PARAÍSO
Canto IV
Amos Nattini |
Dante começa por apresentar três
situações em que é necessário fazer uma escolha entre duas possibilidades.
Inicialmente a do homem livre, i.e. dotado de livre arbítrio, “Entre dois alimentos igualmente apetitosos e
à mesma distância” (Intra
due cibi, distanti e moventi/ d’um modo, /.../- v.1-2). Depois, afirma que em situação
equivalente “estaria um cordeiro entre
dois/ lobos famélicos, temendo ambos” (sì si starebbe un agno intra due brame/ di
fieri lupi, igualmente temendo;- v. 4-5)
e “um cão entre duas corças” (/.../ un cane intra
due dame- v.6), indeciso entre atacar uma ou outra.
Do mesmo modo, o poeta se debatia interiormente entre duas dúvidas, suscitadas
pela conversa com Piccarda (cf. canto anterior). Mas se calava, guardando-as
para si, apesar de ansioso por esclarecê-las. Beatriz percebe sua ânsia de
saber e explicita as suas dúvidas, apesar de Dante
não externá-las (Beatriz é comparada aqui a Daniel, referido na Bíblia, que,
também por inspiração divina, soube interpretar um sonho do rei Nabucodonosor,
ao contrário dos sábios da Babilônia; cf. Dan. 2:1-46) (1).
A primeira das dúvidas diz respeito à
suposta redução do mérito das almas por terem quebrado os votos. Por isso estão
na Lua. Mas tal fato não decorreu da vontade delas e sim da “violência alheia” (la vïolenza altrui- v.
20). A segunda dúvida relaciona-se ao fato de que
“as almas parecem retornar às estrelas”
(parer
tornarsi l’anime a le stelle- v.23),
o que seria uma confirmação da doutrina de Platão. Beatriz começa a sua exposição
por esta última, pois é aquela que “contém
mais fel” (/.../
quella che più há di felle- v. 27),
certamente pela sua heresia potencial, ao negar o livre-arbítrio (em “Timeu”
Platão afirma que os deuses vinculam os homens aos astros ao nascer, e na sua
morte sua alma retorna a eles, sugerindo uma poderosa influência dos astros sobre
a conduta humana) (2).
Beatriz afirma que, no Paraíso, todas
as almas bem-aventuradas estão no “primeiro
céu” (primo
giro- v. 34), ou melhor, no
Empíreo, tanto os “espíritos que te
apareceram há pouco” (/.../ questi spirti che mo t’appariro- v. 32) quanto os serafins (que é a mais
alta ordem dos anjos), Moisés, Samuel, o João “que queiras escolher” (/.../ quel Giovanni/ che prender vuoli,/.../-
v.29-30) -- a saber, ou o
Batista ou o Evangelista -- e até mesmo Maria. Todos estão juntos a Deus, em
sua morada, mas “desfrutam a doce vida
diferentemente/ por sentir mais e menos o Eterno Espírito” (e differentemente han
dolce vita/ per sentir più e men l’etterno spiro- v. 35-36).
Por causa dessa diferenciação na sua bem-aventurança, e tendo em vista a
limitação do engenho humano (do “vosso
engenho/ uma vez que só aprende através dos sentidos”: /.../ vostro
ingegno,/ però che solo da sensato apprende- v. 40-41, conforme diz Beatriz a Dante), as
almas aparecem para o poeta nas diversas esferas, ou céus, embora de fato
estejam no Empíreo. Isso inclui as que não cumpriram integralmente seus votos,
como ocorreu com Piccarda e Costanza, que apareceram a Dante no céu da Lua, o
nono céu, que é o mais próximo da Terra.
Na
sequência, Dante afirma que é por
causa da limitação humana que a Escritura e a Igreja antropomorfizam Deus e os
arcanjos, a fim de as pessoas compreendam melhor seres imateriais. Ele também reinterpreta
o retorno às estrelas de Platão, que numa linguagem figurada pode se referir à “honra”
ou à “censura” que lhe são atribuídas
dependendo do caráter da influência (boa ou má) exercida sobre os seres humanos
(v. 59), uma influência que Dante admitia (3), embora sem comprometer o
livre-arbítrio deles. Para os antigos, ao contrário, os astros, associados aos
deuses pela sua denominação (Jove ou Júpiter, Mercúrio, Marte- v. 62-63), tinham
uma influência maior, conferindo poderes aos seres humanos, ou limitando sua
conduta (4).
Depois Beatriz passa a abordar a
segunda dúvida de Dante (menos grave, porque se relaciona apenas à
incompreensão humana dos desígnios divinos- v. 67-69), aquela que se refere à
questão da justiça divina, dada a localização diferenciada das almas que
quebraram os votos no Empíreo. E analisa duas situações, uma em que a pessoa
que sofre a violência “nada cede a quem a
impõe” (nïente
conferisce a quel che sforza- v.74)
e sua vontade é comparada ao fogo na natureza,
que sempre busca a altura (v.77). Na outra, a pessoa “cede à força” (segue la forza- v. 80), “e isso elas (Piccarda e Costanza) fizeram,/ podendo refugiar-se no santo claustro” (/.../ e così queste
fero/ possendo rifuggir nel santo loco- v. 80-81). Ela ilustra este caso com dois exemplos: 1) o de S.
Lourenço, mártir da Igreja no ano 258 que por ordem do imperador Valeriano foi queimado vivo numa
grelha mas não cedeu à sua vontade; e 2) o de Múcio Scevola, na Roma antiga, que
por ter falhado em sua tentativa de matar o rei etrusco Porsena, que sitiava
sua cidade, puniu a si mesmo mantendo a mão direita no fogo para a admiração de
Porsena (5). Se Piccarda e Costanza tivessem uma “vontade inteira” (volere intero- v. 82)
como a de Lourenço e Múcio, “ela as teria
impelido de novo à estrada/ de onde foram arrastadas, uma vez livres” (così l’avria ripinte
per la strada/ ond’ eran tratte, come fuoro sciolte- v. 85-86).
Salvador Dalí |
Beatriz ainda lembra o fato de que
anteriormente (cf. canto III, v. 117) Piccarda dissera a Dante “que Costanza manteve o afeto ao véu” (che l’affezion del
vel Costanza tenne- v. 98),
quer dizer, mantivera-se em seu coração fiel ao voto que fizera, o que parece
contradizê-la. Para explicar isso, Beatriz distingue entre uma vontade absoluta
e outra, relativa:
Voglia assoluta non consente al danno;
ma consentevi in tanto in quanto teme,
se si retrae, cadere in più affanno. (v.109-111)
A
vontade absoluta não cede ao mal;/ mas cede quando teme/ cair em mal maior, se
resiste.
Assim,
Costanza intimamente não cedeu ao mal, pois manteve-se fiel no íntimo ao seu
voto. Essa é sua “vontade absoluta”.
Mas objetivamente cedeu a ele, na medida em que permaneceu no casamento, e não
retornou ao claustro como poderia, independentemente das consequências que isso
lhe traria. Essa é sua vontade
relativa (ou condicionada). Portanto, diz
Beatriz, não há contradição, entre ela e Piccarda, a respeito de Costanza, pois Piccarda refere-se à vontade absoluta e Beatriz à vontade relativa: /.../ “ambas
dizemos a verdade” (/.../
sì che ver diciamo insieme- v. 114).
Dante satisfaz as suas dúvidas (seu
duplo desejo de esclarecimento) com a explicação dada por Beatriz (identificada
antes, no v. 66, com a Verdade Revelada), associando sua exposição à imagem do
rio cuja nascente é o próprio Deus (6):
Cotal fu l’ondeggiar del santo rio
ch’ uscì del fonte ond’ ogne ver deriva;
tal puose in pace uno e altro disio. (v.115-117)
Tal foi
o ondular do santo rio/ que saía da fonte de onde toda verdade deriva;/ ele pôs
em paz ambos os meus desejos.
Dante-personagem finaliza o Canto
agradecendo (de modo insuficiente, segundo ele) a explicação de Beatriz, chamando-a
de “amada do primeiro amante” (O amanza del primo
amante, /.../- v.118),
Deus, o qual também é referido indiretamente logo adiante, quando ele pede a “aquele que tudo vê e pode” (/.../ quei che vede
e puote /.../- v. 123) lhe
agradecer em seu lugar.
Para ele, o intelecto só se satisfaz
quando encontra a verdade divina. Inclui aqui uma comparação ousada, para
ilustrar esse fato: a do ser humano (seu intelecto) com um animal selvagem e a
da verdade divina com uma caverna. Assim, quando o primeiro encontra afinal a
segunda, “Repousa-se nela, como fera no
covil,/ logo que a alcança;” (Posasi in esso, come fera in lustra,/ tosto
che giunto l’ha; /.../- v. 127-128).
Depois dessa, vem outra comparação, ao afirmar que a dúvida surge do desejo de
maior conhecimento, próprio do ser humano:
“Nasce dele, como um broto/ na
raiz da verdade, a dúvida;” (Nasce per quello, a
guisa di rampollo,/ a piè del vero il dubbio; /.../- v.130-131). Esse fato deixa Dante confiante
para levantar a Beatriz mais uma questão: ele quer saber se é possível ao ser
humano reparar os votos não cumpridos com novas ações. Mas os olhos dela “plenos/ de fagulhas de amor, tão divinos”
(/.../
pieni/ di faville d’amor così divini- v.139-140) afetam tanto sua “faculdade
de ver” (mia
virtute- v. 141) que ele
quase perde os sentidos. É nesse ponto que
o Canto se encerra.
NOTAS
(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony
Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam
Books, 1986- p. 322
(2) Id, ib, p. 323
(3) Id, ib, p. 323
(4) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri-
Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction
& Notes by Robert Hollander.
Doubleday, 2007, p. 102.
(5) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume III: Paradise”. Translated
with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986,
p.52.
(6) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The
Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi. New American Library, 2003, p. 629. Para a identificação de Beatriz com a Verdade
Revelada, p. 628.
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Para ouvir o Canto IV:
https://www.youtube.com/watch?v=U_NUXHzs8BU
(acessado em 25.08.20)