quinta-feira, 23 de março de 2017

CANTO VII

PARAÍSO


Canto VII


Justiniano se retira, saudando -- no primeiro terceto do Canto, em latim e hebraico -- o Deus dos exércitos, que das alturas ilumina com sua claridade os felizes fogos (ou almas) desses reinos (1). Ele é referido como “aquela substância” (essa sustanza- v. 5) que, juntamente com outras, se afasta dançando e cantando os versos daquele terceto inicial, sumindo da vista de Dante.  “Substância” é um termo da filosofia escolástica e designa aquilo que subsiste por si mesmo, em contraposição àquilo que é “acidental” (2).

Dante tem uma dúvida mas não a expressa verbalmente à senhora que lhe “sacia a sede com suas doces palavras” (che mi diseta con le dolce stille- v. 12).  Não ousa fazê-lo agora, mantendo-se reverente a ela, bastando para tanto ouvir Be ou ice (v. 14) de seu nome original (Bice era o apelido de Beatrice). Beatriz logo percebe o que se passa dentro dele e inicia sua exposição (que vai se estender até o último verso do Canto) na qual esclarecerá algumas dúvidas de Dante. Essa primeira dúvida é assim formulada por ela: “como uma justa vingança pudesse ser/ justamente punida /.../” (come giusta vendeta giustamente/ punita fosse /.../- v. 20-21). Ou seja, como a crucificação de Cristo, justa vingança ou punição pelo pecado original, pudesse ser, por sua vez, punida justamente, como Justiniano afirmou no canto anterior (VI,  v.91-93).  

O pecado original relaciona-se ao “homem que não nasceu” (/.../ quell’ uom che non nacque- v.26), Adão, que, “condenando-se, condenou toda a sua prole” (dannando sé, dannò tutta sua prole- v.27). Essa situação persistiu por muitos séculos até que o Verbo de Deus (Verbo di Dio- v.30), Cristo, encarnou-se na natureza humana – “que de seu Criador se afastara” (/.../ che dal suo fattore/ s’era allungata /.../- v. 31-32) pelo pecado original – “só por obra do Seu eterno amor” (con l’atto sol del suo eterno amore- v.33), o Espírito Santo (menção aqui à trindade divina) (3), a fim de abrir as portas do Paraíso para a humanidade. Assim, a crucificação foi justa enquanto punição ao homem pelos pecados, desde o original (4), mas injusta “se olharmos a Pessoa que a sofreu/ em quem era unida tal natura” (guardando a la persona che sofferse,/ in che era contratta tal natura- v. 44-45), ou seja, Cristo, que possuía dupla natureza, a humana e a divina.  Assim a “justa vingança” (a crucificação), no que se refere à natureza divina, foi uma ofensa a esta praticada pelos judeus e que “foi depois vingada por um justo tribunal” (poscia vengiata fu da giusta corte- v. 51), a saber, foi punida pelo imperador Tito que no ano 70 da nossa era destruiu Jerusalém. 


Amos Nattini

Na sequência, Beatriz detém-se em outra dúvida que ela lê na mente de Dante:

Tu dici: ‘Ben discerno ciò ch’i odo;
ma perché Dio volesse, m’è occulto,
a nostra redenzion  pur questo modo.’    (v. 55-57)

Tu dizes:  ‘Compreendo bem o que escuto;/ mas me é obscuro, por que Deus quisesse/ a nossa redenção apenas deste modo’.

Ela então vai lhe explicar “porque tal modo foi o mais digno” (/.../ perché tal modo fu più degno- v. 63).

Começa por referir-se à “bondade divina” (la divina bontà- v. 64) e sua atividade criadora:  ela

/.../ ardendo in sé, sfavilla
sì che dispiega le bellezze etterne.

Ciò che da lei sanza mezzo distilla
non ha poi fine, /.../                       (v. 65-68)

 /.../ ardendo em si, cintila/ de modo a difundir belezas eternas.
 O que dela, sem mediação, deriva/ não tem fim, /.../

a saber, o que é criado por Deus diretamente (os anjos e a alma humana, além das esferas celestes, da matéria contida nos quatro elementos, da “virtude informante” e do corpo do primeiro homem, conforme o v.130 e seguintes) não tem fim, é  eterno ou, mais precisamente, sempiterno. E “é todo livre” também (libero è tutto- v. 71), não se submetendo “‘à influência das coisas mais recentes” (a la virtute de le cose nove- v. 72), ou seja, à influência de causas naturais. Estas são causas secundárias, distintas do caso anterior, da criação direta por Deus, que é a causa primeira (5).  Além disso, “o ardor santo que irradia de todas as coisas/ na mais semelhante é mais vivaz(/.../ l’ardor santo ch’ ogne cosa raggia,/ne la più somigliante è più vivace- v.74-75). De todos os dons mencionados (imortalidade e liberdade, das quais decorre a semelhança com Deus) (6), a humana criatura se beneficia (v. 76).  

Pelo pecado, prossegue Beatriz, o homem torna-se “dessemelhante do Sumo Bem” (/.../ dissimìle al sommo bene- v. 80) e para retornar à sua dignidade deve preencher o vazio da culpa “com justas penas pelo mau deleite” (contra mal dilettar con giuste pene- v.84), o implícito no pecado. Só havia duas vias para recuperá-la: o perdão pela “cortesia” (v. 91) divina, ou por um esforço de reparação feito pelo próprio homem.  Este segundo caminho é inviável, dada a magnitude da falta (Adão quis ser igual a Deus, ao desobedecer a ordem do Senhor de não comer o fruto proibido da Árvore da Ciência do Bem e do Mal):

Non potea l’uomo ne’ termini suoi
mai sodisfar, per non potere ir giuso
con umiltate obedïendo poi,

quanto disobediendo intese ir suso;
e questa è la cagion per che l’uom fue
da poter sodisfar per sé dischiuso.         (v. 97- 102)

Não poderia nunca o homem, nos termos seus,/ compensar pois não poderia humilhar-se / tanto obedecendo
quanto pretendeu alçar-se desobedecendo;/ e esta é a razão por que o homem foi excluído/ do poder de oferecer satisfação por si mesmo.    

            Era assim necessário que Deus interviesse, utilizando um de seus meios, ou ambos (v. 105). Esses dois meios são interpretados pelos comentaristas como os da justiça e da misericórdia. A “divina bondade” (la divina bontà- v. 109) se compraz “em agir por todos os seus meios/ para vos elevar” (di proceder per tutte le sue vie,/ a rilevarvi suso /.../- v. 110-111), como diz Beatriz.  E ela também afirma que Deus poderia ter apenas perdoado o homem (v. 117) mas dada a sua generosidade Ele preferiu dar seu Filho em sacrifício, pois se isso não ocorresse, “qualquer outro modo seria insuficiente/ à justiça” (e tutti li altri modi erano scarsi/ a la giustizia /.../- v. 118-119).  

Né tra l’ultima notte e ‘l primo die
sì alto o sì magnifico processo,
o per l’una o per l’altra, fu o fie:     (v. 112-114)

Entre a última noite e o primeiro dia,/ tão alto ou tão magnífico fato,/ por um ou outro meio, não houve nem haverá:

A “última noite” é a do Juízo Final. O poeta prefere, para atender aos seus propósitos estéticos, mencionar primeiro o fim da humanidade antes de seu início... 

Prosseguindo sua fala, Beatriz novamente coloca-se no lugar de Dante e explicita mais uma dúvida deste: 

Tu dici: ‘Io veggio l’acqua, io veggio il foco,
l’aere e la terra e tutte lor misture
venire a corruzione, e durar poco;

e queste cose pur furon creature;
per che, se ciò ch’ è detto è stato vero,
esser dovrien da corruzion sicure.’     (v.124-129)

Tu dizes: ‘Eu vejo a água, vejo o fogo,/ o ar e a terra e todos seus compostos/ corromper-se, e durar pouco;
todavia, estas foram coisas criadas,/ pelo que, se o que foi dito é verdadeiro,/ deveriam ser imunes da corrupção’.

            Se foram criadas diretamente por Deus, não teriam fim, como vimos antes.

            Em sua explicação, Beatriz afirma que “Os anjos, irmão, e o lugar puro/ no qual tu estás foram criados” (Li angeli, frate, e ‘l paese sincero/ nel qual tu se’, dir si posson creati,- v. 130-131) diretamente por Deus mas não os quatro elementos citados, “e as coisas que deles se fazem” (e quelle cose che di lor si fanno- v. 134), pois “recebem forma de uma virtude criada” (da creata virtù sono informati- v. 135), essa sim criada diretamente por Deus, assim como a matéria que esses elementos contêm.  

Essa “virtude informante” (v. 137) é própria dos corpos celestes (“estrelas”- v. 138 e “luzes santas”- v. 141) que giram sobre os elementos. São as “luzes santas” (le luci sante) que extraem de uma mistura de elementos (“complexão potenciada”: complession potenzïata- v. 140) a alma vegetativa das plantas e a alma sensitiva dos animais, almas mortais.  Mas a alma humana é criada diretamente por Deus (“/.../ a Suma Bondade infunde vossa vida/ sem intermediário /.../”: /../ vostra vita sanza mezzo spira/ la somma beninanza, /.../- - v. 142-143), que a faz, além de imortal, sempre ansiar por Ele (v. 144). (7)

Nos últimos versos do Canto, Beatriz lembra a Dante que o corpo de nossos “primeiros pais” (li primi parenti- v. 148), Adão e Eva,  também foi criado diretamente por Deus, logo é igualmente imortal. Desse fato, diz ela, Dante pode deduzir  a ressurreição da carne, evento previsto para o final dos tempos (Juízo Final) segundo a doutrina cristã.
           
  
           
NOTAS



(1) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p.87  

(2) LONGNON, Henri- “La Divine Comédie”. Traduction, préface, notes et commentaires par Henri Longnon. Paris: Garnier, 1951, p. 645.

(3) CIARDI, John-  “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi.  New American Library, 2003, p. 654.

(4) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p. 171..

(5) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p.334. Ver também SAYERS, Dorothy L. and REYNOLDS, Barbara—“Dante: The Divine Comedy 3- Paradise”. Translated by Dorothy L. Sayers and Barbara Reynolds.  Penguin Books, 1971, p. 113.

(6) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume 3: Paradise”, op cit, p. 90-91.

(7) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”, op cit, p.335-336.

-------------------------------

Para ouvir o Canto VII:


(acessado em 28.08.20)