PARAÍSO
Canto XI
Os
versos iniciais do Canto XI registram a alegria de Dante por estar no Sol com Beatriz, liberto (temporariamente) da “insensata
preocupação dos mortais” (O insensata cura de’
mortali- v.1), que
podendo voar alto usam a mente de modo defeituoso (v.2) que lhes faz “bater as asas para baixo” (/.../ in basso bater
l’ali- v. 3). Tal
preocupação é ilustrada pela menção a diversas atividades exemplificativas
daquelas a que se dedicam os homens, lícitas ou não, mas sempre inferiores às
mais elevadas espiritualmente. São elas as atividades do direito, da medicina
(referida indiretamente pela menção aos “Aforismas” de Hipócrates), da vida
eclesiástica, as do monarca, do ladrão, dos dirigentes públicos, dos luxuriosos
e dos ociosos.
Os espíritos que se mostram no astro
voltam a formar uma roda em torno de Dante e Beatriz. O poeta evoca então uma
imagem relacionada a um objeto de cena dos rituais religiosos nos templos: cada
espírito parado (no lugar que antes ocupava na roda) é comparado a uma “vela em seu suporte” (/.../ come a
candellier candelo- v. 15).
E um daqueles espíritos, ou melhor um daqueles lumes, tem a sua luz intensificada
quando começa a falar com Dante (v. 18). Isso decorre de seu amor acrescido pelo
ato generoso de esclarecer o poeta (1). Trata-se de S. Tomás de Aquino, pois
Dante diz que é a mesma luz que antes tinha falado com ele (v. 17).
Tomás inicia sua fala (que se
estende até o final do Canto) afirmando que conhece os pensamentos de Dante, as
suas dúvidas, e isso é uma decorrência do fato de que ele se beneficia da Luz
Eterna (de Deus onisciente) que é causa
de sua própria resplandecência. Ele afirma, sem que Dante lhe informe antes, que
este tem dúvidas a respeito de dois pontos de sua manifestação anterior,
abordada no canto X. A primeira refere-se ao v. 96 desse canto, quando Tomás
afirmou com relação aos membros da ordem fundada por S. Domingos que "bem se nutre quem não se perde em coisas vãs". A dúvida de Dante diz respeito à interpretação desse verso. A outra dúvida relaciona-se ao v. 114 do mesmo canto, em que Tomás
enfatizou a sabedoria do rei Salomão, não superada por ninguém, segundo ele
(2). Tomás vai se concentrar a partir de agora na primeira questão, enquanto a segunda
será tratada no canto XIII.
O teólogo inicia referindo-se às
relações da Providência com a Igreja, que “desposou” Cristo quando ele
agonizava na cruz. A Igreja é “a esposa
daquele que em altos brados/ com o sangue sagrado a desposou” (la sposa di colui ch’
ad alte grida/ disposò lei col sangue benedetto- v. 32-33).
Assim, a Providência, a fim de que a Igreja -- a “esposa” de Cristo -- se voltasse
para Ele e exercesse a sua missão mais segura de si, “designou dois príncipes em seu favor/ que num lado e em outro a
guiassem” (due
principi ordinò in suo favore,/ che quinci e quindi le fosser per guida- v.35-36). O primeiro “príncipe” é
identificado como S. Francisco de Assis, fundador da ordem dos franciscanos.
Ele é associado à ordem angélica dos serafins (a mais alta da hierarquia dos
anjos), que simbolizam o amor. O segundo, S. Domingos, fundador da ordem dos
dominicanos, é associado à ordem dos querubins, que simbolizam o conhecimento
(3). Assim, eles guiam a Igreja num lado,
o do amor ou caridade, e no outro, o do conhecimento ou saber. O poeta, pela
voz de Tomás, se refere a eles nestes termos:
L’un fu tutto serafico in ardore;
l’altro per sapïenza in terra fue
di cherubica luce uno splendore. (v.37-39)
Um foi
todo seráfico em seu ardor;/ o outro, pela sua sabedoria, foi na terra/ um
esplendor de luz querubínica.
O dominicano Tomás de Aquino passa
então a fazer o elogio da vida de
S.Francisco (1182-1226). Mas alerta que “se louva ambos/louvando um” (/.../ d’amendue/ si dice l’un pregiando
/.../- v.40-41), “pois a obra deles voltou-se ao mesmo fim”
(perch’
ad un fine fur l’opere sue- v.42),
a salvação dos homens. No canto XII, a situação se inverte, e um franciscano
fará o elogio de S.Domingos, de modo que o poeta mostra aqui a sua concepção
conciliadora entre as duas ordens, ignorando as discordâncias entre elas. Os
franciscanos adotavam a perspectiva de Santo Agostinho enfatizando a fé
enquanto os dominicanos, influenciados por Aristóteles, valorizavam a razão,
que deveria fornecer as premissas da teologia (4).
Na sequência, Tomás passa a se
concentrar na vida de S.Francisco, iniciando por uma rápida caraterização
geográfica da região de Assis, a cidade italiana onde ele nasceu, situada numa
“encosta fértil de alto monte” (fertile costa d’alto
monte/.../- v. 45), que é
o monte Subasio, em seu lado ocidental. Foi aí que “nasceu ao mundo um sol/ como faz este, às vezes, do Ganges” (/.../ nacque al mondo
un sole,/ come fa questo talvolta di Gange-
v. 50-51). O poeta assim usa essa metáfora do sol associando-a
a S. Francisco, ao mesmo tempo em que evoca fisicamente o astro em que o poeta está
naquele momento, astro esse que nasce sobre o rio Ganges, na Índia, no verão. Isso
dá margem a que Dante, nos v. 52-54, brinque com as palavras, dizendo que quem
quiser designar o lugar não deve dizer “Ascesi” (Assis no italiano toscano de
Dante, que é também particípio passado do verbo “ascendere”, subir, elevar-se)
(5) mas “Oriente”, pois é termo mais apropriado para indicar onde ocorre não
qualquer ascensão mas especificamente a do Sol. O poeta prossegue no uso dessa
metáfora. O sol, que é S.Francisco, desde cedo, “começou a fazer sentir na terra/ algum conforto pela sua grande virtude”
(ch’el
cominciò a far sentir la terra/ de la sua gran virtute alcun conforto;- v.
56-57), expressa pelo
amor a “uma dama” (v.58)-- a Pobreza personificada, conforme será explicitado
no v. 74 -- que é motivo de conflito com o seu pai:
ché, per tal donna, giovinetto, in guerra
del padre corse, a cui, come a la morte,
la porta del piacer nessun diserra; (v. 58-60)
pois,
ainda jovem, por uma dama em guerra/ entrou com o pai, e a ela, como à morte,/
a porta ninguém abre prazerosamente;
Giotto- S.Francisco renuncia aos bens materiais |
Como Francisco usou “mal” o dinheiro
do pai (o comerciante Pietro Bernardone), doando-o aos pobres, este o deserdou formalmente
perante a corte episcopal, chamada no v. 61 de “corte espiritual” (spirital corte).
No verso seguinte, há sugestão de linguagem burocrática (reforçando a
formalidade do ato) pelo uso da expressão latina “et coram patria” (“na presença do pai”- v. 62). Francisco concorda
com a atitude paterna e inclusive se desnuda em praça pública de Assis para lhe
devolver as roupas (6). O poeta trata esse episódio biográfico como o momento
em que Francisco “desposa” a Pobreza, amando-a cada vez mais depois disso
(v.61-63). O poeta prossegue explorando essa imagem da mulher que personifica a
Pobreza (o que fará até o fim da narrativa sobre a vida do santo, no v. 117), referindo-se
a Cristo como seu “primeiro marido” e
mostrando que só com a vinda de Francisco ao mundo é que ela teve um segundo
pretendente::
Questa, privata del primo marito,
millecent’anni e più dispetta e scura
fino a costui si stette sanza invito; (v. 64-66)
Esta, viúva
do primeiro marido,/ mais de mil e cem anos desprezada e ignorada/ até ele vir permaneceu sem ser requisitada;
Dante então acrescenta que para a
Pobreza ser amada pelas pessoas não foi suficiente o exemplo histórico do
encontro do pescador Amiclate com Júlio César em campanha, “aquele que o mundo todo atemorizou” (colui che a tutto ‘l
mondo fé paura- v. 69).
Por ser extremante pobre, Amiclate não teve medo dos seus legionários
saqueadores (7). Nem foi suficiente o
fato de que a Pobreza subiu à cruz junto com o Cristo desnudo, de tudo despojado,
enquanto Maria ficou aos pés desta.
O exemplo de Francisco foi seguido
por outros. O v. 79 faz menção a Bernardo de Quintavalle, um rico comerciante,
o primeiro que “se descalçou” (si scalzò prima,
/.../- v.80), i.e, o
primeiro discípulo a segui-lo, após vender tudo o que tinha e doar o dinheiro
para os necessitados. Logo são citados também outros seguidores pioneiros
(v.83).
Depois, Francisco, com a “mulher” e membros
da sua “família” (v.86) (os discípulos) -- “já
cingidos com a humilde corda” (che già legava l’umile capestro- v. 87) (a corda, por ser usada para
controlar cavalos e bois, é símbolo de autocontrole e humildade) (8) --, partem
para ver o papa Inocêncio III. Não obstante ser filho de um comerciante (e não
de um nobre) e sua aparência mendicante “que
causava desprezo e admiração” (/.../ per parer dispetto a maraviglia- v.90), Francisco, “como um rei, sua dura regra/ expôs a Inocêncio” (ma regalmente sua dura intenzione/ ad Innocenzio aperse, /.../-
v. 91-92), de quem obtém o
“primeiro selo à sua ordem religiosa” (primo sigilo a sua
religïone- v.93), vale
dizer, obtém aprovação à ordem franciscana.
Mais tarde (na realidade, 13 anos
depois), com o crescimento do “número de
pobrezinhos” (gente
poverella- v.94), “a santa vontade desse chefe de pastores (la santa voglia d’esto
archimandrita- v.99)
(Francisco) foi cingida por uma “segunda
coroa” (seconda
corona- v.97) (um segundo
“selo”, ou aprovação). O poeta refere-se aqui à bula do papa Honório III reconhecendo a ordem (9).
Giotto- S. Francisco perante o papa Honório III |
Os versos seguintes (v. 100-105) mencionam
rapidamente a viagem que Francisco -- com “sede
de martírio” (sete
del martiro- v.100), para
imitar Cristo -- fez ao Egito, juntamente com doze seguidores, acompanhando o
exército da Quinta Cruzada, quando ele tentou converter, sem sucesso, um sultão
ao cristianismo. Constatando ser essa
gente “muito imatura para a conversão”
(e per trovare
a conversione acerba/ troppo la gente /.../- v. 103-104), “retornou aos (bons) frutos do campo italiano” (redissi al frutto de
l’italica erba- v. 105) (10).
Tomás de Aquino conclui sua narrativa
sobre a vida de S. Francisco mencionando o terceiro e “último selo” (l’ultimo sigillo- v. 107) que lhe foi conferido, agora não pelo papa mas pelo
próprio Cristo. Refere-se às cinco
chagas deste (duas nos pés, duas nas mãos, pela crucificação, e uma ao lado, no
tórax, produzida pela lança de um soldado) que Francisco também passaria a
apresentar, nos dois últimos anos de sua vida, recebidas no monte Alverne, o “áspero monte entre o Tibre e o Arno” (nel crudo sasso intra Tevero e Arno- v. 106) (11).
Antes de morrer, Francisco, “aos seus irmãos” (a’ frati suoi, /.../- v.112) “recomendou a sua dama mais querida” (raccomandò la donna sua più cara- v. 113), i.e. a Pobreza. A “alma luminosa” (l’anima preclara- v.115) dele devia partir do seio desta, enquanto “ao corpo não quis outro ataúde” (e al suo corpo non volle altra barra- v.117) senão o da Pobreza. Segundo o comentarista, os biógrafos de Francisco contam que ele, ao sentir a aproximação da morte, desejou ser levado à distante igreja de Porziuncola, e que seu corpo fosse deixado lá, sobre a terra nua, despojado das roupas (12).
Uma vez concluída seu exposição sobre a vida de S. Francisco, o dominicano Tomás de Aquino passa a falar, a partir do v. 118, sobre o “patriarca” (patriarch- v.121) de sua ordem. Inicia por explorar a imagem metafórica da “barca de Pedro” (la barca di Pietro) (a Igreja), referida nos vv. 119-120, afirmando que S. Domingos, como “o digno colega dele” (S.Francisco) manteve tal barca “no alto mar pelo curso certo” (/.../ in alto mar per dritto segno- v.120). Quem segue o patriarca dos dominicanos enquanto comanda esse barco “sabe que carrega boa mercadoria” (discerner puoi che buone merce carca- v. 123). Mas seu rebanho, com poucas exceções, prefere outro alimento, conforme esta crítica que Dante faz aos dominicanos de sua época pela boca de Tomás:
El Greco- S.Francisco recebendo os estigmas |
Antes de morrer, Francisco, “aos seus irmãos” (a’ frati suoi, /.../- v.112) “recomendou a sua dama mais querida” (raccomandò la donna sua più cara- v. 113), i.e. a Pobreza. A “alma luminosa” (l’anima preclara- v.115) dele devia partir do seio desta, enquanto “ao corpo não quis outro ataúde” (e al suo corpo non volle altra barra- v.117) senão o da Pobreza. Segundo o comentarista, os biógrafos de Francisco contam que ele, ao sentir a aproximação da morte, desejou ser levado à distante igreja de Porziuncola, e que seu corpo fosse deixado lá, sobre a terra nua, despojado das roupas (12).
Uma vez concluída seu exposição sobre a vida de S. Francisco, o dominicano Tomás de Aquino passa a falar, a partir do v. 118, sobre o “patriarca” (patriarch- v.121) de sua ordem. Inicia por explorar a imagem metafórica da “barca de Pedro” (la barca di Pietro) (a Igreja), referida nos vv. 119-120, afirmando que S. Domingos, como “o digno colega dele” (S.Francisco) manteve tal barca “no alto mar pelo curso certo” (/.../ in alto mar per dritto segno- v.120). Quem segue o patriarca dos dominicanos enquanto comanda esse barco “sabe que carrega boa mercadoria” (discerner puoi che buone merce carca- v. 123). Mas seu rebanho, com poucas exceções, prefere outro alimento, conforme esta crítica que Dante faz aos dominicanos de sua época pela boca de Tomás:
Ma ‘l suo pecuglio di nova vivanda
è fatto ghiotto, sì ch’ esser non puote
che per diversi salti non si spanda;
e quanto le sue pecore remote
e vagabunde più da esso vanno,
più tornano a l’ovil di latte vòte.
Ben son di quelle che temono ‘l danno
e stringonsi al pastor; ma son sì poche,
che le cappe fornisce poco panno. (v. 124-132)
Mas o
seu rebanho de outro alimento/ tornou-se tão guloso que não pode/ deixar de
vagar por pastagens distantes e estranhas;
e
quanto mais suas ovelhas/ se afastam dele, tanto mais/ tornam ao redil vazias
de leite.
Há
aqueles que temem o dano/ e acercam-se do pastor; mas são tão poucos/ que para
encapuzá-los basta pouco pano.
Note-se a ocorrência de uma nova
imagem nessa passagem, pela evocação do hábito dos frades, após o poeta explorar
a metáfora do rebanho de ovelhas, associada ao conjunto dos integrantes da
ordem de S. Domingos, o qual é identificado com o seu pastor.
Por essas observações, Tomás diz que
Dante atenderá (quanto à primeira dúvida) seu “desejo de saber“ (la tua voglia- v.136),
passando a compreender a afirmação que ele fizera antes relativa à sua própria
ordem, sintetizada no v. 96 do canto X, que é transcrito aqui e consiste no último
verso deste canto XI: “onde bem se nutre
quem não se perde em coisas vãs” (‘U’ ben s’impingua, se non si vaneggia’- v.
139).
NOTAS
(1) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated
with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986,
p. 138.
(2) Id. ib, p. 139.
(3) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The
Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara
Reynolds. Penguin Books, 1971, p.154.
(4) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony
Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam
Books, 1986- p.350.
(5) Id. ib, p. 350.
(6) HOLLANDER, Robert
& Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert &
Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander. Doubleday, 2007, p. 266.
(7) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p.351.
(8) HOLLANDER, Robert
& Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 271.
(9) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”,
op cit, p.351.
(10) Id.
ib, p. 351-2
(11) Id. ib, p. 352.
(12) Id. ib, p. 352.
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Para ouvir o Canto XI:
https://www.youtube.com/watch?v=HeI7DV73gFM
(acessado em 4.09.20)
A |
Amos Nattini |
Fra Angelico- Encontro de S. Francisco com S. Domingos |