PARAÍSO
Canto XXIV
Nos
primeiros nove versos deste Canto é Beatriz quem fala. Ela se dirige aos
eleitos, ou à “companhia de eleitos à
grande ceia/ do bendito Cordeiro” (O solalizio eletto a la gran cena/ del
benedetto Agnello, /.../- v. 1-2),
para interceder por Dante, a fim de que ele desfrute, com antecedência (ele que está ali antes de sua morte), "aquilo que cai de vossa mesa" (di quel che cade de la vostra mensa- v. 5) e sacie um pouco sua sede (“orvalhai-o
um pouco”: roratelo
alquanto- v. 8), seu
imenso desejo de conhecer Deus, de beber da mesma fonte em que os eleitos bebem sempre (v.8-9). (1)
Tais versos apoiam-se em referências
bíblicas, ou em suas imagens. Além do Cordeiro, que representa Cristo, há essa
menção à ceia, que indica, no caso, a beatitude daquelas almas eleitas que no
Paraíso desfrutam da visão de Deus. Não só a fome é saciada por essa ceia, mas
também a sede o é, pela “fonte” referida
no v. 9.
Após as palavras de Beatriz, aquelas
almas alegremente flamejam enquanto giram como esferas de luz em torno de polos
fixos.
Segue-se uma comparação desses círculos
dançantes, cada qual em um ritmo
diferente (v. 16-17), com o mecanismo de um relógio em que a primeira roda
parece parada e a última, que voa, de tão veloz. Há aqui uma hierarquia. Dante
as avalia em função do seu grau de “riqueza”
(ricchezza- v. 18) espiritual. Do círculo que ele
julgou “mais precioso” (più carezza- v. 19) viu sair uma chama não superada
pelas outras em claridade. Ela girou "três vezes" (tre fïate- v.22) em torno de Beatriz, entoando
um canto tão divino que Dante não tem capacidade de repeti-lo, uma vez que “nossa imaginação, e a fala,/ tem cores vivas
demais para representar as dobras do tecido celeste” (chè l’imagine nostra
a cotai pieghe,/ non che ‘l parlare, è tropo color vivo- v. 26-27). Ele não pode representar o canto
divino “assim como o pintor não pode representar as pregas do tecido”, conforme
um comentarista (2). Outro se refere à limitação tecnológica da época
relativamente às características dos pigmentos, muito brilhantes para tal
representação (3).
Amos Nattini |
Essa “chama bendita” (il foco benedetto- v. 31) é S. Pedro, como se verá a seguir. Ele para de cantar e
diz a Beatriz (sua “santa irmã”: santa suora- v. 28) que se separou daquele círculo “mais
precioso” (o dos apóstolos) por causa de seu “ardente afeto” (ardente affetto- v.29) expresso no apelo que ela faz aos eleitos em favor de Dante.
Na sequência, Beatriz lhe responde,
reiterando esse apelo, agora de forma mais específica e dirigindo-se a S.Pedro
-- enfim identificado, pois aqui ela se dirige à “luz eterna do grande homem/ a quem Nosso Senhor deixou as chaves” (
/.../ O
luce etterna del gran viro/ a cui Nostro Segnor lasciò le chiavi- v. 34-35) (do Reino, o Paraíso) – pedindo-lhe
que ele teste Dante “acerca da fé” (intorno de la fede- v.
38), “pela qual tu andaste sobre o mar” (per la qual tu su per
lo mare andavi- v.39),
outra referência bíblica que ajuda a identificar o santo (cf. Mateus, XVI, 19 e
XIV, 29, como informam as notas das obras citadas abaixo) (4).
S.Pedro Apóstolo por A.Vanni- 1390 |
S.Pedro Apóstolo por Rubens |
Beatriz pede que a Dante “seja dada a ocasião de falar” (di lei parlare è ben
ch’a lui arrivi- v. 45)
para que ele possa glorificar a fé, meio pelo qual se conquista o Paraíso.
Afirma ainda que como Pedro vê a mente de Deus (“aquele lugar em que estão pintadas todas as coisas”: dov’ ogne cosa
dipinta si vede- v. 42)
(5), ele sabe se Dante “bem ama, e bem espera e crê” (S’elli ama bene e
bene spera e crede- v.40),
ou seja, se possui as três virtudes teologais. Assim, sobre a fé, ele será
examinado por S.Pedro e, mais adiante por S.Tiago e S.João quanto à esperança e
amor (caridade), respectivamente.
G.di Paolo- O exame de Dante |
Dante então se compara a um bacharel (sendo
submetido, na universidade, ao exame de doutorado) que aguarda a questão a
debater proposta pelo examinador. Este (ou melhor, a luz identificada como S.Pedro) lhe pede para
responder à pergunta-- “que é a fé?”
(fede
che è?- v. 53). Dante
responde a Pedro citando o seu “caro
irmão” (tuo
caro frate-v.62), i.e. S.Paulo,
que com ele “colocou Roma no bom caminho”
(v. 63), vale dizer, a evangelizou:
fede è sustanza di cose sperate
e argomento de le non parventi;
e questa pare a me sua quiditate (v. 64-66)
“fé é a
substância das coisas esperadas/ e evidência das invisíveis;/ penso ser essa a
sua essência”.
A citação está contida em sua Carta
aos Hebreus 11:1. Por outro lado, “essência”, como já vimos, é sinônimo do termo “quididade”, da filosofia escolástica (6).
Logo adiante, nos versos 70 a 78,
Dante fornece uma explicação para essa definição de fé. Ele chama “substância”
aos “mistérios profundos” (Le profonde cose- v.70) que lhe foram revelados no Paraíso e que “estão tão ocultos aos olhos dos de baixo” (a li occhi di là giù son sì ascose- v. 72), ou seja, dos habitantes da Terra. Tais
mistérios, dada a sua natureza, só existem na crença destes, “sobre a qual se funda a alta esperança”
(sopra
la qual si fonda l’alta spene- v. 74),
quer dizer, sua esperança de alcançar a “eterna beatitude” (7).
Por outro lado, a fé é também
“evidência”, porque daquela crença se podem “deduzir silogismos, por não haver provas sensíveis” (silogizzar,
sanz’avere altra vista- v. 77)
Mais adiante, Pedro indaga sobre a
fé de Dante, considerada como uma moeda, na metáfora aí presente:
/.../ “Assai bene è trascorsa
d’esta moneta già la lega e ‘l peso:
ma dimmi se tu l’hai ne la tua borsa”. (v. 83-85)
/.../ “Bem
examinada/ já foi a liga e o peso dessa moeda;/ mas diz-me se tu a tens na tua
bolsa”.
À resposta afirmativa de Dante,
Pedro então pergunta de onde lhe proveio “Essa
joia preciosa/ sobre a qual toda virtude se funda” (Questa cara gioia/
sopra la quale ogne virtù si fonda- v. 89-90), afirmando implicitamente que sobre a fé se baseia a
esperança, a caridade etc (8).
Dante
lhe responde que sua fé proveio das revelações divinas contidas na Bíblia, ou no Novo e Velho Testamento. Essa é a fonte de sua fé:
/.../ La larga ploia
de lo Spirito Santo, ch’è diffusa
in su le
vecchie e ‘n sul e nuove cuoia (v.91-93)
/.../ A
chuva abundante/ do Espírito Santo que é difusa/ sobre o velho e o novo pergaminho
Pedro na sequência quer saber por
que Dante as considera como “fala de Deus”
(divina favella-
v. 99). Por causa dos milagres
ali relatados, afirma Dante, pois para as “obras
ocorridas” (l’opere
seguite- v. 101) “a natureza não tem ferro para esquentar nem
bigorna para bater” (v. 102). Quer dizer, a natureza, comparada a um
ferreiro, não as explica (9).
Pedro então quer saber o que lhe
assegura que aqueles milagres de fato ocorreram. E questiona a validade de seu raciocínio,
pois Dante usa como prova aquilo que deve ser provado (“ /.../ Aquilo mesmo/ que precisa provar-se é o que te atesta”: /.../ Quel medesmo/ che
vuol provarsi, non altri, il ti giura - v. 104-105). A isso, Dante replica que é o fato de que o Cristianismo expandiu-se no mundo, independentemente dos milagres, só pela fé (10), enaltecendo a seguir o trabalho de Pedro para que isso acontecesse.
Dante aproveita também a ocasião para fazer mais uma crítica à Igreja de sua
época:
ché tu intrasti povero e digiuno
in campo, a seminar la buona pianta
che fu già vite e ora è fatta pruno (v. 109-111)
pois tu
entraste pobre e em jejum/ no campo, a semear a boa planta/ que já foi videira
e hoje é espinheiro
Findo o exame,
/.../ l’alta corte santa
risonò per le spere un “Dio laudamo”
ne la melode che là sù si canta (v. 112-114)
/.../ a
alta e santa corte/ fez ressoar pelas esferas um “Deus louvamos”/ na melodia
que lá em cima se canta
demonstrando
assim a sua satisfação pelas respostas do examinando (11), o que é confirmado
pela afirmação explícita de Pedro de que aprova o que Dante disse (v. 121).
Atendendo o pedido de
Pedro, Dante passa a expressar mais detalhadamente no que acredita e a origem
de sua fé.
Declara ao “santo pai” (santo padre- v.124) que crê “num Deus/ único e eterno, que imoto move todos os céus/ com seu amor e
o amor deles” ( /.../
Io credo in uno Dio/ solo ed etterno, che tutto ‘l ciel move,/ non moto, con amore
e con disio- v. 130-2).
Segundo um comentarista, essa ideia do “primeiro motor” vem de Aristóteles
(12). Dante prossegue afirmando que sua crença tem por base não só “provas/ físicas e metafísicas” (prove/ ficise e
metafisice- v. 133-4) mas
também “a verdade que daqui chove” (/.../ la verità che
quinci piove- v. 135) “por meio de Moisés, dos profetas e dos
salmos” (per
Moïsè, per profeti e per salmi- v.136)
(i.e. o Velho Testamento) e “pelos Evangelhos e por vós /.../” (per l’Evangelio e per
voi /.../-v.137), ou
seja, pelos escritos dos Apóstolos (i.e. o Novo Testamento).
Continuando
sua profissão de fé, Dante diz que crê na trindade divina, i.e. ele crê que
Deus é um e três pessoas simultaneamente, conforme a doutrina evangélica da
condição divina e o dogma católico:
e credo in tre persone etterne, e queste
credo una essenza sì una e sì trina,
che soffera congiunto “sono” ed “este” (v. 139-141)
e creio
em três pessoas eternas/ e em uma essência delas tão una e tão trina/ que
admite ao mesmo tempo “são” e “é”
Nessa “profunda condição divina” (profonda condizion divina- v. 142), a natureza una e trina de Deus, reside
a origem de sua fé, sintetiza Dante.
O Canto conclui com uma
comparação entre um senhor e S.Pedro. O senhor, alegrando-se com a notícia
trazida pelo servo, o abraça. Também Pedro, chamado aqui de “lume apostólico” (l’appostolico lume- v.
153), manifesta seu
contentamento com as palavras ditas por Dante cingindo-o "três vezes" (tre volte- v.152) e bendizendo-o
enquanto canta.
Note-se a dupla menção do número três neste canto (v.152 e antes, v. 22), associada a Pedro, que segundo os Evangelhos negou Cristo três vezes (13). O número três, como se sabe, tem um papel importante no poema.
NOTAS
(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony
Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam
Books, 1986- p.392.
(2) MOURA, Vasco Graça—“Dante Alighieri- A
Divina Comédia”- Introdução, tradução e notas de Vasco da Graça Moura. S.Paulo:
Landmark, 2005- p. 803.
(3) SINCLAIR, John D.- “The Divine Comedy of
Dante Alighieri with translation and commet by John D. Sinclair”. Oxford
University Press, New York, 1961, p. 354
(4) HOLLANDER, Robert
& Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert &
Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander. Doubleday, 2007, p. 597; SAYERS,
Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”.
Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds. Penguin Books, 1971, p. 271; .
(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of
Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 394.
(6) Id. ib, p. 394.
(7) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated
with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986,
p.291.
(8) Id. ib, p. 291.
(9) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of
Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 395;
HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 599.
(10) MARTINS, Cristiano- “A Divina Comédia”. Segundo
volume. Purgatório. Paraíso. Tradução, introdução e notas de Cristiano Martins.
5a edição. Belo Horizonte: Ed Itatiaia, 1989, p. 487, nota.
(11) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The
Divine Comedy 3- Paradise”, op cit, p. 272.
(12) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op
cit, p. 293.
(13) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 596.
---------------------------------------------
-Para
ouvir o Canto XXIV:
https://www.youtube.com/watch?v=eOVPytsNnB0
(acessado em 5.10.20)
Salvador Dalí |