PARAÍSO
Canto X
Os comentadores da Commedia observam que o décimo canto, nas
três partes do divino poema, assinalam uma transição importante,
diferenciando-se dos precedentes. No “Inferno”,
ele separa os círculos dos pecados da incontinência (luxúria, gula, avareza e
ira) dos restantes, mais ao fundo (além dos muros da Cidade de Dite), por serem piores, pois não se reduzem ao mero exagero do uso dos sentidos. No “Purgatório”, o décimo é o primeiro dos cantos,
após a conclusão da visita ao Antepurgatório. Quanto ao “Paraíso”, os cantos anteriores referiram-se, como vimos, aos céus
da Lua, de Mercúrio e de Vênus, cujos astros ainda eram alcançados pelo cone de
sombra da Terra, de acordo com a astronomia da época (cf v. 118, canto IX). Por
isso, os bem-aventurados que aí aparecem ainda estiveram muito sujeitos às influências terrenas. Dada a sua fraqueza
espiritual, incorreram na fé deficiente, na esperança exagerada em coisas
terrenas e no amor excessivo, embora tenham se arrependido em tempo e alcançado
a salvação (1). Agora, entra-se no céu do Sol (que, conforme o sistema ptolomaico
adotado na época, gira, como os outros astros, em torno do nosso planeta). Os
espíritos que aí estão situam-se em nível mais elevado da hierarquia celeste, logo de espiritualidade...
O canto X inicia com uma referência à
Trindade, pois para a doutrina católica
Deus não é só uma pessoa, mas três: o Pai (“o
primeiro e inefável Valor”: lo primo e ineffabile Valore-- v. 3), o Filho e o Espírito Santo (l’Amore- v. 1), que procede das outras duas pessoas.
Assim inicia o Canto: o Pai, “Olhando o
seu Filho com o Amor” (Guardando nel suo Figlio con l’Amore- v.1), criou, com tanta ordem, tudo o que existe
que quem isso contemple não pode deixar de provar (experimentar) Deus. Em vez de “tudo o que existe” os versos afirmam
“tudo o que gira pela mente e espaço”
(quanto
per mente e per loco si gira- v.4),
a saber, tudo o que gira impelido pelas nove ordens de inteligências
angelicais, ou seja, os céus e seus planetas (2).
O poeta dirige-se depois ao leitor
pedindo para ele erguer a vista àquela parte do céu “onde um movimento e outro se entrecruzam” (dove l’un moto e
l’altro si percuote;- v. 9),
ou seja, ele deve erguer a vista para a constelação de Áries, no equinócio da
primavera, onde, no plano do equador, um movimento diurno (de leste para o oeste)
se encontra, no plano do zodíaco, com o movimento anual deste (de oeste para leste)
(3). Pede que o leitor comece por ali a admirar a obra de arte do Mestre
(Deus). O zodíaco é referido como “o
círculo oblíquo que porta os planetas/ para satisfazer ao mundo que os invoca”
(l’oblico
cerchio che i pianeti porta,/ per sodisfare al mondo che li chiama- v. 14-15). Se a sua inclinação com relação ao
equador fosse outra, seria perturbada a regularidade das estações do ano e as
influências dos astros: “/.../ seria
deficiente/ a ordem do mundo, embaixo ou em cima” (/.../ assai sarebbe
manco/ e giù e sù de l’ordine mondano- v. 20-21).
Dirigindo-se novamente ao leitor,
Dante diz para ele continuar pensando no que já viu, empregando aqui uma
metáfora alimentar (“Já te pus a mesa,
agora te alimentes”: Messo
t’ho innanzi; omai per te ti ciba;- v. 25),
enquanto o poeta vai prosseguir em seu trabalho de escriba (v. 27), ou seja,
continuar o seu relato.
Refere-se então ao Sol, chamado de “O ministro maior da natureza” (Lo ministro maggior
de la natura- v.28), que
exerce influência sobre a Terra e “com a sua luz o tempo mede” (e col suo lume il
tempo ne misura- v. 30), distinguindo
o dia, em seus diferentes momentos, da noite. O Sol estava então “junto àquela parte antes mencionada” (con quella parte che
sù si rammenta- v. 31),
ou seja, na constelação de Áries, no equinócio da primavera em 21 de março no hemisfério Norte (no equinócio os dias são aproximadamente
iguais às noites). Mas, à medida que o tempo passa, o Sol, girando em espirais (v.
32), aparece mais cedo cada dia (v. 33), pois este fica cada vez mais longo naquele
hemisfério até o solstício do verão (4), em 21 de junho.
Dante, de repente, se vê no céu do
Sol. Não se dá conta da subida, “como não
se dá conta um homem/ antes que o pensamento ocorra” (/.../ ma del salire/
non m’accors’ io, se non com’ uom s’accorge,/ anzi ‘l primo pensier, del suo
venire- v.34-36). Ele
atribui essa subida instantânea, que “não
se estende no tempo” (/.../ per tempo non si sporge- v. 39) a Beatriz, que o guia assim “do bem
para o melhor” (di
bene in meglio, /.../-v.38).
A seguir, Dante já antecipa uma
característica do espírito que ali se
encontra: ele será “visível não
pela cor mas pela luz!” (non per color, ma per lume parvente!- v. 42), ou seja, distingue-se do astro pela
sua luz, que será mais intensa do que a do próprio Sol!. Apesar do poeta
invocar “o engenho, a arte e o uso” (/.../ lo ‘ngegno e
l’arte e l’uso “ /.../- v.43),
terá dificuldade de fazer o leitor imaginar o que testemunhou. Mas este poderá
crer no poeta, “e ansiar por ver” (/.../ e di veder si
brami- v. 45). Não é de
admirar que o leitor tenha dificuldade de imaginar o que Dante viu, “pois nenhum olho viu luz mais brilhante que
a do Sol” (ché
sopra il sol non fu occhio ch’andasse- v.
48)...
Dante e Beatriz estão na esfera da “quarta família” (quarta famiglia- v.49) do Pai, onde se mostram os espíritos
sapientes, cuja fome de conhecimento é saciada por Ele, ao revelar-lhes aspectos
do mistério da Trindade relacionados ao
Espírito-Santo e ao Filho (“mostrando
como inspira e como gera”: mostrando come spira e come figlia- v. 51).
Beatriz pede a Dante para agradecer ao
“Sol dos anjos” (Sol de li angeli- v.
53) (metáfora de Deus), “que a este,/ sensível te alçou pela sua
graça”: /.../
ch’a questo/ sensibil t’ha levato per sua grazia- v. 53-54). E o poeta então ficou “tão disposto/ à devoção e a render-se a Deus”
(/.../
sì digesto/ a divozione e a rendersi a Dio-
v. 55-56) que todo o seu amor se concentrou n’Ele,
esquecendo Beatriz, o que não a desagradou e a fez sorrir.
Amos Nattini |
Na sequência, vários espíritos bem-aventurados
que se mostram no céu do Sol, “fulgores
vivos e triunfantes” (/.../ folgór vivi e vincenti- v. 64), formam uma coroa em torno de Dante
e Beatriz, situados no centro. O poeta compara essa situação ao halo em torno
da Lua, que pela mitologia clássica é identificada com Diana, filha de Latona e
Jove:
così cinger la figlia di Latona
vedem talvolta, quando l’aere è pregno,
sì che ritenga il fil che fa la zona. (v. 67-69)
assim
vemos, às vezes, a filha de Latona/ cingir-se, quando o ar é denso/ e prende o
fio que forma o cinto de seu halo
O poeta prossegue, afirmando que na
“corte celeste” (corte del cielo-v.70) de onde ele regressou há muitas “joias caras e belas” (gioie care e belle-
v. 71), que ele não pode
“tirar” (v. 72) de lá, por meio de sua
descrição, subentende-se. O canto entoado por aqueles espíritos que formavam a
coroa em torno deles era uma dessas joias. Mas dizer isso é vão, pois o poeta é
impotente para expressá-las em palavras, comparando-se ao mudo: “quem não adquire asas para voar até lá/ do
mudo espera receber notícias” (chi non s’impenna sì che là sù voli,/ dal
muto aspetti quindi le novelle- v. 74-75).
Esses espíritos, chamados “ardentes sóis” (ardenti soli- v. 76), cantando, giram em sua dança ao
redor de Dante e Beatriz três vezes. São comparados primeiro a “estrelas vizinhas dos polos fixos” (come stelle vicine a’
fermi poli- v. 78) e
depois, a damas num baile que se detêm por um momento até que soem “novas notas” (nove note- v. 81) e a dança recomece.
Então um daqueles “lumes” começa a
falar. Ele vai se identificar no v. 99 e estende sua fala até o v. 138. Trata-se
de Tomás de Aquino. Dirige-se a Dante, em quem vê resplender “o raio da graça” (lo raggio de la
grazia- v. 83), que o
conduz para cima, e a quem vai saciar a sede (de saber) com “o vinho de seu frasco” (il vin de la sua
fiala- v. 88). Ele sabe o que Dante quer, ainda que este não
o diga:
Tu vuo’ saper di quai piante s’infiora
questa ghirlanda ch’ ntorno vagheggia
la bella dona ch’ al ciel t’avvalora.
Io fui de li agni de la santa greggia
che Domenico mena per cammino
u’ ben s’ impingua se non si vaneggia.
Questi che m’è a destra più vicino,
frate e maestro fummi, ed esso Alberto
è di Cologna, e io Thomas d’ Aquino. (v.91-99)
Queres
saber de que plantas se adorna/ esta grinalda que circundando, contempla/ a
bela dama que ao céu te impele.
Eu fui
um dos cordeiros do santo rebanho/ que Domingos conduz pelo caminho/ onde bem
se nutre quem não se perde em coisas vãs.
Este
que está mais próximo, à minha direita/ foi meu irmão e mestre; é Alberto/ de
Colônia, e eu sou Tomás de Aquino.
Fra Angelico- Retrato de S.Tomás |
A “bela dama” (v. 93), Beatriz, segundo os comentadores, é o símbolo
da Teologia e representa a Revelação, objeto de estudo dos teólogos que aí
estão (5), associados às imagens das “plantas”
(v.91) da grinalda ou coroa que a envolve e o poeta. Tomás de Aquino pertencia
à ordem dos dominicanos, aqui associada ao rebanho (v. 94), conduzido por S. Domingos
de Gusmão, o fundador da ordem, pelo caminho (v.95) da salvação. Os membros
desse rebanho bem se nutrem com o alimento espiritual.
Na sequência, Tomás de Aquino (1225-74) -- o maior teólogo de seu tempo, que
procurou conciliar o pensamento cristão com o de Aristóteles -- passa a
enumerar as outras luzes, integrantes da “grinalda”
(ghirlanda-
v. 92), em número de
doze, iniciando por quem está mais próximo dele, à sua direita, o também
dominicano Santo Alberto Magno
(1193-1280), seu mestre em Colônia (v.99). A seguir, pela ordem, menciona Francesco Graziano (ca. 1090- ca. 1160),
um monge que conciliou o direito eclesiástico com o secular (v.104); Pedro Lombardo (ca.1095-1160) (v. 107), autor
de uma obra estudada nas escolas de teologia que, no prefácio, ele compara à
oferta da pobre viúva citada no Evangelho de Lucas (21:1-4); o rei Salomão, da Bíblia, que Tomás
apresenta assim:
La quinta luce, ch’è tra noi più bela,
spira di tale amor, che tutto ‘l mondo
là giù ne gola di saper novela:
entro v’è l’alta mente u’ sì profondo
saver fu messo, che, se ‘l vero è vero,
a veder tanto non surse il secondo. (v. 109-114)
A
quinta luz, que é dentre nós, a mais bela,/ respira tanto amor que todo o
mundo/ lá embaixo tem fome de saber notícias dela:
dentro
está uma alta mente onde tão profundo/ saber foi colocado que, se o vero é
vero,/ não se elevou jamais um segundo com tanta visão.
A referência aqui ao amor se explica
porque Salomão é o autor do “Cântico dos Cânticos”, da Bíblia; a fome de
notícias sobre ele em nosso mundo tem a ver com o fato de que não há consenso
entre os teólogos sobre sua salvação ou
não; quanto à sabedoria do rei, basta lembrar que a ele é atribuída a autoria
dos “Provérbios”, “Eclesiastes” e “Livro da Sabedoria”.
Na sequência, vêm Dionísio o Aeropagita, referido como o que “mais a fundo viu/ a natureza dos anjos e seu ministério” (/.../ più a dentro
vide/ l’angelica natura e ‘l ministero- v. 116-117), convertido ao Cristianismo por
S.Paulo em Atenas e aí martirizado no ano 95, suposto autor de uma obra sobre a
hierarquia dos anjos; Paulo Orósio,
o nome mais provável associado à menção
ao “advogado da era cristã” (quello avvocato de’
tempi cristiani- v. 119).
Ele foi um padre espanhol nascido no final do século IV, historiador, que
defendeu o Cristianismo contra acusações dos pagãos, do qual se valeu Santo
Agostinho em sua própria obra; Boecio (ca.
475-525), estadista e filósofo romano, o famoso autor de “A Consolação da
Filosofia”, identificado pela referência ao local do sepultamento do corpo de
onde essa luz foi expulsa (v.127), na basílica de San Pietro em Ciel d’Oro
(Cieldauro) em Pavia; Isidoro, bispo de Sevilha (ca. 560-636), que organizou
uma das primeiras grandes enciclopédias medievais, em vinte volumes; o venerável Bede (674-735), um monge anglo-saxão e historiador; Ricardo de São Victor (ca. 1123-73), um
dos maiores místicos do século XII,
referido por Dante assim: “este, a
meditar, foi mais que homem” (che a considerar fu
più che viro- v. 132); e Siger de Brabant (ca.1225-ca.1283). Este último mencionado por Tomás, que está ao lado esquerdo dele, fechando
o círculo, foi um teólogo, seu rival, que na universidade de Paris, na
faculdade em que lecionava “à rua da
Palha” (/.../
nel Vico de li Strami- v.137),
defendia uma interpretação de Aristóteles baseada em Averroes, interpretação
essa combatida por Tomás de Aquino (6).
O Canto conclui com uma comparação
entre o relógio -- (que pela manhã nos chama) da “esposa de Deus” (la sposa di Dio- v. 140), i.e. da Igreja, que “acorda/ e canta as matinas para o esposo (Cristo) encorajando seu amor” (/.../ surge/ a mattinar lo
sposo perché l’ami- v. 140-141),
pondo a funcionar seu mecanismo peculiar -- com a roda dos espíritos sapientes.
Esta começa de novo a
muoversi e render voce a voce in tempra
e in dolcezza ch’esser non pò nota
se non colà dove gioir s’insempra. (v. 146-148).
mover-se e responder voz a voz com tal harmonia/ e doçura que não pode ser
conhecida/ senão lá onde a alegria é perpétua.
NOTAS
(1) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante
Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander.
Introduction & Notes by Robert Hollander.
Doubleday, 2007, p.240. Ver também MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony
Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam
Books, 1986- p.343.
(2) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 240.
(3) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p.344.
(4) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 242.
(5) MUSA, Mark-- “Dante-
The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes,
and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p.127-128.
(6) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.
346-349; HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 246-250.
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Para ouvir o canto X:
https://www.youtube.com/watch?v=zo4Xcivfz90
(acessado em 3.09.20)
C.Crivelli- S.Tomás de Aquino |