quarta-feira, 23 de novembro de 2016

CANTO IV

PARAÍSO


Canto IV


Amos Nattini
  
Dante começa por apresentar três situações em que é necessário fazer uma escolha entre duas possibilidades. Inicialmente a do homem livre, i.e. dotado de livre arbítrio, “Entre dois alimentos igualmente apetitosos e à mesma distância” (Intra due cibi, distanti e moventi/ d’um modo, /.../- v.1-2). Depois, afirma que em situação equivalente “estaria um cordeiro entre dois/ lobos famélicos, temendo ambos” (sì si starebbe un agno intra due brame/ di fieri lupi, igualmente temendo;- v. 4-5) e “um cão entre duas corças” (/.../ un cane intra due  dame- v.6), indeciso entre atacar uma ou outra. Do mesmo modo, o poeta se debatia interiormente entre duas dúvidas, suscitadas pela conversa com Piccarda (cf. canto anterior). Mas se calava, guardando-as para si, apesar de ansioso por esclarecê-las. Beatriz percebe sua ânsia de saber  e explicita as suas dúvidas, apesar de Dante não externá-las (Beatriz é comparada aqui a Daniel, referido na Bíblia, que, também por inspiração divina, soube interpretar um sonho do rei Nabucodonosor, ao contrário dos sábios da Babilônia; cf. Dan. 2:1-46) (1).

A primeira das dúvidas diz respeito à suposta redução do mérito das almas por terem quebrado os votos. Por isso estão na Lua. Mas tal fato não decorreu da vontade delas e sim da “violência alheia” (la vïolenza altrui- v. 20).  A segunda dúvida relaciona-se ao fato de que “as almas parecem retornar às estrelas” (parer tornarsi l’anime a le stelle- v.23), o que seria uma confirmação da doutrina de Platão. Beatriz começa a sua exposição por esta última, pois é aquela que “contém mais fel” (/.../ quella che più há di felle- v. 27), certamente pela sua heresia potencial, ao negar o livre-arbítrio (em “Timeu” Platão afirma que os deuses vinculam os homens aos astros ao nascer, e na sua morte sua alma retorna a eles, sugerindo uma poderosa influência dos astros sobre a conduta humana) (2).

Beatriz afirma que, no Paraíso, todas as almas bem-aventuradas estão no “primeiro céu” (primo giro- v. 34), ou melhor, no Empíreo, tanto os “espíritos que te apareceram há pouco” (/.../ questi spirti che mo t’appariro- v. 32) quanto os serafins (que é a mais alta ordem dos anjos), Moisés, Samuel, o João “que queiras escolher” (/.../ quel Giovanni/ che prender vuoli,/.../- v.29-30) -- a saber, ou o Batista ou o Evangelista -- e até mesmo Maria. Todos estão juntos a Deus, em sua morada, mas “desfrutam a doce vida diferentemente/ por sentir mais e menos o Eterno Espírito” (e differentemente han dolce vita/ per sentir più e men l’etterno spiro- v. 35-36).  Por causa dessa diferenciação na sua bem-aventurança, e tendo em vista a limitação do engenho humano (do “vosso engenho/ uma vez que só aprende através dos sentidos”: /.../ vostro ingegno,/ però che solo da sensato apprende- v. 40-41, conforme diz Beatriz a Dante), as almas aparecem para o poeta nas diversas esferas, ou céus, embora de fato estejam no Empíreo. Isso inclui as que não cumpriram integralmente seus votos, como ocorreu com Piccarda e Costanza, que apareceram a Dante no céu da Lua, o nono céu, que é o mais próximo da Terra.  

            Na sequência, Dante afirma que é por causa da limitação humana que a Escritura e a Igreja antropomorfizam Deus e os arcanjos, a fim de as pessoas compreendam melhor seres imateriais. Ele também reinterpreta o retorno às estrelas de Platão, que numa linguagem figurada pode se referir à “honra” ou à  “censura” que lhe são atribuídas dependendo do caráter da influência (boa ou má) exercida sobre os seres humanos (v. 59), uma influência que Dante admitia (3), embora sem comprometer o livre-arbítrio deles. Para os antigos, ao contrário, os astros, associados aos deuses pela sua denominação (Jove ou Júpiter, Mercúrio, Marte- v. 62-63), tinham uma influência maior, conferindo poderes aos seres humanos, ou limitando sua conduta (4).

            Depois Beatriz passa a abordar a segunda dúvida de Dante (menos grave, porque se relaciona apenas à incompreensão humana dos desígnios divinos- v. 67-69), aquela que se refere à questão da justiça divina, dada a localização diferenciada das almas que quebraram os votos no Empíreo. E analisa duas situações, uma em que a pessoa que sofre a violência “nada cede a quem a impõe” (nïente conferisce a quel che sforza- v.74) e sua vontade é comparada ao fogo na natureza,  que sempre busca a altura (v.77). Na outra, a pessoa “cede à força” (segue la forza- v. 80), “e isso elas (Piccarda e Costanza) fizeram,/ podendo refugiar-se no santo claustro” (/.../ e così queste fero/ possendo rifuggir nel santo loco- v. 80-81). Ela ilustra este caso com dois exemplos: 1) o de S. Lourenço, mártir da Igreja no ano 258 que por ordem do  imperador Valeriano foi queimado vivo numa grelha mas não cedeu à sua vontade; e 2) o de Múcio Scevola, na Roma antiga, que por ter falhado em sua tentativa de matar o rei etrusco Porsena, que sitiava sua cidade, puniu a si mesmo mantendo a mão direita no fogo para a admiração de Porsena (5). Se Piccarda e Costanza tivessem uma “vontade inteira” (volere intero- v. 82) como a de Lourenço e Múcio, “ela as teria impelido de novo à estrada/ de onde foram arrastadas, uma vez livres” (così l’avria ripinte per la strada/ ond’ eran tratte, come fuoro sciolte- v. 85-86). 

Salvador Dalí

Beatriz ainda lembra o fato de que anteriormente (cf. canto III, v. 117) Piccarda dissera a Dante “que Costanza manteve o afeto ao véu” (che l’affezion del vel Costanza tenne- v. 98), quer dizer, mantivera-se em seu coração fiel ao voto que fizera, o que parece contradizê-la. Para explicar isso, Beatriz distingue entre uma vontade absoluta e outra, relativa:

Voglia assoluta non consente al danno;
ma consentevi in tanto in quanto teme,
se si retrae, cadere in più affanno.    (v.109-111)

A vontade absoluta não cede ao mal;/ mas cede quando teme/ cair em mal maior, se resiste

         Assim, Costanza intimamente não cedeu ao mal, pois manteve-se fiel no íntimo ao seu voto. Essa é sua “vontade absoluta”. Mas objetivamente cedeu a ele, na medida em que permaneceu no casamento, e não retornou ao claustro como poderia, independentemente das consequências que isso lhe traria. Essa é sua vontade relativa (ou condicionada).  Portanto, diz Beatriz, não há contradição, entre ela e Piccarda, a respeito de Costanza,  pois Piccarda  refere-se à vontade absoluta e Beatriz à  vontade relativa:  /.../ “ambas dizemos a verdade” (/.../ sì che ver diciamo insieme- v. 114).

            Dante satisfaz as suas dúvidas (seu duplo desejo de esclarecimento) com a explicação dada por Beatriz (identificada antes, no v. 66, com a Verdade Revelada), associando sua exposição à imagem do rio cuja nascente é o próprio Deus (6):

Cotal fu l’ondeggiar del santo rio
ch’ uscì del fonte ond’ ogne ver deriva;
tal puose in pace uno e altro disio.    (v.115-117)

Tal foi o ondular do santo rio/ que saía da fonte de onde toda verdade deriva;/ ele pôs em paz ambos os meus desejos.

Dante-personagem finaliza o Canto agradecendo (de modo insuficiente,  segundo ele) a explicação de Beatriz, chamando-a de “amada do primeiro amante” (O amanza del primo amante, /.../- v.118), Deus, o qual também é referido indiretamente logo  adiante, quando ele pede a “aquele que tudo vê e pode(/.../ quei che vede e puote /.../- v. 123) lhe agradecer  em seu lugar. 

Para ele, o intelecto só se satisfaz quando encontra a verdade divina. Inclui aqui uma comparação ousada, para ilustrar esse fato: a do ser humano (seu intelecto) com um animal selvagem e a da verdade divina com uma caverna. Assim, quando o primeiro encontra afinal a segunda, “Repousa-se nela, como fera no covil,/ logo que a alcança;” (Posasi in esso, come fera in lustra,/ tosto che giunto l’ha; /.../- v. 127-128). Depois dessa, vem outra comparação, ao afirmar que a dúvida surge do desejo de maior conhecimento, próprio do ser humano:  “Nasce dele, como um broto/ na raiz da verdade, a dúvida;”  (Nasce per quello, a guisa di rampollo,/ a piè del vero il dubbio; /.../- v.130-131). Esse fato deixa Dante confiante para levantar a Beatriz mais uma questão: ele quer saber se é possível ao ser humano reparar os votos não cumpridos com novas ações. Mas os olhos dela “plenos/ de fagulhas de amor, tão divinos(/.../ pieni/ di faville d’amor così divini- v.139-140) afetam tanto sua “faculdade de ver” (mia virtute- v. 141) que ele quase perde os sentidos. É  nesse ponto que o Canto se encerra.   
     

NOTAS

(1) MANDELBAUM, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Paradiso”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Anthony Oldcorn and Daniel Feldman, with Giuseppe Di Scipio. Bantam Books, 1986- p. 322

(2) Id, ib, p. 323

(3) Id, ib, p. 323

(4) HOLLANDER, Robert & Jean- “Dante Alighieri- Paradiso”: a verse translation by Robert & Jean Hollander. Introduction & Notes by Robert Hollander.  Doubleday, 2007, p. 102.

(5) MUSA, Mark-- “Dante- The Divine Comedy- Volume III: Paradise”. Translated with an Introduction, Notes, and Commentary by Mark Musa. Penguin Books, 1986, p.52. 

(6) CIARDI, John- “The Divine Comedy”: The Inferno. The Purgatorio. The Paradiso”. Translated by John Ciardi.  New American Library, 2003, p. 629.  Para a identificação de Beatriz com a Verdade Revelada, p. 628.

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Para ouvir o Canto IV:

 

https://www.youtube.com/watch?v=U_NUXHzs8BU

 

(acessado em 25.08.20)