engastados no ouro” (quasi rubin che oro circunscrive- v. 66), o que associa as imagens de fagulhas (ou anjos) a rubis e das flores (ou bem-aventurados) ao ouro. O perfume das flores, inebriando as fagulhas, as faz afundar no maravilhoso rio.

            A seguir, Beatriz diz a seu admirador que o desejo dele de saber mais sobre o que vê lhe agrada, “tanto mais me agrada quanto mais aumenta          (tanto mi piace più quanto più turge- v. 72). Mas para saciar a sua sede de conhecimento ele deve beber (metaforicamente) da água (da graça divina) desse rio de luz, “beber” com os olhos, a fim de adquirir uma capacidade de visão sobrenatural, ou para que a revelação se efetive (7). Pois sua “vista ainda não é tão elevada” (che non hai viste ancor tanto superbe- v. 81), uma vez que o rio, os topázios (agora mencionados em vez dos rubis) e a “relva ridente” (/.../ ‘l rider de l’erbe- v. 77) são apenas “prefácios velados” (umbriferi prefazi- v.78), ou prefigurações (8), da sua verdade, complementa Beatriz, a quem Dante chama de “o sol dos olhos meus” (/.../ il sol de li occhi miei- v.75).

            Segue-se uma comparação entre a rapidez do bebê para sugar o leite da mãe, quando acorda muito tarde, e o movimento do poeta ao se abaixar para o rio, “para fazer melhores espelhos/ de meus olhos” (/.../ per far migliori spegli/ ancor de li occhi, /.../- v. 85-6), rio “que flui para o nosso melhoramento” (che si deriva perché vi s’immegli- v. 87), i.e. para o melhoramento da nossa capacidade de ver, tornando-a adequada à revelação final de Deus (9). Enquanto bebia, pareceu a Dante que o rio “de comprido se tornava circular” (di sua lunghezza divenuta tonda- v. 90), como um lago. Esse círculo se transformará numa imensa rosa, como se verá adiante, no v. 124 (10). Segundo um comentarista, há aqui um significado interessante: o conceito linear está associado ao tempo, enquanto o circular, à eternidade (11). 
            Depois, o poeta afirma que ocorre a transformação festiva das flores e fagulhas, comparando essa mudança à da gente mascarada quando põe de lado o seu disfarce, e se revela como de fato é. No caso, o que Dante descobre são “as duas cortes celestes manifestas” (ambo le corti del ciel manifeste- v. 96), a saber, os bem-aventurados e os anjos.  
            O poeta então invoca o “esplendor de Deus” (O isplendor de Dio, /.../-.v. 97) para que lhe dê o poder de expressar o que viu, “o alto triunfo do reino veraz   (l’alto trïunfo del regno verace- v.98).

            Inicialmente, afirma que lá em cima há um “lume” (v.100) que faz visível o Criador a certas criaturas, ou seja, aos anjos e bem-aventurados (eles veem Deus através de Sua luz) (12)  Essa luz era a que antes fluía no rio linear, do tempo, e agora está presente no mar circular, o da eternidade (13). Dizem os versos:

E’ si distende in circular figura,
in tanto che la sua circunferenza
sarebbe al sol troppo larga cintura.     (v. 103-105)

Essa luz se expande em forma circular,/ tanto que a sua circunferência/ seria para o Sol um cinto largo demais.

            Isso dá uma ideia da magnitude ou amplitude desse “cinto”.  

            Prossegue o poeta: “Toda essa aparência (circular) resulta de um raio/ refletido da superfície mais alta do Primum Mobile” (Fassi di raggio tutta sua parvenza/ reflesso al sommo del mobile primo,- v. 106-7), o qual, por sua vez, recebe desse raio divino “vida e potência” (vivere e potenza- v.108) para mover todos os céus, ou o universo (14).

            Na sequência, consta mais uma comparação: aquela entre a encosta da colina, verde e florida, refletida (ou espelhada) nas águas ao pé dela e as mil camadas (ou degraus) que se elevavam acima da luz, circundando-a, em que Dante vê, espelhadas, as almas salvas ou, como ele diz, “quantos de nós conquistaram o retorno para lá” (quanto di noi là sù fatto ha ritorno- v. 114). Ou seja, conquistaram o Paraíso, após o exílio na Terra.  Ele as vê nas pétalas da Rosa mencionada abaixo:

E se l’infimo grado in sé raccoglie
sì grande lume, quanta è la larghezza
di questa rosa ne l’estreme foglie!       (v.115-7)

E se o mais baixo degrau acolhe/ tão vasta luz, qual deve ser a extensão/ onde estão as pétalas mais altas dessa Rosa!

            Essa metáfora da Rosa será dominante nos dois próximos cantos. É a chamada Rosa Mística, concebida como um imenso anfiteatro.

            Dante então, já no Empíreo, além do espaço e do tempo (16), afirma que sua vista “tudo acolhia/ daquela alegria em extensão e qualidade ” ( /.../ tutto prendeva/ il quanto e ‘l quale di quella allegrezza- v.119-120), tudo apreendendo imediatamente, naquela largura e altura, tudo apreendendo em detalhes, como se estivesse perto, pois a lei natural ali não funciona (17).

Presso e lontano, lì, né pon né leva:
ché dove Dio sanza mezzo governa,
la legge natural nulla releva.     (v. 121-3)

Perto e longe, lá, não acrescenta nem subtrai:/ pois onde Deus governa sem intermediação/ a lei natural não rege.
            Em seguida, Beatriz conduz Dante “pelo (centro) amarelo da Rosa eterna” (Nel giallo de la rosa sempiterna,- v.124), que rescende “fragrância de louvor ao Sol (i.e. a Deus) e sua perpétua primavera” (odor di lode al sol che sempre verna- v.126). Segue-se sua fala (a última do poema) (18), que se estende até  o verso final deste Canto.  
            Inicia dizendo para Dante ver todos os bem-aventurados que ali estão, “a comunidade das vestes brancas” ( /.../ ‘l convento de le bianche stole- v. 129), citação indireta do Apocalipse (19). Pede também para ele notar “nossa cidade” (nostra città- v. 130), a Cidade de Deus. E ver como os assentos daquele anfiteatro estão tão ocupados “que pouca gente mais aqui se espera” (che poca gente più ci disira- v. 132), uma vez que Dante acreditava que o fim do mundo estava próximo (20).  



G.Di Paolo- O assento de Henrique VII
            Beatriz aponta para Dante um assento vago que aguarda a vinda do “nobre Henrique” (l’alto Arrigo- v.137), o imperador Henrique VII, “antes que tu participes deste banquete nupcial” (prima che tu a queste nozze ceni- v. 135), ou seja, antes da morte de Dante. O monarca atendeu ao apelo do papa e se esforçou para “endireitar a Itália” (drizzare Italia- v.137), que sofria então uma luta entre facções políticas. Aclamado imperador também de Roma em 1313, Dante punha todas suas esperanças nele, que combateu os Guelfos. Mas se frustrou, pois Henrique faleceu no mesmo ano, alguns meses depois (21). A Itália não estava preparada para ele diz o poeta. E Beatriz usa esta imagem para criticar os italianos: 

La cieca cupidigia che v’ammalia
simili fatti v’ha al fantolino
che muor per fame e caccia via la balia.      (v. 139-141)

A cega cobiça que vos encanta/ torna-vos semelhantes à criança/ que morre de fome e rechaça a ama-de-leite.
            E faz um prognóstico (lembremo-nos que a ação do poema se passa em 1300, embora composto mais tarde; assim, Beatriz profetiza fatos já ocorridos e conhecidos por Dante, que faleceu em 1321). Será papa (ou, nos termos do poeta,  prefeito do fórum divino” (/.../ prefetto nel foro divino- v.142) alguém que  adotará um comportamento dúplice, ora apoiando o imperador, ora favorecendo a oposição a ele (22). Trata-se de Clemente V, que exercerá “o santo encargo” (santo officio- v. 146) por pouco tempo pois logo “será atirado/ lá onde Simão Mago merece estar” (/.../ ch’ el sarà detruso/ là dove Simon mago è per suo merto- v. 146-7), ou seja, onde estão os simoníacos no Inferno, forçando mais para dentro do buraco na rocha -- naquela parte do 8º círculo -- “o de Alagna” (quel d’Alagna- v. 148), i.e. Bonifácio VIII, seu antecessor. Clemente V faleceu em 1314 (23).
           

NOTAS


(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.418.  

(2) Id. ib., p. 418..

(3) Id. ib., p. 418..

(4) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p.359;  HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p. 746.

(5) ZOLI, M. e ZANOBINI, F.- “La Divina Commedia: a cura di M.Zoli e F.Zanobini. Inferno. Purgatorio. Paradiso”. Bulgarini, 2013, p. 969.

(6) Apud CRESPO, Angel- “Dante Alighieri- La Divina Comedia”. Centro Editor de Cultura”, 2012. Argentina, p. 483.   

(7) LONGNON, Henri- “La Divine Comédie”. Traduction, préface, notes et commentaires par Henri Longnon. Paris: Garnier, 1951, p. 692;  ZOLI, M. e ZANOBINI, F.- “La Divina Commedia”, op cit, p. 970; CRESPO, Angel- “Dante Alighieri- La Divina Comedia”, op cit, p. 483.

(8) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p. 354.     

(9) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 419.   

(10) MARTINS, Cristiano- “A Divina Comédia”. Segundo volume. Purgatório. Paraíso. Tradução, introdução e notas de Cristiano Martins. 5a edição. Belo Horizonte: Ed Itatiaia, 1989, p. 535, nota. 

(11) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p. 360.

(12) Id. ib., p.361.

(13) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 751.

(14) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 420;    
MARTINS, Cristiano- “A Divina Comédia”. Segundo volume. Purgatório. Paraíso, op cit, p. 536..

(15) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 420.

(16) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p. 362; HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 753.

(17) CIARDI, John-  “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi.  New American Library, 2003, p.867.

(18) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 729.

(19) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p. 362.

(20) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 420.

(21) Id. ib., p. 420-1.

(22) MOURA, Vasco Graça—“Dante Alighieri- A Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. S.Paulo: Landmark, 2005- p. 861.

(23) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 421.

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(acessado em 19.10.20)