PARAÍSO
Canto XVIII
Enquanto Cacciaguida -- chamado de “espelho bem-aventurado” (specchio beato- v. 2), porque todos aqueles espíritos do
Paraíso refletem a luz divina (1) – se
deleita só com seu pensamento (verbo- v.1),
Dante prova o seu, “temperando com o doce
o amargo” (/.../
temprando col dolce l’acerbo- v.3),
uma vez que o “amargo” das previsões sobre o seu exílio é suavizado com o “doce”
da perspectiva da glória literária.
Salvador Dali |
Depois disso, Beatriz, com um
sorriso que o subjuga, manda-o voltar-se para Cacciaguida, que pela
intensificação de sua luz revelava querer falar ainda. O poeta então faz esta
comparação: como em nosso mundo o rosto revela o sentimento que se apodera da
alma, assim no Paraíso a intensificação da luz que encerra o espírito indica
que este quer se manifestar (assim no
flamejar do fulgor santo/ ao qual me voltei, percebi a vontade/ nele de falar
comigo ainda um tanto: così nel fiammeggiar del folgór santo,/ a ch’io mi volsi,
conobbi la voglia/ in lui di ragionarmi ancora alquanto- v. 25-27).
O trisavô de Dante então se manifesta, associando o Paraíso à imagem de uma árvore invertida, “árvore que recebe vida do topo” (/.../
l’albero che vive de la cima- v. 29)
(subentende-se, nessa metáfora, que suas raízes estão no Empíreo, a morada de Deus, acima do nono céu) (3). Essa árvore "produz fruto sempre e jamais perde folha” (e frutta sempre e mai
non perde foglia- v.30).
Ele se refere ao fato de que estão na “quinta
entrada” (quinta
soglia- v. 28) dessa
árvore, vale dizer, no quinto céu do Paraíso, o céu de Marte, deus mitológico da
guerra. Os espíritos aí presentes foram
“notáveis” (v.32), destacaram-se
militarmente em sua vida terrena, “antes
que viessem para o céu” (/.../ prima/ che venissero al ciel, /.../- v. 31-.32) e enriqueceriam qualquer poema.
Cacciaquida manda o descendente olhar “os
braços da cruz” (/.../
mira ne’ corni de la croce- v.34)
e observar -- à medida que ele nomear esses espíritos -- o seu movimento sobre
a cruz “tão rapidamente/ quanto o
relâmpago na nuvem,” (/.../ lì farà l’atto/ che fa in nube il suo foco veloce- v.
35-36). Tal cruz, como se
viu anteriormente, é aquela que congrega ou é formada pelos inúmeros lumes dos
bem-aventurados daquele céu.
Na sequência, Cacciaguida menciona o
nome das oito personalidades seguintes: Josué
(personagem bíblico, que sucedeu a Moisés na condução dos hebreus à Terra
Prometida), Macabeu (grande guerreiro
que libertou os judeus da tirania do rei da Síria), Carlos Magno (742-814) (restaurador do Sacro Império Romano que
combateu os sarracenos na Espanha), Orlando
(ou Rolando), seu sobrinho, herói do épico medieval “Chanson de Roland”, Guilherme de Orange e Renouard, também heróis de um ciclo
épico medieval francês (o primeiro um líder militar e o segundo um gigante
sarraceno convertido ao cristianismo), duque
Godfrey de Bouillon (1058-1100), que liderou a Primeira Cruzada, e Robert Guiscard (1015-1085), que
defendeu o papa Gregório VII contra o imperador Henrique IV e lutou no sul da
Itália) (4). A esses, Dante acrescentou Cacciaguida, formando seus "nove
notáveis" guerreiros exemplares que não coincidem na íntegra com os da tradição francesa (esta incluía três judeus, três cristãos e três pagãos). Dante excluiu cinco nomes (inclusive os três pagãos), e adicionou cinco heróis cristãos mais recentes, a saber: Roland, Guilherme de Orange, Renouard, Robert Guiscard e Cacciaguida (5). O trisavô de Dante nasceu em Florença por
volta de 1090. Participou da Segunda Cruzada, seguindo o imperador Conrado III
por quem foi feito cavaleiro. Morreu em combate contra os infiéis cerca de 1147
(6).
Carlos Magno por A. Dürer |
Cacciaguida retira-se, movendo-se na
cruz, como os outros lumes, com os quais se mistura. Mostra então “que artista ele era, dentre os cantores do
céu” (qual
era tra i cantor del cielo artista- v. 51).
Dante volta-se para Beatriz, em busca
de orientação sobre o que fazer a seguir. E viu “os seus olhos tão brilhantes,/ tão jucundos” (e vidi le sue luci
tanto mere,/ tanto gioconde,/ .../- v. 55-56) que, diz ele, sua aparência superava todas as outras
ocasiões em que a vira. Os versos, na sequência, fazem duas comparações: a primeira
é entre um homem que, por sentir mais deleite fazendo sempre o bem, “se dá conta de que a sua virtude avança”
(s’accorge
che la sua virtute avanza,- v. 60),
e o próprio poeta, que igualmente se dá conta de que também avança, pois “girando/ junto com o céu tinha crescido o
arco deste” (/.../
‘l mio girare intorno/ col cielo insieme avea cresciuto l’arco,- v. 61-62), e por ver sua Beatriz tornar-se
ainda mais bela (“vendo aquele milagre tornar-se
ainda mais bela” :veggendo
quel miracol più adorno- v.63).
Dante indica aqui, de modo indireto, a sua
ascensão ao sexto céu, de Júpiter, de abrangência maior que o de Marte. Tal ascensão
é também indicada pela maior beleza de Beatriz. A segunda comparação se faz
entre “a mudança de cor/ em uma dama
clara, quando seu rosto/ se livra do rubor da vergonha” ( /.../ ‘l trasmutare
/.../ in bianca donna, quando ‘l volto/ suo si discarchi di vergogna il carco,-
v.64-66) e a mudança que
ocorreu diante dos olhos do poeta ao olhar o céu, ”pela alvura da temperada estrela/ sexta, que dentro de si me tinha
acolhido” (per
lo candor de la temprata stella/ sesta, che dentro a sé m’avea ricolto- v.
68-69). Vale dizer, a
mudança na face da dama clara, que perdeu seu rubor, é comparada à mudança de
cor que o poeta vê, ao passar do céu de Marte ao de Júpiter, do vermelho do
primeiro ao branco prateado do segundo. Esta última "estrela" é chamada “temperada” (v. 68) porque se situa entre
o frio de Saturno e o calor de Marte (7).
Dante vê depois naquela "estrela" de Jove
(ou Júpiter) as luzes (almas) que continha
“desenharem ante meus olhos os
signos de nossa linguagem” (segnare a li occhi miei nostra favella- v.72), ou seja, letras. Tais luzes, ao
formarem um D, depois, um I e um L (início da citação bíblica transcrita
adiante), são comparadas às aves que se erguem dos rios e formam no céu um
círculo ou outra figura. Primeiro, as “santas
criaturas” (sante
creature- v. 76) cantavam
e depois, tomando a forma de uma daquelas letras, “detinham-se por um tempo, em
silêncio” (un poco s’arrestavano
e taciensi- v.81).
Gustave Doré |
Dante na sequência faz uma invocação a
uma “divina pegaseana” (diva Pegasëa- v.82), ou seja, a uma musa não
especificada (poderia ser Calíope, a musa da poesia épica, Clio, da história,
ou alguma outra) (8). Pegasus é o cavalo alado que está associado a elas, pois,
segundo a mitologia, com o casco o animal fez jorrar uma fonte no monte
Helicon, local frequentado pelas musas (9). O poeta pede que essa musa, a quem ele
se dirige, o ilumine e possa mostrar em seus versos, com a “potência” dela (tua possa- v. 87), os signos que viu e inscreveu em
sua mente. Os espíritos formam 35 letras, uma a uma (“Mostraram-se em cinco vezes sete/
vogais e consoantes;/.../: Mostrarsi dunque in cinque volte sete/ vocali
e consonanti; /.../- v. 88-89)
e ele lê então no céu, pouco a pouco, a frase bíblica extraída do Livro da
Sabedoria (I,1)-- “Diligite iustitiam qui
iudicatis terram” (“Amai a justiça,
ó vós que governais a terra”) (10).
Depois, no eme do último vocábulo (terram)
–- que também evoca a letra inicial da palavra latina “monarchia” (defendida por Dante, como já sabemos, para absorver todo
o poder temporal da Igreja, que deveria se concentrar somente no espiritual) (11)
--- as luzes permaneceram agrupadas, “de
modo que a prata de Jove/ parecia ali ornada de ouro” (/.../ sì che Giove/
pareva argento lì d’oro distinto- v.95-96). Outras luzes descem ainda sobre
esse eme, “cantando, creio, o Bem (Deus)
que a si as move” (cantando, credo, il
ben ch’a sé le move- v. 99). A seguir, nos versos abaixo (que incluem uma
bela comparação), Dante afirma ter visto as almas/luzes formarem sobre o eme
uma águia, interpretada como a águia imperial romana, símbolo da justiça
terrena:
Poi, come nel percuoter d’i ciocchi arsi
surgono innumerabili faville,
onde li stolti sogliono agurarsi,
resurger parver quindi più di mille
luci e salir, qual assai e qual poco,
sì come ‘l sol che l’accende sortille;
e quïetata ciascuna in suo loco,
la testa e ‘l collo d’un’aguglia vidi
rappresentare a quel distinto foco. (v.100-108)
Então, como
quando alguém golpeia os cepos ardentes/ levantam-se inumeráveis fagulhas/ onde
os néscios costumam ver augúrios,
daquele
ponto (do eme) pareceu elevar-se mais de mil/ luzes, e subirem umas muito,
outras pouco/ como o Sol (Deus) que as acende determinou;
e
assentada cada uma em seu lugar,/ vi a cabeça e o pescoço de uma águia/ conformados por aquele arranjo de fogo.
Prossegue o poeta: Aquele que pinta no céu (Deus) guia, mas não é guiado. D’Ele
provém “aquela virtude que dá forma aos
ninhos” (quella
virtù ch’è forma per li nidi- v.111), ou a força inata que determina, por exemplo, o padrão
a ser reproduzido toda vez que um pássaro faz seu ninho. Afirma adiante que as outras luzes, as que vieram
depois, inicialmente formaram um lírio sobre o eme mas a seguir ,“com pouco movimento, concluíram a figura da águia” (con poco moto seguitò
la ‘mprenta- v. 114). Conforme Hollander, alguns comentadores afirmam que essa menção ao lírio não se refere à França mas a Florença, a
primitiva, ideal, tal como descrita por Cacciaguida no canto XVI (12). Mas para
Ciardi, a associação do lírio à monarquia francesa é obrigatória. Se a
sabedoria e a justiça governassem, a França deveria estar unida ao Império
sonhado por Dante, em vez de adotar uma política divisionista (13).
Na apóstrofe seguinte, o poeta afirma
que a justiça terrena é decorrência da justiça celeste, ou do céu de Júpiter (ela sofre a influência deste céu):
O dolce stella, quali e quante gemme
mi dimostraro che nostra giustizia
effeto sia del ciel che tu ingemme! (v.115-117)
Ó doce
estrela, tuas gemas/ me demonstraram que a justiça terrena/ é efeito do céu em
que estás incrustada, como jóia!
Dante
continua a referir-se a esse astro, ao rogar à Mente (Deus), “em que se inicia/ teu movimento e tua
virtude” (/.../
in che s’inizia/ tuo moto e tua virtute, /.../- v. 118-119), que volte a se indignar contra aqueles
que se dedicam a “comprar e vender dentro
do templo/ que se construiu com milagres e martírios” (/.../ comperare e
vender dentro al templo/ che si murò di segni e di martìri- v.122-123).
É deles, da Igreja desvirtuada pelos maus papas, que “sai a fumaça que tolda os teus raios” (ond’ esce il fummo
che ‘l tuo raggio vizia- v.120),
os raios da influência benéfica do céu de Júpiter sobre a justiça terrena.
Gustave Doré |
Em nova apóstrofe, Dante dirige-se à
“milícia celeste” (milizia del ciel-v.124), contemplada por ele da Terra (onde
compõe seu poema, após retornar da viagem extraordinária) (14), rogando agora pelos que vivem aqui, “transviados seguindo mau exemplo! ” (dos papas) (tutti svïati dietro al malo essemplo!-
v. 126). Em nova crítica à Igreja de seu tempo, Dante
afirma que, enquanto “Antes se fazia a
guerra com espadas;” (Già si solea con le spade far guerra;- v. 127), agora se faz retirando “o pão que o terno Pai não nega a ninguém”
(lo pan
che ‘l pïo Padre a nessun serra- v. 129),
ou seja, negando a hóstia pelas bulas de excomunhão. Dante então faz uma
acusação direta ao papa da época em que escreve, João XXII (1316-1334) (15), que
cobrava para revogar as bulas antes emitidas, lembrando-lhe de dois santos que
morreram por essa Igreja (referida pela metáfora da “vinha”) que ele agora devasta, com seu comportamento deplorável:
Ma tu che sol per cancellare scrivi,
pensa che Pietro e Paulo, che moriro
per la vigna che guasti, ancor son vivi. (v.130-132)
Mas tu
que escreves para depois cancelar/ lembra que Pedro e Paulo, mortos/ pela vinha
que devastas, ainda estão vivos.
João XXII |
Dante conclui o Canto ironicamente, imaginando
que o papa em questão pode bem lhe dizer que seu anseio é por um outro santo, não
pelos recém mencionados, “é por aquele
que escolheu viver só/ e que por uma dança foi levado ao martírio” (sì a colui che volle
viver solo/ e che per salti fu tratto al martiro,- v. 134-135). As referências à sua vida passada e
à dança de Salomé, que pediu a Herodes a cabeça do santo (Mat. 14-1-12), identificam-no
como S. João Batista, cuja imagem aparecia nos florins de ouro de Florença... (16)
NOTAS
(1) LONGNON, Henri- “La Divine Comédie”.
Traduction, préface, notes et commentaires par Henri Longnon. Paris: Garnier,
1951, p. 667.
(2) HOLLANDER, Robert
& Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert &
Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander. Doubleday, 2007, p.447.
(3) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony
Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam
Books, 1986- p.373.
(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of
Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 373-374..
(5) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p.448-449.
(6) SAYERS,
Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated
by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.
Penguin Books, 1971, p.364.
(7) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri-
Paradiso”, op cit, p. 374.
(8) HOLLANDER,
Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 452.
(9) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri-
Paradiso”, op cit, p. 375.
(10) MARTINS, Cristiano- “A Divina Comédia”.
Segundo volume. Purgatório. Paraíso. Tradução, introdução e notas de Cristiano
Martins. 5a edição. Belo Horizonte: Ed Itatiaia, 1989, p. 436, nota.
(11) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy
of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 375.
(12) HOLLANDER, Robert
& Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.454.
(13) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The
Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi. New American Library, 2003, p.759.
(14) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated
with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986,
p.222
(15) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy
of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 376.
(16) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p. 224.
----------------------------
Para ouvir o
Canto XVIII:
Amos Nattini |