sexta-feira, 2 de novembro de 2018

CANTO XVIII


PARAÍSO


Canto XVIII


            Enquanto Cacciaguida -- chamado de “espelho bem-aventurado” (specchio beato- v. 2), porque todos aqueles espíritos do Paraíso refletem a luz divina (1) –  se deleita só com seu pensamento (verbo- v.1), Dante prova o seu, “temperando com o doce o amargo” (/.../ temprando col dolce l’acerbo- v.3), uma vez que o “amargo” das previsões sobre o seu exílio é suavizado com o “doce” da perspectiva da glória literária.  


Salvador Dali
             Beatriz infunde-lhe confiança ao dizer a um Dante preocupado com seu futuro que ela está “perto daquele que endireita tudo o que está torto” (presso a colui ch’ ogne torto disgrava- v. 6), a primeira das diversas menções indiretas a Deus que aparecem neste Canto. Dante diz, na sequência, que encontra conforto em sua voz e que se absterá de contar, em seus versos, “que amor vi então nos olhos santos” (/.../ e qual io allor vidi/ ne li occhi santi amor, /.../- v. 8-9) dela, pois sua mente “não pode recuperar/ tanto, a menos que Outrem (Deus) a guie” ( /.../ per la mente che non può redire/ sovra sé tanto, s’altri non la guidi-  v. 11-12).  Contemplando-a, sua alma se liberta de qualquer outra preocupação, pois ele vê, contente, no olhar de Beatriz a “luz refletida” (secondo aspetto- v.18) da ”Eterna Beleza” (piacere etterno- v. 16) (Deus) (2), que brilhava diretamente nela.  

            Depois disso, Beatriz, com um sorriso que o subjuga, manda-o voltar-se para Cacciaguida, que pela intensificação de sua luz revelava querer falar ainda. O poeta então faz esta comparação: como em nosso mundo o rosto revela o sentimento que se apodera da alma, assim no Paraíso a intensificação da luz que encerra o espírito indica que este quer se manifestar (assim no flamejar do fulgor santo/ ao qual me voltei, percebi a vontade/ nele de falar comigo ainda um tanto: così nel fiammeggiar del folgór santo,/ a ch’io mi volsi, conobbi la voglia/ in lui di ragionarmi ancora alquanto-  v. 25-27).

O trisavô de Dante então se manifesta, associando o Paraíso à imagem de uma árvore invertida, “árvore que recebe vida do topo” (/.../  l’albero che vive de la cima- v. 29) (subentende-se, nessa metáfora, que suas raízes estão no Empíreo, a morada de Deus, acima do nono céu) (3). Essa árvore "produz fruto sempre e jamais perde folha” (e frutta sempre e mai non perde foglia- v.30). Ele se refere ao fato de que estão na “quinta entrada” (quinta soglia- v. 28) dessa árvore, vale dizer, no quinto céu do Paraíso, o céu de Marte, deus mitológico da guerra. Os espíritos  aí presentes foram “notáveis” (v.32), destacaram-se militarmente em sua vida terrena, “antes que viessem para o céu” (/.../ prima/ che venissero al ciel, /.../- v. 31-.32) e enriqueceriam qualquer poema. Cacciaquida manda o descendente olhar “os braços da cruz” (/.../ mira ne’ corni de la croce- v.34) e observar -- à medida que ele nomear esses espíritos -- o seu movimento sobre a cruz “tão rapidamente/ quanto o relâmpago na nuvem,” (/.../ lì farà l’atto/ che fa in nube il suo foco veloce- v. 35-36). Tal cruz, como se viu anteriormente, é aquela que congrega ou é formada pelos inúmeros lumes dos bem-aventurados daquele céu.

Na sequência, Cacciaguida menciona o nome das oito personalidades seguintes: Josué (personagem bíblico, que sucedeu a Moisés na condução dos hebreus à Terra Prometida), Macabeu (grande guerreiro que libertou os judeus da tirania do rei da Síria), Carlos Magno (742-814) (restaurador do Sacro Império Romano que combateu os sarracenos na Espanha), Orlando (ou Rolando), seu sobrinho, herói do épico medieval “Chanson de Roland”, Guilherme de Orange e Renouard, também heróis de um ciclo épico medieval francês (o primeiro um líder militar e o segundo um gigante sarraceno convertido ao cristianismo), duque Godfrey de Bouillon (1058-1100), que liderou a Primeira Cruzada, e Robert Guiscard (1015-1085), que defendeu o papa Gregório VII contra o imperador Henrique IV e lutou no sul da Itália) (4).  A esses, Dante acrescentou Cacciaguida, formando seus "nove notáveis" guerreiros exemplares que não coincidem na íntegra com os da tradição francesa (esta incluía três judeus, três cristãos e três pagãos). Dante excluiu cinco nomes (inclusive os três pagãos), e adicionou cinco heróis cristãos mais recentes, a saber: Roland, Guilherme de Orange, Renouard, Robert Guiscard e Cacciaguida (5).  O trisavô de Dante nasceu em Florença por volta de 1090. Participou da Segunda Cruzada, seguindo o imperador Conrado III por quem foi feito cavaleiro. Morreu em combate contra os infiéis cerca de 1147 (6). 

Carlos Magno por A. Dürer

Cacciaguida retira-se, movendo-se na cruz, como os outros lumes, com os quais se mistura. Mostra então “que artista ele era, dentre os cantores do céu” (qual era tra i cantor del cielo artista- v. 51).

Dante volta-se para Beatriz, em busca de orientação sobre o que fazer a seguir. E viu “os seus olhos tão brilhantes,/ tão jucundos” (e vidi le sue luci tanto mere,/ tanto gioconde,/ .../- v. 55-56) que, diz ele, sua aparência superava todas as outras ocasiões em que a vira. Os versos, na sequência, fazem duas comparações: a primeira é entre um homem que, por sentir mais deleite fazendo sempre o bem, “se dá conta de que a sua virtude avança” (s’accorge che la sua virtute avanza,- v. 60), e o próprio poeta, que igualmente se dá conta de que também avança, pois “girando/ junto com o céu tinha crescido o arco deste” (/.../ ‘l mio girare intorno/ col cielo insieme avea cresciuto l’arco,- v. 61-62), e por ver sua Beatriz tornar-se ainda mais bela (“vendo aquele milagre tornar-se ainda mais bela” :veggendo quel miracol più adorno- v.63). Dante indica  aqui, de modo indireto, a sua ascensão ao sexto céu, de Júpiter, de abrangência maior que o de Marte. Tal ascensão é também indicada pela maior beleza de Beatriz. A segunda comparação se faz entre “a mudança de cor/ em uma dama clara, quando seu rosto/ se livra do rubor da vergonha” ( /.../ ‘l trasmutare /.../ in bianca donna, quando ‘l volto/ suo si discarchi di vergogna il carco,- v.64-66) e a mudança que ocorreu diante dos olhos do poeta ao olhar o céu, ”pela alvura da temperada estrela/ sexta, que dentro de si me tinha acolhido” (per lo candor de la temprata stella/ sesta, che dentro a sé m’avea ricolto- v. 68-69). Vale dizer, a mudança na face da dama clara, que perdeu seu rubor, é comparada à mudança de cor que o poeta vê, ao passar do céu de Marte ao de Júpiter, do vermelho do primeiro ao branco prateado do segundo. Esta última "estrela" é chamada “temperada” (v. 68) porque se situa entre o frio de Saturno e o calor de Marte (7).

Dante vê depois naquela "estrela" de Jove (ou Júpiter) as luzes (almas) que continha  desenharem ante meus olhos os signos de nossa linguagem” (segnare a li occhi miei nostra favella- v.72), ou seja, letras. Tais luzes, ao formarem um D, depois, um I e um L (início da citação bíblica transcrita adiante), são comparadas às aves que se erguem dos rios e formam no céu um círculo ou outra figura. Primeiro, as “santas criaturas” (sante creature- v. 76) cantavam e depois, tomando a forma de uma daquelas letras, “detinham-se por um tempo,  em silêncio”  (un poco s’arrestavano e taciensi-  v.81).

Gustave Doré

Dante na sequência faz uma invocação a uma “divina pegaseana” (diva Pegasëa- v.82), ou seja, a uma musa não especificada (poderia ser Calíope, a musa da poesia épica, Clio, da história, ou alguma outra) (8). Pegasus é o cavalo alado que está associado a elas, pois, segundo a mitologia, com o casco o animal fez jorrar uma fonte no monte Helicon, local frequentado pelas musas (9). O poeta pede que essa musa, a quem ele se dirige, o ilumine e possa mostrar em seus versos, com a “potência” dela (tua possa- v. 87), os signos que viu e inscreveu em sua mente. Os espíritos formam 35 letras, uma a uma (“Mostraram-se em cinco vezes sete/  vogais e consoantes;/.../:  Mostrarsi dunque in cinque volte sete/ vocali e consonanti; /.../- v. 88-89) e ele lê então no céu, pouco a pouco, a frase bíblica extraída do Livro da Sabedoria (I,1)-- “Diligite iustitiam qui iudicatis terram” (Amai a justiça, ó vós que governais a terra) (10). Depois, no eme do último vocábulo (terram) –- que também evoca a letra inicial da palavra latina “monarchia” (defendida por Dante, como já sabemos, para absorver todo o poder temporal da Igreja, que deveria se concentrar somente no espiritual) (11) --- as luzes permaneceram agrupadas, “de modo que a prata de Jove/ parecia ali ornada de ouro” (/.../ sì che Giove/ pareva argento lì d’oro distinto-  v.95-96). Outras luzes descem ainda sobre esse eme, “cantando, creio, o Bem (Deus) que a si as move” (cantando, credo, il ben ch’a sé le move- v. 99).  A  seguir, nos versos abaixo (que incluem uma bela comparação), Dante afirma ter visto as almas/luzes formarem sobre o eme uma águia, interpretada como a águia imperial romana, símbolo da justiça terrena:

Poi, come nel percuoter d’i ciocchi arsi
surgono innumerabili faville,
onde li stolti sogliono agurarsi,

resurger parver quindi più di mille
luci e salir, qual assai e qual poco,
sì come ‘l sol che l’accende sortille;

e quïetata ciascuna in suo loco,
la testa e ‘l collo d’un’aguglia vidi
rappresentare a quel distinto foco.    (v.100-108)

Então, como quando alguém golpeia os cepos ardentes/ levantam-se inumeráveis fagulhas/ onde os néscios costumam ver augúrios,
daquele ponto (do eme) pareceu elevar-se mais de mil/ luzes, e subirem umas muito, outras pouco/ como o Sol (Deus) que as acende determinou;
e assentada cada uma em seu lugar,/ vi a cabeça e o pescoço de uma águia/  conformados por aquele arranjo de fogo.           



Prossegue o poeta: Aquele que pinta no céu (Deus) guia, mas não é guiado. D’Ele provém “aquela virtude que dá forma aos ninhos” (quella virtù ch’è forma per li nidi- v.111), ou a força inata que determina, por exemplo, o padrão a ser reproduzido toda vez que um pássaro faz seu ninho. Afirma adiante que as outras luzes, as que vieram depois, inicialmente formaram um lírio sobre o eme  mas a seguir ,“com pouco movimento, concluíram a figura da águia” (con poco moto seguitò la ‘mprenta- v. 114). Conforme Hollander, alguns comentadores afirmam que essa menção ao lírio não se refere à França mas a Florença, a primitiva, ideal, tal como descrita por Cacciaguida no canto XVI (12). Mas para Ciardi, a associação do lírio à monarquia francesa é obrigatória. Se a sabedoria e a justiça governassem, a França deveria estar unida ao Império sonhado por Dante, em vez de adotar uma política divisionista (13).   

Na apóstrofe seguinte, o poeta afirma que a justiça terrena é decorrência da justiça celeste, ou do céu de Júpiter (ela sofre a influência deste céu):

O dolce stella, quali e quante gemme
mi dimostraro che nostra giustizia
effeto sia del ciel che tu ingemme!      (v.115-117)

Ó doce estrela, tuas gemas/ me demonstraram que a justiça terrena/ é efeito do céu em que estás incrustada, como jóia!

            Dante continua a referir-se a esse astro, ao rogar à Mente (Deus), “em que se inicia/ teu movimento e tua virtude” (/.../ in che s’inizia/ tuo moto e tua virtute, /.../- v. 118-119), que volte a se indignar contra aqueles que se dedicam a “comprar e vender dentro do templo/ que se construiu com milagres e martírios” (/.../ comperare e vender dentro al templo/ che si murò di segni e di martìri-  v.122-123). É deles, da Igreja desvirtuada pelos maus papas, que “sai a fumaça que tolda os teus raios” (ond’ esce il fummo che ‘l tuo raggio vizia- v.120), os raios da influência benéfica do céu de Júpiter sobre a justiça terrena.

Gustave Doré

            Em nova apóstrofe, Dante dirige-se à “milícia celeste” (milizia del ciel-v.124), contemplada por ele da Terra (onde compõe seu poema, após retornar da viagem extraordinária) (14), rogando agora pelos que vivem aqui, “transviados seguindo mau exemplo! ” (dos papas) (tutti svïati dietro al malo essemplo!- v. 126).  Em nova crítica à Igreja de seu tempo, Dante afirma que, enquanto “Antes se fazia a guerra com espadas;” (Già si solea con le spade far guerra;- v. 127), agora se faz retirando “o pão que o terno Pai não nega a ninguém” (lo pan che ‘l pïo Padre a nessun serra- v. 129), ou seja, negando a hóstia pelas bulas de excomunhão. Dante então faz uma acusação direta ao papa da época em que escreve, João XXII (1316-1334) (15), que cobrava para revogar as bulas antes emitidas, lembrando-lhe de dois santos que morreram por essa Igreja (referida pela metáfora da “vinha”) que ele agora devasta, com seu comportamento deplorável:  

Ma tu che sol per cancellare scrivi,
pensa che Pietro e Paulo, che moriro
per la vigna che guasti, ancor son vivi.     (v.130-132)

Mas tu que escreves para depois cancelar/ lembra que Pedro e Paulo, mortos/ pela vinha que devastas, ainda estão vivos.

João XXII

Dante conclui o Canto ironicamente, imaginando que o papa em questão pode bem lhe dizer que seu anseio é por um outro santo, não pelos recém mencionados, “é por aquele que escolheu viver só/ e que por uma dança foi levado ao martírio” (sì a colui che volle viver solo/ e che per salti fu tratto al martiro,- v. 134-135). As referências à sua vida passada e à dança de Salomé, que pediu a Herodes a cabeça do santo (Mat. 14-1-12), identificam-no como S. João Batista, cuja imagem aparecia nos florins de ouro  de Florença... (16)


NOTAS



(1) LONGNON, Henri- “La Divine Comédie”. Traduction, préface, notes et commentaires par Henri Longnon. Paris: Garnier, 1951, p. 667.

(2) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p.447.

(3) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.373.

(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 373-374..

(5) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.448-449.

(6) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.  Penguin Books, 1971, p.364.

(7) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 374.

(8) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 452.

(9) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 375.
 
(10) MARTINS, Cristiano- “A Divina Comédia”. Segundo volume. Purgatório. Paraíso. Tradução, introdução e notas de Cristiano Martins. 5a edição. Belo Horizonte: Ed Itatiaia, 1989, p. 436, nota. 

(11) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 375.

(12) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.454.

(13) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi.  New American Library, 2003, p.759.

(14) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p.222

(15) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 376.

(16) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p. 224.

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Para ouvir o Canto XVIII:  
Amos Nattini