PARAÍSO
Canto VIII
Dante inicia o canto VIII referindo-se
ao planeta Vênus como a “bela cipriota”
(la bella
Ciprigna- v. 2). Essa deusa
que lhe dá o nome é assim chamada porque nasceu na ilha de Chipre, segundo a
mitologia clássica. A ela “o mundo ainda
em perigo” (/.../
lo mondo in suo periclo- v.1)
(o mundo antigo, antes da redenção) fazia sacrifícios e pedidos (v.5), assim
como a sua mãe Dione e a seu filho Cupido. E acreditava que os raios de luz
emanados por Vênus sobre a Terra eram “raios
do louco amor” (/.../
il folle amore/ raggiasse, /.../- v. 2-3).
Tal planeta girava permanentemente ao redor de nosso, de acordo com o sistema
ptolomaico adotado na época. Da deusa, dizem ainda os versos, os antigos “tiraram o nome da estrela/ que o Sol
contempla ora a nuca, ora a frente” (pigliavano il vocabol de la stella/ che ‘l
sol vagheggia or da copa or da ciglio- v. 11-12) (note-se a linguagem, como se esses dois astros também
fossem amantes...). Dependendo da
posição relativa de Vênus no céu, a estrela é para nós a “estrela da manhã”, quando
surge antes do Sol nascer (e este está atrás dela) ou a “estrela da noite”, quando surge após o Sol se pôr (e este está
na sua frente). (1)
É a esse astro que Dante é levado, imperceptivelmente.
Trata-se do céu de Vênus, o céu dos amantes. Só percebe que ascendera a ele porque Beatriz
tornara-se “mais bela” (più bella- v. 15) (isso ocorre à medida que Dante progride
em direção às esferas mais altas, pois ela simboliza a Revelação). (2)
Na sequência, ocorre a imagem da chama
e de faíscas, e o poeta diz ver “nessa luz outras luzes” (vid’io in essa luce
altre lucerne- v. 19), ou
seja, ele vê na luz do planeta Vênus os espíritos
amorosos que ali estão (3), que desceram para este astro, “interrompendo a dança/ antes começada entre os altos Serafins” (/.../ lasciando il
giro/ pria cominciato in li alti Serafini- v. 26-27) (os Serafins constituem a mais alta
ordem de anjos, dentre as nove habitantes do Empíreo). Como luzes girando em
círculos, aproximam-se dele e de Beatriz. Dentre os espíritos que primeiro
aparecem, diz Dante, “soou um ‘Hosanna’ tal
que, desde então, nunca mais/ fiquei sem o desejo de ouvi-lo de novo” (sonava “Osanna” sì,
che unque poi/ di rïudir non fui sanza disiro- v. 29-30).
Uma dessas luzes se destaca, e se dirige
a Dante. É a alma de Charles Martel (1271-1295), primogênito de Charles II de
Anjou e rei da Hungria, além de herdeiro do reino de Nápoles e do condado de
Provence. Um ano antes de sua morte prematura, ele passou algumas semanas em
Florença, onde deve ter conhecido e feito amizade com seu maior poeta, prestes
a ocupar alto posto no governo local (4).
Charles Martel diz a Dante que todos
estão ali “plenos de amor” (pien d’amor- v. 38), ou seja, plenos de caridade (5), dispostos
“para agradar-te” (per piacerti- v. 38), quer dizer, saciar a sua
curiosidade. Informa que eles giram juntamente com os Príncipes celestes, a
ordem de anjos responsável pelo movimento daquele céu, a que o próprio Dante se
refere em uma de suas canções (embora referindo-se a outra ordem de anjos, a
dos Tronos), verso esse citado por Charles Martel: “Vós que pelo entendimento moveis o terceiro céu” (“Voi che ‘ntendendo il
terzo ciel movete”- v. 37)
(Dante comenta esse verso em seu
livro “Convívio”).
O poeta então pede àquele espírito se
identificar, não sem antes obter aprovação prévia de Beatriz, mediante uma
troca de olhares significativa. Ao ouvir a pergunta de Dante, a luz de seu interlocutor
se torna mais intensa, “pela alegria nova
que se acresceu,/ quando falei, à alegria sua!” (per allegrezza nova
che s’accrebbe,/ quando parlai, a l’allegrezze sue!- v. 47-48). Ele lhe dá uma longa resposta, do
v.49 ao v. 84. Inicia afirmando que morreu jovem, e que se tivesse vivido mais,
“muito mal que haverá, não haveria” (molto sarà di mal,
che non sarebbe- v. 51)
(a ação do poema, como se sabe, ocorre em 1300) e que a sua alegria,
envolvendo-o em luz, esconde-o do poeta, numa comparação um tanto insólita:
La mia letizia mi ti tien celato
che mi raggia dintorno e mi nasconde
quase animal di sua seta fasciato. (v. 52-54)
A minha
alegria me oculta de ti/ raiando em torno e me escondendo/ quase como o bicho
da seda nesta envolto.
Charles Martel- G. Doré |
Charles Martel prossegue referindo-se
à terra banhada pelo rio Ródano identificada como a Provence, que ele deveria
herdar de seu pai Charles II, se não tivesse morrido antes deste (essa terra “por seu senhor, no tempo devido, me esperava”:
per suo
segnore a tempo m’aspettava- v. 60).
Refere-se também ao “chifre de Ausônia”
(corno d’
Ausonia- v. 61),
território limitado por certos burgos e rios mencionados (v. 62-63), destinados
a indicar o reino de Nápoles e Apúlia, que também herdaria (Ausônia é um nome antigo da Itália). Refere-se
ainda ao reino da Hungria, de que já era o monarca coroado:
Fulgeami già in fronte la corona
di quella terra che ‘l Danubio riga
poi che le ripe tedesche abandona. (v.64-66)
Já me
brilhava na fronte a coroa/ daquela terra que o Danúbio irriga/ depois que as
margens tedescas abandona.
A seguir, Charles Martel afirma
que também a “bela Trinacria” (la bela Trinacria- v.
67) (nome antigo da Sicília)
“esperaria ainda os seus monarcas” (attesi avrebbe li
suoi regi ancora- v. 71),
ou os monarcas de sua descendência, se o mau governo (vale dizer, de Charles I
de Anjou, seu avô) não tivesse provocado a revolta popular surgida em Palermo
no ano de 1282 que expulsou da ilha Charles I e os apoiadores da casa de Anjou,
substituindo-se o monarca por um da casa de Aragón (o episódio é conhecido como
“Vésperas Sicilianas”) (6).
No final de sua resposta, Charles
Martel adverte que isso devia servir de alerta para seu irmão mais novo (Robert),
que iria assumir (em 1309) o reino de Nápoles. Ele deveria afastar-se da
influência perniciosa dos nobres ambiciosos da Catalunha, com quem conviveu,
ainda muito jovem, quando foi refém, durante vários anos, da casa de Aragón.
Charles Martel assim critica seu irmão, que não teria herdado a liberalidade de
seu pai, Charles II de Anjou, e teria se cercado de gente mesquinha:
La sua natura, che di larga parca
discese, avria mestier di tal milizia
che non cuirasse di mettere in arca. (v.
82-84)
A sua
natura, que avara/ descende de uma generosa, precisaria de uma milícia/ que não
cuidasse só de encher o cofre.
Dante diz a Charles Martel que sua
fala produziu nele alegria, da mesma forma que ele aumentou a sua, conforme
dissera antes. Dante lhe confessa ter outra dúvida, relacionada aos versos
82-83 recém transcritos, indagando-se “como
pode ser amargo o fruto de doce semente” (com’ esser può, di dolce seme, amaro- v.93).
Charles Martel lhe explica então, uma
“certa verdade” (un vero- v. 95) e esta consiste, em suma, que “as
características inatas das pessoas não são hereditárias mas decorrem de Deus,
operando por causas secundárias”, nas palavras de Sayers e Reynolds (7). Assim,
o Bem (Deus) atribui aos astros a faculdade de influenciar os seres
humanos. Conforme diz Martel:
Lo ben che tutto il regno che tu scandi
volge e contenta, fa esser virtute
sua provedenza in questi corpi grandi. (v. 95-97)
O Bem,
que todo o reino que ascendes/ move e alegra, faz ser virtude operativa/ sua
providência nesses corpos grandes
i.e.,
os corpos celestes, os diversos céus.
Tudo segue uma ordem divina, caso
contrário haveria o caos, e Deus não seria perfeito:
e ciò esser non può, se li ‘ntelletti
che muovon queste stelle non son manchi,
e manco il primo, che non li ha perfetti. (v. 109-111)
e isso
não pode ser, se as inteligências/ que movem essas estrelas não são
defeituosas/ nem defeituosa é a primeira delas, que não as fizera perfeitas.
Depois, é Charles Martel que faz uma
pergunta a Dante: “Agora, diz-me: seria pior/ para o homem sobre a terra se
não fosse um cidadão?” (“Or dì: sarebbe il peggio/ per l’omo in terra, se non
fosse cive?”- v. 115-116),
quer dizer, seria pior para o homem se não fosse membro de uma sociedade civil? A resposta de Dante é afirmativa. Para ele,
isso é evidente, e por isso nem pede demonstração. Charles Martel prossegue
afirmando que a vida em sociedade exige diversificação de atividades, o
exercício de “ofícios diferentes” (diversi offici- v.
119), como escreve “o vosso mestre” (‘l maestro vostro- v.
120), i.e. Aristóteles,
para quem o homem é um animal social. Ele diz isso porque o filósofo já tinha
sido citado antes, implicitamente, por Dante, ao corroborar a explicação de Charles
Martel sobre o fato de que tudo no mundo segue uma ordem perfeita: “/.../ vejo
que é impossível/ que a natura falhe em prover o que é necessário” (/.../ ché impossibil
veggio/ che la natura, in quel ch’è uopo, stanchi- v. 113-4).
A diversidade da vida social é
ilustrada nos versos 124-126 pelas
referências a Sólon, Xerxes, Melquisedeque e Dédalo, pois um ser humano pode
nascer legislador, guerreiro, sacerdote ou artífice. E “a natureza determina a
predisposição dos homens sem levar em conta a sua origem”, nas palavras, novamente,
de Sayers e Reynolds (8). No terceto
abaixo, a influência dos astros sobre o indivíduo é comparada ao sinete na cera;
ela independe da família ou da hierarquia social:
La circular natura, ch’è suggello
a la cera mortal, fa ben sua arte,
ma non distingue l’un da l’altro
ostello. (v. 127-129)
A
circular natura, que é sinete/ na cera mortal, executa bem a sua arte,/ mas não
distingue uma casa da outra.
Assim, Esaú se diferencia de Jacó,
embora sejam irmãos, e Quirino (ou Rômulo), o primeiro rei de Roma, teve origem
humilde, mas os romanos lhe atribuíram origem divina: era “de um pai tão humilde que o fizeram descender de Marte” (da sì vil padre, che
si rende a Marte- v. 132).
Se não fosse a intervenção divina,
Natura generata il suo cammino
simil farebbe sempre a’ generanti,
se non vincesse il proveder divino. (v. 133-135)
A
natura gerada seguiria sempre o caminho/ da que a gerou/ se não vencesse o
prover divino.
Todavia, Charles Martel salienta
que, se a semente é lançada “fora de sua
própria região tem mau resultado” (fuor di sua regïon, fa mala prova- v. 141).
Suas palavras finais são de crítica ao nosso mundo, que não segue a
natureza (a disposição natural das pessoas) e sua ordem divina:
E se ‘l mondo là giù ponesse mente
al fondamento che natura pone,
seguendo lui, avria buona la gente.
Ma voi torcete a la religïone
tal che fia nato a cignersi la spada,
e fate re di tal ch’è da sermone;
onde la traccia vostra è fuor di strada. (v.142-148)
E se o
mundo lá embaixo pusesse em mente/ o fundamento posto pela natura,/ seguindo-o,
sua gente seria boa.
Mas vós
desviais para a religião/ quem nasceu para cingir a espada,/ e fazeis rei quem
é apto para sermão;
pelo
que o vosso caminho está fora da estrada.
Os comentaristas veem nesses versos
finais do Canto uma alusão aos irmãos de Charles Martel, Louis e Robert. O
primeiro tornou-se frade franciscano quando poderia ter sido rei (cingir a
espada era um atributo iconográfico deste) melhor que Robert, rei de Nápoles
após 1309. Este era interessado em teologia, e escreveu um grande número de
sermões (9)
NOTAS
(1) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by
Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di
Scipio. Bantam Books, 1986- p.336-337. Ver também HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante
Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander.
Introduction & Notes by Robert Hollander.
Doubleday, 2007, p.191.
(2) BINYON, Laurence- ““The Divine Comedy”, translated by Laurence Binyon,
with notes from C.H. Grandgent, in “The
Portable Dante”. The Viking Press. New York, 1976, p. 405.
(3) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The Inferno. The
Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi. New American Library, 2003, p.602.
(4) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The
Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara
Reynolds. Penguin Books, 1971,
p.119-120.
(5) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”,
op cit, p. 193.
(6) MANDELBAUM,
Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 338.
(7) SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The
Divine Comedy 3- Paradise”, op cit, p. 123.
(8) Id., ib, p. 124.
(9) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”, op cit, p. 339-340.
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Para ouvir o Canto VIII:
(acessado em 31.08.20)
Amos Nattini |