PARAÍSO
Canto XIV
O
Canto começa com uma comparação implícita que vem à mente do poeta narrador, sugerida
pelas ondas do movimento da água dentro de um vaso, da
borda para o centro (ou inversamente) quando é golpeado, e as palavras (ondas sonoras) do
discurso recém-concluído de Tomás de Aquino, situado na “beira” da roda dos
espíritos sapientes. A sugestão também se
aplica ao discurso de Beatriz, que agora passa a enunciá-lo, num sentido
inverso, do centro para a borda (1).
Beatriz, partícipe da faculdade divina de ler a mente de Dante, se antecipa a este ao expor duas dúvidas que sabe que ele tem mas ainda
não formulou para si mesmo. Ela afirma aos espíritos sapientes (dos dois
círculos, 24 ao todo) que Dante necessita
saber 1) se a luz desses espíritos “permanecerá
convosco/ eternamente, assim como está agora” (/.../ rimarrá con
voi/ etternalmente sì com’ ell’ è ora;- v. 14-15) e 2) “e se
permanecer, dizei como, depois/ que sereis feitos visíveis de novo,/ será
possível vê-la sem vos prejudicar”:
e se rimane, dite come, poi
che sarete visibili rifatti,
esser porà ch’ al veder non vi nòi. (v.16-18)
i.e.
se depois da Ressurreição, quando os mortos readquirirem os corpos, seus olhos
poderão suportar tanta luz.
A essas indagações, os “santos círculos” (li santi cerchi- v.23) demonstram sua alegria (em poder
esclarecer Dante) através de sua dança e canto e são comparados a dançarinos
que, devido ao seu contentamento, “alçam
a voz e aceleram o movimento” (levan la voce e rallegrano li atti- v. 21).
Os espíritos sapientes cantavam em
uníssono três vezes em louvor de Deus, ou melhor da SS. Trindade, pois Deus não
é uma só pessoa mas três. Como diz um comentador citado por Hollander, os
versos 28-29 consistem em “Uma designação teológica de Deus, que vive e reina
eternamente como uma única Substância, duas Naturezas e três Pessoas” (2) (as
duas Naturezas referem-se naturalmente às naturezas humana e divina de Cristo).
Assim, a Trindade é destacada por Dante pela ênfase que o terceto seguinte
atribui ao fato, o qual comporta uma conotação enigmática como o próprio
mistério desse dogma:
Quell’ uno e due e tre che sempre vive
e regna sempre in tre e ‘n due e ‘n uno,
non circunscritto, e tutto circunscrive, (v.
28-30)
Aquele Um
e Dois e Três que sempre vive/ e reina sempre em Três e em Dois e em Um,/ não
circunscrito mas que tudo circunscreve,
Em seguida, Dante ouve uma voz,
saindo de “dentro da luz mais fúlgida/ do
menor circulo” (/.../
ne la luce più dia/ del minor cerchio /.../- v.34-35) que vai responder às suas questões.
O círculo menor é o círculo daqueles 12 espíritos que primeiro apareceram. E
quem fala, segundo a maioria dos comentadores, é o rei bíblico Salomão. Sua voz
é “modesta” (v. 35) (pois sua
condição é a de um mensageiro), “talvez
como a do Anjo a Maria” (forse qual fu da l’angelo a Maria- v.36), vale dizer, o Anjo da Anunciação
(3).
Salomão inicia sua fala, que se
estende do v. 37 ao v. 60, referindo-se à luz que os reveste, e esclarecendo a primeira
dúvida de Dante. Essa luz durará eternamente pois durará enquanto “dure a festa do Paraíso” (/.../ Quanto fia
lunga la festa/ di paradiso, /.../- v.37-38). Avança na
explicação dessa luz, afirmando que é o
amor desses espíritos que os faz resplender (v. 38-39).
La sua chiarezza séguita l’ardore;
l’ardor la visione, e quella è tanta,
quant’ ha di grazia sovra suo valore. (v.40-42)
O seu
brilho resulta do nosso ardor;/ o ardor, da visão de Deus, e essa é tanta/
quanto a graça que recebe além do seu mérito.
Salomão explica aqui a diferença de
brilho entre os espíritos, pois conforme esses versos seu brilho (ou luz) decorre
do amor (ou ardor), que por sua vez depende da visão de Deus. Assim, quanto
mais essa graça é concedida ao espírito, mais ele brilhará (4).
No final dos tempos, quando ocorrer a Ressurreição
da carne, ou como dizem os versos “Quando a carne glorificada e santa/ nos
vestir de novo, /.../” – (Come la carne gloriosa e santa/ fia rivestita, /.../- v.43-44), as pessoas dos espíritos ficarão completas. Receberão
o “lume da graça” (gratüito lume- v. 47) de Deus, que é condição para vê-lO,
tornando-se assim mais resplendentes (crescendo a visão de Deus, crescerá o ardor
e assim a luz dos espíritos, conforme é reafirmado nos versos
49-51).
Segue-se uma bela imagem, na
comparação abaixo entre o brilho do corpo ressurrecto -- que se destaca frente
ao brilho menos intenso dos espíritos antes da Ressurreição -- e o carvão
incandescente que se destaca dentre as chamas:
Ma sì come carbon che fiamma rende,
e per vivo candor quella soverchia,
sì che la sua parvenza si difende;
così questo folgór che già ne cerchia
fia vinto in apparenza da la carne
che tutto dì la terra ricoperchia; (v. 52-57)
Mas
como o carvão que produz a chama/ e, pela viva incandescência, a ultrapassa em
brilho/ de modo que sua aparência se impõe;
assim
este fulgor que nos envolve/ será então superado em visibilidade pela carne/
que a terra por ora recobre;
Salomão encerra sua fala respondendo
diretamente à segunda questão de Dante ao afirmar que “nem poderá tanta luz nos fatigar” (né potrà tanta luce affaticarne- v.58), pois os órgãos sensoriais de seu
corpo serão fortes o bastante para o que verão, e isso será causa de deleite
para eles.
Na sequência, os dois círculos de
espíritos sábios manifestam sua concordância com as palavras de Salomão dizendo
“Amém” (v.62) e demonstram “anseio pelos seus corpos mortos” (/.../ disio d’i corpi
morti- v. 63):
forse non pur per lor, ma per le mamme,
per li padri e per li altri che fuor cari
anzi che fosser sempiterne fiamme. (v.64-66)
talvez
não só por eles, mas pelas mães,/ pelos pais e pelos outros que lhes foram
caros/ antes que se tornassem eternas chamas.
Depois, Dante vê surgir em torno “um fulgor, além da luz que ali havia” (/.../ un lustro sopra
quel che v’era- v.68).
Trata-se de um terceiro círculo de espíritos bem-aventurados, o dos que lutaram
em defesa da fé:
E sì come al salir di prima sera
comincian
per lo ciel nove parvenze,
sì che la vista pare e non par vera,
parvemi lì novelle sussistenze
cominciare a vedere, e fare un giro
di fuor da l’altre due circunferenze. (v. 70-75)
E assim
como ao cair da noite/ começam a se mostrar no céu novas luzes,/ de modo que a
vista parece ser real e irreal,
pareceu-me
que novas substâncias (espíritos) / comecei a ver ali e formar um anel/ por fora das duas
circunferências.
Essa terceira circunferência é
associada ao Espírito Santo no verso seguinte: “Ó vera fulguração do Santo Espírito!” (Oh vero sfavillar del
Santo Spiro!- v.76), o
que torna crível a interpretação de John S. Carroll, citada por Hollander (5), de
que implicitamente a primeira estaria associada a Deus Padre e a segunda a Deus
Filho (Cristo), o conjunto referindo-se assim à SS.Trindade. Esses círculos, conforme
a concepção do abade cisterciense Joachim de Flora (ca.1130-1202), representariam
diversas eras, sendo a do Espírito Santo aquela que estaria ainda por vir, “um
período de perfeição, liberdade e paz”. As ideias de Joachim de Flora, segundo
alguns eruditos, muito influenciaram o poeta florentino (6).
Os olhos de Dante não suportam essa
fulguração do Espírito Santo, mas eles se compensam com a visão de Beatriz, “tão bela e sorridente” (sì bella e ridente- v.79). Todavia, a memória de Dante não tem
a capacidade de reter a beleza aumentada dela (7). Por isso ele diz que sua
visão “entre aquelas visões/ que fogem da
memória deve ficar” (/.../
tra quelle vedute/ si vuol lasciar che non seguir la mente- v. 80-81).
Gustave Doré. |
Em seguida, ele se vê “alçado, só com minha dama, a mais alta beatitude” (/.../ e vidimi
translato/ sol con mia donna in più alta salute- v. 82-83).
Percebe que só eles dois, não os demais espíritos do céu do Sol, foram elevados
a um astro de “riso ígneo” (affocato riso- v.86), identificado como Marte, que tomou o nome do deus romano da guerra. Tal "estrela" lhe pareceu então “mais rubra que o usual” (che mi parea piu roggio
che l’usato- v. 87), como
sinal de boas-vindas a Beatriz (8). No planeta vermelho estão os espíritos dos
que morreram em defesa da fé, vale dizer dos espíritos associados à Igreja
militante.
Dante, “De todo coração e com aquela linguagem/ que é comum a toda gente” (Con tutto ‘l core e con
quella favella/ ch’ è una in tutti, /.../- v. 88-89), a linguagem do coração, faz “holocausto” (olocausto- v. 89), ou sacrifício de si mesmo a Deus
(9), metaforicamente, “o que era
conveniente pela nova graça recebida” (qual conveniesi a la grazia novella- v. 90), a de subir ao céu de Marte. E constata que seu “sacrifício” (v.92) fora aceito pois então lhe “apareceram esplendores em dois
raios” (m’apparvero
splendor dentro a due raggi- v. 95),
ou seja, lhe apareceram muitos espíritos, os dos guerreiros que morreram em
defesa da fé (10), “tão fulgentes e tão
rubros” (/.../
con tanto lucore e tanto robbi- v. 94),
formando uma cruz ( como se dirá abaixo, nos vv. 101-102), o que faz o poeta admirar-se
pela forma como o Sol (“Hélios”: Elïòs- v. 96, nome grego do astro), ou Deus, adorna
tais espíritos com sua luz.
A. Vellutello- A cruz do Céu de Marte |
Segue-se uma comparação desses
espíritos que formaram uma cruz com os astros da “Via Láctea” (Galassia-
v. 99). A cruz é referida
nos versos como “o venerável signo/ que
se forma da conjunção dos quadrantes em um círculo” (/.../ il venerabil
segno/ che fan giunture di quadranti in tondo- v. 101-102), pelo que imaginamos uma cruz grega,
aquela que tem os braços iguais, frequentemente presente na imagem do halo de
Cristo conforme era representada na arte medieval (11). Assim, os “dois
raios” mencionados acima são os ramos dessa cruz, formados pelos inúmeros
espíritos do céu de Marte.
O poeta, que vem narrando ao longo
dos cantos sua experiência única, lembra de ter visto ali fulgurar o próprio Cristo.
Mas sente-se incapaz de expressar essa visão em palavras, dado que ela é
inefável. Por isso, afirmara: “Aqui a
memória minha vence o engenho” (Qui vince la memoria mia lo ‘ngegno- v. 103).
Nessa cruz, os espíritos (lumi- v. 110) se moviam, cintilando “De um lado a outro, e de cima para baixo”
(Di
corno in corno e tra la cima e ‘l basso- v.109). E eles, curiosamente, são comparados aos “corpúsculos” (le minuzie d’i corpi-
v. 114) que se veem nos
raios de luz.
Os tercetos seguintes abrangem uma
outra comparação: a do som de afinados instrumentos de corda -- que é
considerado “doce” mesmo por quem não distingue as notas, ou não conhece a música
-- com
o canto de um hino que os espíritos ali entoam e arrebata Dante, embora
este não entenda suas palavras, exceto duas -- “Ressurge” e “Vence” (“Resurgi” e “Vinci”- v. 126). Isso o faz pensar que se trata de
um hino de “alto louvor” (d’alte lode- v.124) a Deus, pela Ressurreição de Cristo
e sua vitória sobre a morte, conforme os comentaristas (12).
Dante se enamora (v. 127) tanto do hino
ouvido que afirma jamais ter sido preso a algo “com tão doces vínculos” (con sì dolci vinci- v.129). Estas palavras lhe parecem então “muito ousadas/ preterindo a alegria dos
olhos belos” (/.../
troppo osa/ posponendo il piacer de li occhi belli- v. 130-131) de Beatriz. Mas, diz ele, quem
considera que “os selos vivos/ de toda
beleza” (/.../
i vivi suggelli/ d’ogne bellezza /.../- v.133-134), i.e. os seus olhos, se intensificam à medida que ascendem às esferas celestes superiores, e
que ele ainda não se voltara para tais olhos em Marte, poderá desculpá-lo
daquela afirmação. Pois “a santa beleza
não é daqui excluída/ e se torna, ao subir, mais pura” (ché ‘l piacer santo
non è qui dischiuso,/ perché si fa, montando, più sincero- v.138-139).
Gustave Doré |
NOTAS
(1) HOLLANDER,
Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert
& Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander. Doubleday, 2007, p.328 e 340.
(2) Id. ib., p. 341.
(3) ZOLI, M. e ZANOBINI, F.- “La Divina
Commedia: a cura di M.Zoli e F.Zanobini. Inferno. Purgatorio. Paradiso”.
Bulgarini, 2013, p. 844.
(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony
Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam
Books, 1986- p.361.
(5) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 345-346.
(6) SAYERS,
Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”.
Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds. Penguin Books, 1971, p.379 e 167-168.
(7) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 347.
(8)
Id. ib., p. 347.
(9) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The Inferno. The
Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi. New American Library, 2003, p. 719.
(10) SAYERS,
Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”, op
cit, p. 184.
(11) Id. ib, p. 184.
(12) MANDELBAUM, Allen-
“The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 362.
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Para ouvir o Canto XIV:
https://www.youtube.com/watch?v=vWfihK_cx5A
(acessado em 10.09.20)
Amos Nattini. |