segunda-feira, 4 de novembro de 2019

CANTO XXIV


PARAÍSO


Canto XXIV


            Nos primeiros nove versos deste Canto é Beatriz quem fala. Ela se dirige aos eleitos, ou à “companhia de eleitos à grande ceia/ do bendito Cordeiro” (O solalizio eletto a la gran cena/ del benedetto Agnello, /.../- v. 1-2), para interceder por Dante, a fim de que ele desfrute, com antecedência (ele que está ali antes de sua morte), "aquilo que cai de vossa mesa" (di quel che cade de la vostra mensa- v. 5) e sacie um pouco sua sede (“orvalhai-o um pouco”: roratelo alquanto- v. 8), seu imenso desejo de conhecer Deus, de beber da mesma fonte em que os eleitos bebem sempre (v.8-9).  (1)

Tais versos apoiam-se em referências bíblicas, ou em suas imagens. Além do Cordeiro, que representa Cristo, há essa menção à ceia, que indica, no caso, a beatitude daquelas almas eleitas que no Paraíso desfrutam da visão de Deus. Não só a fome é saciada por essa ceia, mas também a sede o é, pela “fonte” referida no v. 9.

Após as palavras de Beatriz, aquelas almas alegremente flamejam enquanto giram como esferas de luz em torno de polos fixos.

Segue-se uma comparação desses círculos dançantes, cada qual em um ritmo diferente (v. 16-17), com o mecanismo de um relógio em que a primeira roda parece parada e a última, que voa, de tão veloz. Há aqui uma hierarquia. Dante as avalia em função do seu grau de “riqueza”  (ricchezza- v. 18) espiritual. Do círculo que ele julgou “mais precioso” (più carezza- v. 19) viu sair uma chama não superada pelas outras em claridade. Ela girou "três vezes" (tre fïate- v.22) em torno de Beatriz, entoando um canto tão divino que Dante não tem capacidade de repeti-lo, uma vez que “nossa imaginação, e a fala,/ tem cores vivas demais para representar as dobras do tecido celeste” (chè l’imagine nostra a cotai pieghe,/ non che ‘l parlare, è tropo color vivo- v. 26-27). Ele não pode representar o canto divino “assim como o pintor não pode representar as pregas do tecido”, conforme um comentarista (2). Outro se refere à limitação tecnológica da época relativamente às características dos pigmentos, muito brilhantes para tal representação (3).   

Amos Nattini

Essa “chama bendita” (il foco benedetto- v. 31) é S. Pedro, como se verá a seguir. Ele para de cantar e diz a Beatriz (sua “santa irmã”: santa suora- v. 28) que se separou daquele círculo “mais precioso” (o dos apóstolos) por causa de seu “ardente afeto” (ardente affetto- v.29) expresso no apelo que ela faz aos eleitos em favor de Dante.

Na sequência, Beatriz lhe responde, reiterando esse apelo, agora de forma mais específica e dirigindo-se a S.Pedro -- enfim identificado, pois aqui ela se dirige à “luz eterna do grande homem/ a quem Nosso Senhor deixou as chaves” ( /.../ O luce etterna del gran viro/ a cui Nostro Segnor lasciò le chiavi- v. 34-35) (do Reino, o Paraíso) – pedindo-lhe que ele teste Dante “acerca da fé” (intorno de la fede- v. 38), “pela qual tu andaste sobre o mar” (per la qual tu su per lo mare andavi- v.39), outra referência bíblica que ajuda a identificar o santo (cf. Mateus, XVI, 19 e XIV, 29, como informam as notas das obras citadas abaixo) (4).

S.Pedro Apóstolo por A.Vanni- 1390


S.Pedro Apóstolo por Rubens

Beatriz pede que a Dante “seja dada a ocasião de falar” (di lei parlare è ben ch’a lui arrivi- v. 45) para que ele possa glorificar a fé, meio pelo qual se conquista o Paraíso. Afirma ainda que como Pedro vê a mente de Deus (“aquele lugar em que estão pintadas todas as coisas”: dov’ ogne cosa dipinta si vede- v. 42) (5), ele sabe se Dante “bem ama,  e bem espera e crê” (S’elli ama bene e bene spera e crede- v.40), ou seja, se possui as três virtudes teologais. Assim, sobre a fé, ele será examinado por S.Pedro e, mais adiante por S.Tiago e S.João quanto à esperança e amor (caridade), respectivamente.


G.di Paolo- O exame de Dante

Dante então se compara a um bacharel (sendo submetido, na universidade, ao exame de doutorado) que aguarda a questão a debater proposta pelo examinador. Este (ou melhor,  a luz identificada como S.Pedro) lhe pede para responder à pergunta-- “que é a fé?” (fede che è?- v. 53). Dante responde a Pedro citando o seu “caro irmão” (tuo caro frate-v.62), i.e. S.Paulo, que com ele “colocou Roma no bom caminho” (v. 63), vale dizer, a evangelizou:  

fede è sustanza di cose sperate
e argomento de le non parventi;
e questa pare a me sua quiditate    (v. 64-66)

fé é a substância das coisas esperadas/ e evidência das invisíveis;/ penso ser essa a sua essência”.

A citação está contida em sua Carta aos Hebreus 11:1. Por outro lado, “essência”, como já vimos, é sinônimo do termo “quididade”, da filosofia escolástica (6).

            Logo adiante, nos versos 70 a 78, Dante fornece uma explicação para essa definição de fé. Ele chama “substância” aos “mistérios profundos” (Le profonde cose- v.70)  que lhe foram revelados no Paraíso e que “estão tão ocultos aos olhos dos de baixo” (a li occhi di là giù son sì ascose- v. 72), ou seja, dos habitantes da Terra. Tais mistérios, dada a sua natureza, só existem na crença destes, “sobre a qual se funda a alta esperança” (sopra la qual si fonda l’alta spene- v. 74), quer dizer, sua esperança de alcançar a “eterna beatitude” (7).

           Por outro lado, a fé é também “evidência”, porque daquela crença se podem “deduzir silogismos, por não haver provas sensíveis” (silogizzar, sanz’avere altra vista- v. 77)

            Mais adiante, Pedro indaga sobre a fé de Dante, considerada como uma moeda, na metáfora aí presente:

/.../ “Assai bene è trascorsa
d’esta moneta già la lega e ‘l peso:
ma dimmi se tu l’hai ne la tua borsa”.    (v. 83-85)

/.../ “Bem examinada/ já foi a liga e o peso dessa moeda;/ mas diz-me se tu a tens na tua bolsa”.

            À resposta afirmativa de Dante, Pedro então pergunta de onde lhe proveio “Essa joia preciosa/ sobre a qual toda virtude se funda” (Questa cara gioia/ sopra la quale ogne virtù si fonda- v. 89-90), afirmando implicitamente que sobre a fé se baseia a esperança, a caridade etc (8).

Dante lhe responde que sua fé proveio das revelações divinas contidas na Bíblia, ou no Novo e Velho Testamento. Essa é a fonte de sua fé:

/.../ La larga ploia
de lo Spirito Santo, ch’è diffusa
 in su le vecchie e ‘n sul e nuove cuoia      (v.91-93)

/.../ A chuva abundante/ do Espírito Santo que é difusa/ sobre o velho e o novo   pergaminho
           
            Pedro na sequência quer saber por que Dante as considera como “fala de Deus” (divina favella- v. 99). Por causa dos milagres ali relatados, afirma Dante, pois para as “obras ocorridas” (l’opere seguite- v. 101) “a natureza não tem ferro para esquentar nem bigorna para bater” (v. 102). Quer dizer, a natureza, comparada a um ferreiro, não as explica (9).

Pedro então quer saber o que lhe assegura que aqueles milagres de fato ocorreram. E questiona a validade de seu raciocínio, pois Dante usa como prova aquilo que deve ser provado (“ /.../ Aquilo mesmo/ que precisa provar-se é o que te atesta”: /.../ Quel medesmo/ che vuol provarsi, non altri, il ti giura - v. 104-105). A isso, Dante replica que é o fato de que o Cristianismo expandiu-se no mundo, independentemente dos milagres, só pela fé (10), enaltecendo a seguir o trabalho de Pedro para que isso acontecesse. Dante aproveita também a ocasião para fazer mais uma crítica à Igreja de sua época:  

ché tu intrasti povero e digiuno
in campo, a seminar la buona pianta
che fu già vite e ora è fatta pruno    (v. 109-111) 

pois tu entraste pobre e em jejum/ no campo, a semear a boa planta/ que já foi videira e hoje é espinheiro

            Findo o exame,

/.../ l’alta corte santa
risonò per le spere un “Dio laudamo”
ne la melode che là sù si canta    (v. 112-114)

/.../ a alta e santa corte/ fez ressoar pelas esferas um “Deus louvamos”/ na melodia que lá em cima se canta

demonstrando assim a sua satisfação pelas respostas do examinando (11), o que é confirmado pela afirmação explícita de Pedro de que aprova o que Dante disse (v. 121).
Atendendo o pedido de Pedro, Dante passa a expressar mais detalhadamente no que acredita e a origem de sua fé.  
Declara ao “santo pai” (santo padre- v.124) que crê “num Deus/ único e eterno, que imoto move todos os céus/ com seu amor e o amor deles” ( /.../ Io credo in uno Dio/ solo ed etterno, che tutto ‘l ciel move,/ non moto, con amore e con disio- v. 130-2). Segundo um comentarista, essa ideia do “primeiro motor” vem de Aristóteles (12). Dante prossegue afirmando que sua crença tem por base não só “provas/ físicas e metafísicas” (prove/ ficise e metafisice- v. 133-4) mas também “a verdade que daqui chove” (/.../ la verità che quinci piove- v. 135) “por meio de Moisés, dos profetas e dos salmos” (per Moïsè, per profeti e per salmi- v.136)  (i.e. o Velho Testamento) e “pelos Evangelhos e por vós /.../” (per l’Evangelio e per voi /.../-v.137), ou seja, pelos escritos dos Apóstolos (i.e. o Novo Testamento).
Continuando sua profissão de fé, Dante diz que crê na trindade divina, i.e. ele crê que Deus é um e três pessoas simultaneamente, conforme a doutrina evangélica da condição divina e o dogma católico:

e credo in tre persone etterne, e queste
credo una essenza sì una e sì trina,
che soffera congiunto “sono” ed “este”     (v. 139-141)

e creio em três pessoas eternas/ e em uma essência delas tão una e tão trina/ que admite ao mesmo tempo “são” e “é”

            Nessa “profunda condição divina” (profonda condizion divina- v. 142), a natureza una e trina de Deus, reside a origem de sua fé, sintetiza Dante.
O Canto conclui com uma comparação entre um senhor e S.Pedro. O senhor, alegrando-se com a notícia trazida pelo servo, o abraça. Também Pedro, chamado aqui de “lume apostólico” (l’appostolico lume- v. 153), manifesta seu contentamento com as palavras ditas por Dante cingindo-o "três vezes" (tre volte- v.152) e bendizendo-o enquanto  canta.
Note-se a dupla menção do número três neste canto (v.152 e antes, v. 22), associada a Pedro, que segundo os Evangelhos negou Cristo três vezes (13). O número três, como se sabe, tem um papel importante no poema.

NOTAS

  
(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.392.

(2) MOURA, Vasco Graça—“Dante Alighieri- A Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco da Graça Moura. S.Paulo: Landmark, 2005- p. 803.

(3) SINCLAIR, John D.- “The Divine Comedy of Dante Alighieri with translation and commet by John D. Sinclair”. Oxford University Press, New York, 1961, p. 354

(4) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p. 597;  SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.  Penguin Books, 1971, p. 271; .

(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 394.

(6) Id. ib, p. 394.

(7) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p.291.

(8) Id. ib, p. 291.

(9) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 395;
HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 599. 

(10) MARTINS, Cristiano- “A Divina Comédia”. Segundo volume. Purgatório. Paraíso. Tradução, introdução e notas de Cristiano Martins. 5a edição. Belo Horizonte: Ed Itatiaia, 1989, p. 487, nota. 

(11) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”, op cit, p. 272. 

(12) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p. 293. 

(13) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 596. 

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-Para ouvir o Canto XXIV:

Salvador Dalí